Marselle Urman 09/03/2023
Nacib, alter ego de seu pai, Amado.
Primeiras 90 páginas :
Ilhéus é um fim de mundo que se acha grande cidade, explodindo da revolução cacaueira mas ainda tem ruas de barro e um porto onde navios maiores encalham. Picuinhas políticas locais entre velho coronel e novo forasteiro progressista. A cozinheira do seu Nacib pediu demissão e ele precisa de outra e não acha.
(Resumi em 6 linhas o que o autor demorou quase 100 pgs...e olha que em geral eu gosto de uma ambientação mais longa, mas quando ela promete levar a algum lugar...o que absolutamente não é o caso aqui.)
Surge Gabriela. Força da natureza, descrita em tantos versos e prosas como quase uma onça mansa, bicho lindo, risonho e livre. Apegada às danças e cantos, ao riso fácil, à sobrevivência.
(Lembro das críticas feitas pelos coaches quânticos da sociedade contemporânea ao "estilo Gabriela": eu nasci assim, eu cresci assim etc. Ao "Deixa a vida me levar"... de Zeca Pagodinho. Esses liberais agressivos, defensores da força de vontade magnânima do indivíduo empreendedor, do "self made man" que sucederá contra tudo e todos, que gritam :nunca seja Gabriela!
Sempre me deu infinita preguiça)
Muito apreciada na verdade pelos homens que a desejavam pra cozinhar; e comer.
Esperei por alguma visão do mundo visto pelos olhos de Gabriela, e não veio antes do último terço do livro, que é de fato quando as coisas acontecem. Gabriela se comporta basicamente como um bicho. Apesar de não querer pensar assim, não posso deixar de considerar que ela, como foi descrita por seu autor, tivesse algum problema mental. Sua frase mais longa foi : "Seu Nacib, homem bom..."Não que tenha nada errado com isso; mas ela é pintada como um ser de poesia e mistério, quando me pareceu ser simplesmente nascida com uma limitação.
Novamente, as deprimentes surras dadas aos homens em suas propriedades, as mulheres. Do Coronel Melk em sua filha Malvina. De Nacib em Gabriela (e tantas outras, não narradas). "Mulher come o juízo da gente", alguém disse em algum momento do livro. E isso autoriza o homem, ser superior, a surrar "suas" mulheres para se poupar do vexame social, esses objetos que só estão no mundo pra comer nosso juízo...Surra de dar bicho - afinal elas merecem, não é mesmo?
E ainda tem pessoas que se questionam o motivo de movimentos como incell, red pill etc. É um simples caso de ligar as linhas com o machismo estrutural.
O final do livro, fechamento do ciclo de Nacib e Gabriela, na minha opinião corrobora essa ideia. Gabriela deseja voltar pra Nacib (homem bom) por seus próprios instintos de autopreservação; e também algo pelo resultado disciplinante da surra que levou? Ela mesma considera que Nacib teria o direito de matá-la. Comporta-se ao final, portanto, como bom bichinho de estimação.
E assim termino esse livro, com um travo amargo na boca. Uma certa sensação de pairar de novo na mente do coronelismo, das vãs vaidades masculinas - sejam de ricos ou pobres - e seus direitos e propriedades sobre as vidas das mulheres.
O fato de esse já ter sido um retrato fiel de nossa sociedade não afasta o espanto de o quanto disso ainda perdura e resiste hoje em dia, ainda que de forma mais velada, nos números de feminicidio.
SP, 9/03/23