Livia1107 16/11/2023
É preciso refletir sobre literatura
Não é suficiente o número de pessoas que conhecem as consequências sociais e ambientais da construção da Usina Hidrelétrica de Belo Monte. Todos(as) os(as) brasileiros(as) precisam saber como a barragem na volta grande do rio Xingu destruiu a vida de indígenas, ribeirinhos, animais e plantas, e como o desrespeito a todas as vidas - humanas e não-humanas - é realizado em nome de um progresso muito relativo. Por isso, a ficção de Maria José Silveira é bem-vinda, porque aproxima os(as) leitores(as) dessa realidade na forma de uma literatura por vezes panfletária, mas que vale a pena por contar uma história da qual ninguém parece querer saber.
A história é dividida em duas partes. A primeira é sobre Alelí, que aos 16 anos, vê toda sua cidade, e sua família, morrer sob uma onda de 40 metros de terra que deslizou de um vulcão, em Yungay, no Peru, no ano de 1970. Sua dor e falta de perspectivas são tão intensas que Alelí passa anos vagando pela América do Sul, contornando a cordilheira do Peru para a Bolívia, Chile e Argentina, depois subindo para o Paraguai e Brasil até chegar à recém-criada cidade de Altamira, no Pará, onde conhece um indígena da etnia Yudjá e dele engravida. A segunda parte é sobre esta filha, que é abandonada por Alelí e criada pela enfermeira Chica, que dá à criança o nome de Maria Altamira. Adulta, ela verá sua cidade ser destruída pela barragem que inunda a floresta e causa destruição e violência.
Triste e cheia de desventuras, a história de Alelí é contada com grande sensibilidade e poesia, e é difícil largar o livro e deixar a jovem, que vai se tornando mulher ao longo das páginas. Em cada pouso, a cada acolhida e partida, Alelí vai se aproximando de seu destino encontrando, e deixando, pelo caminho beleza e também violência.
A história de Maria Altamira, por outro lado, já é contada em um tom diferente, mais informativo. Os diálogos entre a jovem Maria e seus amigos ribeirinhos soam artificiais, muitas vezes construídos para conduzir o leitor às conclusões da autora (que, pelo menos, são boas conclusões: a hidrelétrica Belo Monte é um crime ambiental e a mineradora Belo Sun deve ser impedida a qualquer custo). Por mais que eu concorde com o rumo da prosa, ela parece mais panfletária do que literária. Silveira também leva sua protagonista a morar quatro anos em São Paulo, em um prédio invadido perto da Estação da Luz e a fazer parte do Movimento dos Sem Teto (sem, no entanto, nominá-lo efetivamente). Foi também uma forma de dar destaque à mais uma causa de desalojados, de pessoas que lutam para ter o seu lugar no mundo. Super válido, claro, mas mais uma vez fiquei com a sensação de estar lendo um manifesto político, e não uma obra de literatura em que os fatos históricos estão naturalmente tecidos na trajetória das personagens - Isabel Allende que o diga. Maria Altamira e seus amigos fazem discursos, não conversam.
Reconheci nesta obra de Maria José Silveira o que o filósofo húngaro Gyorgy Lukács chamou de “arte de tendência ou de tese”: “O que é a tese? Numa acepção superficial, é uma tendência política ou social do artista que ele quer demonstrar, defender e ilustrar com a sua própria obra de arte”*. Ele afirma que “utilizar toda a obra, ou mesmo um só personagem, como expressão direta e imediata das opiniões do autor priva o personagem da autêntica possibilidade de viver até o fundo suas próprias faculdades vitais segundo as leis íntimas e orgânicas da dialética de seu próprio ser”**. Silveira transformou a potencialmente magnífica Maria Altamira em um fantoche, que pelo menos fala sobre uma realidade que precisa ser conhecida.
Acho válida a leitura deste romance, especialmente por causa da história de Alelí, mas para conhecer de forma magistral a história de Belo Monte, é URGENTE que todos leiam Banzeiro Òkòtó, de Eliane Brum - uma grande reportagem e relato pessoal escrito de forma visceral e poética, em que os dados e os números são contados por meio das histórias reais dos ribeirinhos e indígenas, que mostra que toda a violência em que Altamira foi mergulhada por causa da ganância do homem branco. Uma obra incrivelmente profunda, bem escrita, sensível, que me chacoalhou de verdade, Banzeiro Òkòtó, de Eliane Brum.
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