@pacotedetextos 17/01/2017Mais um livro sensacional do Mia CoutoAntes de nascer o mundo, título no Brasil dado a Jesusalém, é um livro do autor moçambicano Mia Couto. Como todas as outras obras do autor que li até hoje, esse também possui uma linguagem bastante poética, com construções que vão de neologismos a comparações impensadas – o que permite, sem sombra de dúvidas, que ele seja botado em um patamar de ninguém menos que Guimarães Rosa. (!)
Trata-se aqui da história de cinco moçambicanos: Silvestre Vitalício (viúvo de Dordalma) e os filhos Ntunzi e o pequeno Mwanito (este, o narrador da história), além do tio Aproximado e de Zacaria Kalash, estão refugiados em Jesusalém, “a terra onde Jesus haveria de se descrucificar“, a fim de anular o passado e o futuro e vivenciar um presente de, podemos dizer assim, realismo fantástico. Uma vida em que são cortadas relações com todo o exterior e que, certo dia, é abalada pela chegada de uma mulher (a primeira que Mwanito vê, aos onze anos de idade).
A história é dividida em três partes: “A humanidade“, “A visita” e “Revelações e regressos“, e cada uma dessas partes é subdividida em capítulos que oferecem epígrafes de autoras como Hilda Hilst, Sophia de Mello Breyner Andresen e Adélia Prado.
A história em si já é muito envolvente… Mas, como gosto de ressaltar em toda oportunidade, a linguagem do Mia Couto é algo que merece ser ressaltado sempre: não é todo mundo que consegue trabalhar tão bem com a língua portuguesa, seja em prosa, seja em poesia. Inclusive, é bom destacar: a prosa e a poesia, em Mia Couto, confundem-se, sendo que muitas vezes não dá pra separar os gêneros nos seus textos.
Quer exemplos? Tenho vários! MAS ATENÇÃO: quando eu digo vários, são vários mesmo! Pra quem não sabe, eu seria capaz de escrever um livro só com citações do Mia Couto. É sério, confere aí:
. Ninguém é de uma raça. As raças […] são fardas que vestimos. (p. 13)
. Não há um único silêncio. E todo o silêncio é música em estado de gravidez. (p. 13)
. O sonho é uma conversa com os mortos, uma viagem ao país das almas. (p. 17)
. Quem viveu pregado a um só chão não sabe sonhar com outros lugares. (p. 24)
. Nunca vi estrada que não fosse triste. (p. 35)
. Esperas. É isso que a estrada traz. E são as esperas que fazem envelhecer. (p. 35)
. Todo nascimento é uma exclusão, uma mutilação. […] Diz-se “parto”. Pois seria mais acertado dizer “partida”. (p. 40)
. A escrita era uma ponte entre tempos passados e futuros. (p. 42)
. Rezar é chamar visitas. (p. 44)
. Chorar ou rezar é a mesma coisa. (p. 45)
. Onde se dorme junto é no cemitério. (p. 46)
. Não é segurando nas asas que se ajuda um pássaro a voar. O pássaro voa simplesmente porque o deixam ser pássaro. (p. 52)
. Que história pode ser criada sem lágrima, sem canto, sem livro e sem reza? (p. 54)
. Os olhos de quem se ama nunca se vêem. (p. 55)
. A cegueira é o destino de quem se deixa tomar de assalto pela paixão: deixamos de ver quem amamos. Em vez disso, o apaixonado fita o abismo de si mesmo. (p. 56)
. Os mortos não morrem quando deixam de viver, mas quando os votamos ao esquecimento. (p. 59)
. O medo faz dilatar as distâncias. (p. 64)
. Não viver é o que mais cansa. (p. 65)
. Quem sai do seu lugar, nunca a si mesmo regressa. (p. 74)
. A raiva é apenas um modo diverso de chorar. (p. 76)
. Os soldados estão sempre feridos. A guerra fere mesmo os que nunca saíram em batalha. (p. 93)
. Perante o tiro, certo ou falhado, toda a gente sempre morre. (p. 103)
. Não chegamos realmente a viver durante a maior parte da nossa vida. Desperdiçamo-nos numa espraiada letargia a que, para nosso próprio engano e consolo, chamamos existência. No resto, vamos vagalumeando, acesos apenas por breves intermitências. (p. 115)
. Nunca há terra suficiente para enterrar uma mãe. (p. 121)
. O poeta se engrandece perante a ausência, como se a ausência fosse o seu altar, e ele ficasse maior que a palavra. (p. 132)
. Os segredos são fascinantes, porque foram feitos para serem revelados. (p. 136)
. Do amor me interessa apenas o não-saber, deixar o corpo fora da mente, em descomando absoluto. (p. 140)
. A poesia é uma doença mortal. (p. 142)
. Quem quer a eternidade olha o céu, quem quer o momento olha a nuvem. (p. 147)
. É isso que faz um lugar: o chegar e o partir. (p. 156)
. O silêncio é uma travessia. (p. 180)
. O Tempo é um veneno […] Mais eu lembro, menos fico vivo. (p. 212)
. Os vivos não são simples enterradores de ossos: eles são, antes de mais, pastores de defuntos. (p. 212)
. Este mundo, para ser amado, precisa de ódio. (p. 224)
. Uma despedida […] é um pequeno modo de morrer. (p. 241)
. Deixo de ser cego apenas quando escrevo. (p. 275)
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