Renata CCS 31/07/2014O afinador de silêncios
"Não chegamos realmente a viver durante a maior parte da nossa vida. Desperdiçamo-nos numa espraiada letargia a que, para nosso próprio engano e consolo, chamamos existência. No resto, vamos vagalumeando, acesos apenas por breves intermitências." Mia Couto - Antes de Nascer o Mundo.
Mia Couto é um daqueles escritores que não se restringe a escrever em uma língua, mas elabora seu idioma literário próprio e inconfundível, absolutamente único, originalíssimo. É um daqueles escritores cuja prosa, extremamente poética, faz o leitor deliciar-se com cada uma das cenas concebidas por suas palavras, escrevendo e descrevendo as próprias raízes do mundo, a própria natureza humana. É um daqueles escritores que o leitor nunca vai conseguir ler apenas um de seus livros, e sempre vai querer mais. Comigo não foi diferente. Comecei com A CONFISSÃO DA LEOA e, logo em seguida, engatilhei A MENINA SEM PALAVRA. Agora foi a vez de ANTES DE NASCER O MUNDO, e, mais uma vez, não consegui largar antes de chegar ao final.
O menino Mwanito, o primeiro personagem que aparece na obra, é o narrador da história. Mwanito é chamado por Silvestre, seu pai, de afinador de silêncios, pois não tomou gosto pelo falar, apesar de gostar de ler e escrever. Para ele, não há vida além de Jesusalém, um pedaço de terra assim batizado por seu pai, na Moçambique devastada pela guerra e esquecida por Deus. É um mundo pequeno, de cinco pessoas que vivem no passado. Ntunzi, o irmão mais velho de Mwanito, quer voltar à civilização, embora continue ouvindo do pai que ela não existe mais. O tio Aproximado, irmão da falecida mãe dos garotos, é a única ligação deles com o lado de lá, pois é ele que sai para fazer compras e abastecer a pequena vila isolada da família. O quinteto é concluído com o ex-militar Zacaria, que repete sempre as mesmas histórias de guerra e exibe as cicatrizes das balas que levou como troféus. O único animal é a jumenta Jezibela, tratada como quase humana por Silvestre e considerada parte da família.
Mwanito sequer tem um passado. Traz na bagagem apenas a trágica perda da mãe, o convívio complicado com o pai, a revolta do irmão e um melancólico distanciamento do mundo que nunca conheceu. Foi levado para Jesusalém ainda muito pequeno, quando o mundo acabou. Quando acabou para eles. A morte da esposa, Dordalma, modificou Silvestre, que mudou de nome, de endereço e de fé. Retirou-se do mundo quando o mundo lhe deixou de ser casa. E é neste mundo isolado que Silvestre aguarda a chegada de Jesus, que viria para pedir perdão por toda a tristeza que causou à sua família.
Quem traz um alento àquele lugar é Marta, uma portuguesa que saiu de Lisboa à procura de seu marido, Marcelo, desaparecido durante a guerra. A chegada de Marta desestabiliza aquele pequeno mundo habitado apenas por homens, e fecha-se um ciclo por uma mão feminina: esses homens se retiraram do mundo por causa de uma mulher e é exatamente uma mulher que acabará fazendo-os retornar ao mundo.
Mia Couto, senhor absoluto do poder mágico e poético das palavras, consegue abordar neste cenário fantástico e simples questões dolorosas através dos olhos inocentes de um menino. Embora MC tenha atribuído a esse pequeno personagem uma dura e limitada realidade, consegue conferir a seu pequeno narrador o olhar imaculado que só têm aqueles que ainda estão desvendando porque as coisas acontecem e porque as pessoas são como são.
ANTES DE NASCER O MUNDO tem em si um retirar-se do mundo, um cessar do tempo e toda a mística de um universo particular criado pelo autor, planando entre a prosa e o verso, com uma sensibilidade tão grande que terminamos a leitura como Mwanito: tentando evocar memórias que nunca tivemos.
Ler Mia Couto é isso: presenciar a capacidade de escrever com suavidade sobre coisas difíceis e a astúcia magnífica e inigualável para saber falar de um mundo inexplorado a pessoas de todo lugar.
Quem ainda não leu alguma obra desse ícone da literatura contemporânea, não sabe o que está perdendo!