Antes de Nascer o Mundo

Antes de Nascer o Mundo Mia Couto




Resenhas - Antes de nascer o mundo


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DIRCE 12/03/2014

Mui lisonjeiro
Nós, mulheres, fomos muito homenageadas no dia 08 de Março– Dia Internacional da Mulher– até o Google nos prestou homenagem. Agora... Agora o que eu não esperava era me sentir homenageada por meio do livro “Antes de nascer o mundo” – coisas de Mia Couto. Coisas de Mia Couto enaltecer a mulher por meio da sua literatura (eu já havia chegado a essa conclusão em outras obras), porém, no livro Antes de Nascer o Mundo, a figura feminina não dá trégua. Ela se faz sentir o tempo todo: quer seja pelas epígrafes que abrem cada capítulo, ou livro (a obra é constituída de 3 livros), quer seja pela constante presença da ausente Dordalma, quer seja pelo “grito” contra a violência e abuso pujante que sofrem as mulheres africanas abordado no romance e igualmente em nosso país. Mui lisonjeiro.
Voltando as epígrafes: elas foram retiradas da literatura das poetisas Sophie de Mello Breyner Andresen, Hilda Hist e Adélia Prado e dão um brilho todo especial aos capítulos, pois semelhantes ao som de uma trombeta que anuncia uma aparição, elas anunciam as questões que serão abordadas nos capítulos e tal qual ao som de uma trombeta elas causam calafrios pela pungência do “toque”.Outra constante que norteia as obras do Mia Couto é a forma que ele nomeia as personagens: os nomes revelam como eles são, o que eles carregam na alma. Em Antes de nascer o mundo me chamou a atenção o nome de Silvestre Vitalício (o patriarca), um homem atormentado pela vergonha, pela culpa, pelo remorso, que abandona a cidade onde vivia levando consigo seus dois filhos, um serviçal e uma jumenta. Esse homem abdica da sua identidade e,em um lugar no meio do nada, “cria” um novo mundo: Jesusalém, haja vista que de acordo com sua concepção o mundo havia acabado. Ele tenta fazer do seu novo mundo um refúgio amnésico e assume a condição de um silvestre vitalício. Chamou-me também atenção o nome de Dona Dor-dalma ,esposa de Silvestre Vitalício que, a priori, só nos é dado saber que ela morreu quatrocentas vezes (número de vezes que o inconformado Mwanito pergunta pela mãe). Há também o nome Jesusalém. Esse nome não só me causou estranheza como demorei com ele me acostumar. Nas primeiras vezes que com ele me deparei, fiz a leitura de Jerusalém. Jesu-salém...não é Salém um local onde se executava mulheres acusadas de bruxarias? (!!!???). A única informação que temos acerca do nome Jesusalém é de que foi o nome dado por Silvestre ao seu novo mundo, e que, ali, Jesus seria descrucificado. Mia Couto, sem deixar de lado a beleza que reveste sua escrita, se utiliza da voz do menino Mwanito para nos mostrar o drama, a aridez, os anseios, os rancores de cada personagem e também as atitudes insanas do Silvestre que além de cercear seus filhos: Mwanito e Ntunzi, de sentirem qualquer tipo de emoção e de buscarem qualquer tipo de conhecimento, impôs a “população”, assim que chegaram em Jesusalém, uma espécie de “iniciação”: eles foram desbatizados e passaram a ter um novo nome, somente Mwanito foi isentado dessa iniciação, uma vez que quando lá chegaram, o menino contava com apenas 3 anos de idade, portanto era desprovido de memória. Tudo era interditado por Silvestre. Mulheres?? Até citá-las era proibido.
Mas que ironia! Compete a elas – as mulheres – desvendarem os mistérios que cerca a tragédia familiar. Compete a Marta (a forasteira) e a Noci (a nativa), por meio dos seus relatos,trazerem à tona um passado que Silvestre tentou vão soterrar.
Bem, quem conhece a escrita de Mia Couto sabe que sua escrita se abre como um leque permitindo inúmeras leituras, inúmeros entendimentos, mas eu optei por privilegiar o nosso universo – o universo feminino, pois o mundo pode ainda ser um território masculino, mas como muito bem disse Erasmo Carlos: (...)mulher, mulher / na escola que você foi ensinada/ jamais tirei um dez/ sou forte mas não chego a seus pés.
Voltando a leitura do livro há também outra opção: fazer uma leitura simplesmente saboreando as frases. Deixar se embevecer por frases como:
“Viver? Ora, viver é cumprir sonhos, esperar notícias. Silvestre não sonhava, nem aguardava notícias. No princípio, ele queria um lugar onde ninguém se lembrasse do seu nome. Agora, ele próprio já não se lembrava quem era”
“(...) Nunca faças nada para sempre. Excepto amar”. (pag. 242)
“ Afinal, o velho Silvestre não mentia assim tanto com sua visão apocalíptica. Porque ele tinha razão: o mundo termina quando já não somos capazes de amar.” (pag.241)
“Um dia o pai diz a Mwanito que Jesusalém é um lugar "cheio de milagres". "Nunca vi nenhum", responde-lhe o filho. "São milagres tão pequenitos que nem damos conta da sua ocorrência." Esta é a lição deste romance: "a vida é demasiado preciosa para ser esbanjada num mundo desencantado."
Depois de tudo o que aqui consta, e também do que não consta, como não incluir Antes de Nascer o Mundo entre os meus favoritos?
Arsenio Meira 13/03/2014minha estante
Esse livro eu li, e reli. E de posse de tua excelente resenha, eu vou terminar é doido, sem saber o que ler ou reler. Para quem não leu, eu torço para que leia. Valeu, Dirce. Mia é um gigante. Um escritor fabuloso.


Manuella_3 14/03/2014minha estante
Dirce, querida. Mais uma vez você enche meus olhos com uma resenha que encanta! Gosto demais do Mia, acompanho uma página dedicada a ele e sim, ele é um poeta que fala maravilhosamente do universo feminino. Mais um para a minha lista.


DIRCE 14/03/2014minha estante
Arsenio,
Não endoidece não (risos). Faz uni duni tê...

Manu,Mia Couto além de um escritor impar, (aparentemente)é um ser humano muito especial.
Que descoberta o Skoob me proporcionou...
Obrigada a ambos


Jayme 18/03/2014minha estante
Depois desta resenha cativante, como não ler?


Arsenio Meira 03/04/2014minha estante
Gostei, Dirce, kkkkkkkkk
Vou terminar nessa senda eterna da infância!
Abraços




Suelen 31/05/2020

Cada pessoa tem uma forma diferente de viver o luto
Eu acredito que o livro todo se baseia na forma como Silvestre resolveu encarar o luto da mulher que cometeu suicídio.
Ele tentou renegar tudo que tivesse significado com uma vida em comunidade, pois trazia lembranças doloridas. No fim ele acabou se rendendo e voltando a cidade, mas jamais voltou a ser o mesmo.
Achei interessante e ao mesmo tempo cruel com os próprios filhos essa forma de luta.
O livro traz assuntos polêmicos como zoofilia e isso partiu meu coração. Pensei em desistir da leitura quando chegou nesse ponto. Não conseguia mais ler sem ter repugnância. Como estava lendo para o Clube de Leitura, me forcei a terminar.
Thais Toledo 31/05/2020minha estante
Achei bem interessante, mas quando vc falou em zoofilia desisti de ler..


Suelen 31/05/2020minha estante
Eu acho bem pesado, pq não esperava isso no livro. É um capítulo dedicado ao animal :(


Beatriz 20/06/2020minha estante
Foi bem pesada essa parte da leitura, mas acredito que seja esse o intuito. Silvestre perdeu a humanidade de tal forma que se transformou em bicho, e só com outro bicho sabia se relacionar. É mesmo para ser repugnante.




Paula 26/09/2010

Esse livro chegou às minhas mãos por intermédio de uma amiga que me emprestou dizendo que "eu tinha que ler". Fiquei completamente encantada pela narrativa tão poética e fantástica de Mia Couto, de quem havia lido apenas contos. Criando um universo único, Mia Couto explora com sutileza e metáforas a vida e a morte, o amor e a solidão e muitos outros sentimentos humanos que nos fazem refletir a cada página. Fiquei com uma vontade imensa de sublinhar diversos trechos e frases, mas não pude porque o livro era emprestado. É definitivamente um livro para ser lido e relido, um livro para se ter na estante.

"Essa humanidadezita, unida como os cinco dedos, estava afinal dividida: meu pai, o tio e o Zacaria tinham pele escura; eu e Ntunzi éramos igualmente negros, mas de pele mais clara.
- Somos de outra raça? - perguntei um dia. Meu pai respondeu:
- Ninguém é de uma raça. As raças - disse ele - são fardas que vestimos.
Talvez Silvestre tivesse razão. Mas eu aprendi, tarde demais, que essa farda se cola, às vezes, à alma dos homens". [pág. 13]

"Não é segurando nas asas que se ajuda um pássaro a voar. O pássaro voa simplemente porque o deixam ser pássaro". [ pág. 52]

Camila 18/01/2011minha estante
Paula, adorei a sua resenha! Tudo que senti enquanto estava lendo, você escreveu... muito boa mesmo!


Paula 18/01/2011minha estante
Valeu, Camila!
Esse livro é maravilhoso mesmo.
bjs


uyara 11/01/2012minha estante
Paula, já li dois livros de Mia Couto.Gostei mais de "O ultimo voo do flamingo" mas os dois foram maravilhosos... Ele é realmente fantástico. Sua prosa poética entranha na alma. Sublinhei quase que o livro todo!!! kkk
Vou colocar este na minha lista. beijo.




Renata CCS 31/07/2014

O afinador de silêncios

"Não chegamos realmente a viver durante a maior parte da nossa vida. Desperdiçamo-nos numa espraiada letargia a que, para nosso próprio engano e consolo, chamamos existência. No resto, vamos vagalumeando, acesos apenas por breves intermitências." Mia Couto - Antes de Nascer o Mundo.


Mia Couto é um daqueles escritores que não se restringe a escrever em uma língua, mas elabora seu idioma literário próprio e inconfundível, absolutamente único, originalíssimo. É um daqueles escritores cuja prosa, extremamente poética, faz o leitor deliciar-se com cada uma das cenas concebidas por suas palavras, escrevendo e descrevendo as próprias raízes do mundo, a própria natureza humana. É um daqueles escritores que o leitor nunca vai conseguir ler apenas um de seus livros, e sempre vai querer mais. Comigo não foi diferente. Comecei com A CONFISSÃO DA LEOA e, logo em seguida, engatilhei A MENINA SEM PALAVRA. Agora foi a vez de ANTES DE NASCER O MUNDO, e, mais uma vez, não consegui largar antes de chegar ao final.

O menino Mwanito, o primeiro personagem que aparece na obra, é o narrador da história. Mwanito é chamado por Silvestre, seu pai, de afinador de silêncios, pois não tomou gosto pelo falar, apesar de gostar de ler e escrever. Para ele, não há vida além de Jesusalém, um pedaço de terra assim batizado por seu pai, na Moçambique devastada pela guerra e esquecida por Deus. É um mundo pequeno, de cinco pessoas que vivem no passado. Ntunzi, o irmão mais velho de Mwanito, quer voltar à civilização, embora continue ouvindo do pai que ela não existe mais. O tio Aproximado, irmão da falecida mãe dos garotos, é a única ligação deles com o lado de lá, pois é ele que sai para fazer compras e abastecer a pequena vila isolada da família. O quinteto é concluído com o ex-militar Zacaria, que repete sempre as mesmas histórias de guerra e exibe as cicatrizes das balas que levou como troféus. O único animal é a jumenta Jezibela, tratada como quase humana por Silvestre e considerada parte da família.

Mwanito sequer tem um passado. Traz na bagagem apenas a trágica perda da mãe, o convívio complicado com o pai, a revolta do irmão e um melancólico distanciamento do mundo que nunca conheceu. Foi levado para Jesusalém ainda muito pequeno, quando o mundo acabou. Quando acabou para eles. A morte da esposa, Dordalma, modificou Silvestre, que mudou de nome, de endereço e de fé. Retirou-se do mundo quando o mundo lhe deixou de ser casa. E é neste mundo isolado que Silvestre aguarda a chegada de Jesus, que viria para pedir perdão por toda a tristeza que causou à sua família.

Quem traz um alento àquele lugar é Marta, uma portuguesa que saiu de Lisboa à procura de seu marido, Marcelo, desaparecido durante a guerra. A chegada de Marta desestabiliza aquele pequeno mundo habitado apenas por homens, e fecha-se um ciclo por uma mão feminina: esses homens se retiraram do mundo por causa de uma mulher e é exatamente uma mulher que acabará fazendo-os retornar ao mundo.

Mia Couto, senhor absoluto do poder mágico e poético das palavras, consegue abordar neste cenário fantástico e simples questões dolorosas através dos olhos inocentes de um menino. Embora MC tenha atribuído a esse pequeno personagem uma dura e limitada realidade, consegue conferir a seu pequeno narrador o olhar imaculado que só têm aqueles que ainda estão desvendando porque as coisas acontecem e porque as pessoas são como são.

ANTES DE NASCER O MUNDO tem em si um retirar-se do mundo, um cessar do tempo e toda a mística de um universo particular criado pelo autor, planando entre a prosa e o verso, com uma sensibilidade tão grande que terminamos a leitura como Mwanito: tentando evocar memórias que nunca tivemos.

Ler Mia Couto é isso: presenciar a capacidade de escrever com suavidade sobre coisas difíceis e a astúcia magnífica e inigualável para saber falar de um mundo inexplorado a pessoas de todo lugar.

Quem ainda não leu alguma obra desse ícone da literatura contemporânea, não sabe o que está perdendo!

Catharina 01/08/2014minha estante
Mia realmente te conquistou. Linda resenha!


Paty 01/08/2014minha estante
Mia Couto é completo em todos os sentidos, da construção dos personagens ao refinamento da linguagem. Este eu ainda não li, mas está na lista de 2014.


Hugo.Rufatto 20/12/2022minha estante
De longe meu livro favorito!




Mayara.Bernardino 12/03/2019

"As mulheres são como as guerras: fazem os homens ficarem animais."
"As mulheres são como as guerras: fazem os homens ficarem animais."

Terminei a leitura no dia 8 de março, dia em que é comemorado o Dia Internacional da Mulher, e que sincronia. Antes de nascer o mundo encaixa perfeitamente como um livro para ser lido nesta data, um livro onde a presença feminina é destaque durante toda a leitura, onde a mulher e seu poder, sua essência, sua unicidade são fatores marcantes na escrita de Mia Couto.
Fiquei simplesmente encantada com a forma como ele escreve e como ele soube colocar reflexões em uma narrativa, que ao meu ver, começou bem confusa, mas que ao longo do tempo foi se encaixando e tomando forma, uma narrativa cheia de detalhes estranhos, marcantes e pesados. Um histórias sobre o poder da mente sobre nossas atitudes, a solidão, os desejos, e a descoberta do novo. Como a nossa mente e o nossos medos nos impede de vivermos e como viver é um ato corajoso, difícil e desafiador, principalmente se a solidão faz parte desse viver. Nenhum ser humano consegue estar sozinho e chegar ao fim da vida em sã consciência, sem que sua mente tenha sido tomada pela loucura e necessidade do outro. Este livro fala muito disso, sobre a solidão, quando ficamos só com nossas ideias, nossas escolhas, nossos pensamentos e decisões. Quando a presença do outro não vale de nada se temos uma dor que toma conta da mente e nos faz sentirmos totalmente sós. Mostra como o ser humano pode se tornar cruel quando se prende a suas próprias dores, seus próprios monstros e sua própria solidão. Como as mulheres sozinhas são consideradas problemáticas, loucas, putas por serem só, como é dito na narrativa "neste mundo só somos alguém se formos esposa", ou seja, uma mulher só é mulher quando não vive sozinha, quando cuida de alguém, quando se casa. Ser mulher é um desafio neste livro, porém é a natureza feminina que transforma, que abala a loucura e a sensatez de um homem.
Fer 12/03/2019minha estante
Por um mundo igual.. Mas ainda estamos vivendo com selvagens


Marcos.Azeredo 14/01/2020minha estante
Um escritor que gosto muito.




Luli 24/06/2022

Um dos únicos livros da minha vida que chorei no final.
...........................................
Alê | @alexandrejjr 23/09/2022minha estante
Isso não é pouca coisa, hein?!




duda 15/11/2019

opinando
A história traz grandes reflexões sobre solidão, culpa, desejos, infância perdida, luto não vivido e a importância que a mulher tem na vida de alguém mesmo não estando mais presente.
A transparência em que é mostrada a forma em como os homens conseguem nos ver apenas como objetos, ter a mentalidade de que fomos feitas para seguir um padrão é tanta que chega a ser desconfortante; nunca envergonhá- los, sempre estar ali prontas para servir em todas as áreas. Nos limitam em curvas e olhares, nos limitam a sermos amparo emocional deles como se não fossem capaz de cuidar de si.
No livro também relata que o machismo pode afetar muito o homem, o próprio Silvestre sofre as consequências de um ato consequente de sua mentalidade sexista. A falta que sente da mulher, a culpa que sente pela morte da mesma e o luto que insiste em sufocar. Silvestre se isola em Jesusalém tentando se livrar de todos esses sentimentos, para ele a vida acabou no momento em que Dordalma se foi. E de fato acabou, pois a cada dia ele matava um pouco de si.
São muitas as reflexões profundas que esse livro traz; como o fato de Mwanito ter envelhecido anos com as experiências traumáticas que teve com apenas 11 anos de idade; as confusões internas que Zacarias trazia da vida de militar; a vontade de viver de Ntunzi, que já tinha experimentado o que era o mundo, mas teve que se isolar por ordem do pai; as sentimentalidades de Marta em relação ao marido, entre outras.
É uma leitura que com certeza impacta e que nos coloca para refletir várias questões da vida. O livro mostra quão poderosa é a nossa mente, e o como a nossa maneira de lidar com as fatalidades pode transformar a nossa vida e a de quem nos cerca.
lyssa 28/09/2020minha estante
caramba que resenha incrível!!




Dani 21/10/2009

Mia Couto é um dos maiores nomes da literatura africana.
O livro conta a história de cinco moçambicanos que vão morar numa terra de ninguém para esquecer o passado e construir um novo futuro.
Antes de nascer o mundo é um livro que fala sobre esperança e renascimento. É também um romance que aborda os costumes e a cultura do povo africano.

Mia Couto brinca com as palavras...
... transforma substantivos em verbos carregados de emoção...

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Carlozandre 08/01/2010

Os Homens do Fim do Mundo
Em um lugar esquecido pelo tempo, cinco homens, pai, dois filhos, tio e um empregado, vivem em uma solidão bíblica, supostos últimos sobreviventes de um mundo que acabou. Um isolamento que será quebrado por uma perturbadora figura de mulher, Eva às avessas, que trará o mundo de volta ao autoritário paraíso da imobilidade. Esse é, em poucas linhas, o mote do romance Antes de Nascer o Mundo (Companhia das Letras, 280 páginas, R$ 42). Um resumo que, como costuma acontecer sempre, não dá conta da riqueza temática e de linguagem do premiado autor moçambicano, apontado com um dos expoentes da prosa em português produzida na África.
Expressão das contradições de um continente que busca conciliar sinais esparsos da modernidade ocidental com suas tradições ancestrais, a obra de Mia Couto é feita de convergências. Seus livros casam fragmentos da literatura de gênero com o imaginário mágico do continente expresso em situações inusitadas e metáforas poéticas como em “A felina ainda deu uns passos bêbados, como se a morte fosse uma tontura que dá no próprio chão”.
Em um acampamento militar abandonado, em um ermo a que chamam de Jesusalém — a Jerusalém “onde Jesus haveria de se descrucificar” —, o menino Mwanito vive na companhia do pai, Silvestre, do rebelde irmão Ntunzi, que sonha em fugir do lugar, e do ex-militar Zacaria Kalash, que guiou o grupo até seu refúgio desolado, uma fuga decidida pelo pai autoritário, que foge da vida urbana e da saudade que sente da mulher, Dordalma, morta no parto. De tempos em tempos, os quatro recebem a visita do misterioso Tio Aproximado, que mora em uma cabana na “lonjura de horas e feras”. Uma pretensa vida em harmonia prestes a ser esfacelada pela aparição da portuguesa Marta, que perturba o lugar com a memória de um mundo exterior.
Assim como já fizera com o policial em A Varanda do Frangipani e com o relato histórico em O Outro Pé da Sereia, Mia Couto subverte à sua maneira o relato pós-apocalíptico também para pensar as feridas de um Moçambique cindido por anos de guerra civil.
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regifreitas 01/04/2010

Os segredos de se escrever como um ourives
Primeiro livro de Mia Couto que leio, e devo declarar que fiquei impressionado com a prosa-poesia desse autor moçambicano. Infelizmente conhecemos pouco, no Brasil, a produção literária de outros países de língua portuguesa. José Saramago talvez seja uma das raras exceções (talvez muito mais por causa do Nobel de Literatura ganho em 1998, o que inevitavelmente o lançou aos olhos de um público mais amplo), mas no geral esses escritores recebem pouco espaço na mídia, sendo mais conhecidos nos meios acadêmicos do que aos olhos do grande público.

Assim, a curiosidade despertada pela leitura me fez ir atrás de mais informações sobre o autor. Mia Couto (nascido António Emílio Leite Couto, em 1955) é somente o autor moçambicano de maior destaque em seu país, sendo que seu livro de estréia, Terra sonâmbula (1992), foi considerado um dos dozes melhores livros africanos do século XX. Publicado em mais de vinte países, o autor já foi traduzido em inglês, alemão, italiano, francês, espanhol e até catalão. Iniciando a vida universitária cursando medicina, Mia Couto abandonou o curso para se dedicar ao jornalismo, atividade que exerceu durante muito tempo. O jornalismo também foi deixado de lado para seguir o curso universitário na área da biologia. Atualmente o autor exerce a atividade de biólogo em um parque que faz fronteira entre a África do Sul, Moçambique e Zimbábue (Parque Transfronteiriço de Limpopo). Além de romances o autor também já publicou contos, poesias e crônicas.

Antes de nascer o mundo foi publicado em 2009. É a narrativa de cinco almas exiladas do mundo (em um local denominado pelo patriarca Silvestre Vitalício de Jerusalém, “a terra onde Jesus haveria de se descrucificar”), fugindo e negando um passado traumático e misterioso que vai se esclarecendo ao longo do texto. Além de Silvestre, já mencionado, o grupo se compõe dos irmãos: Mwanito (o afinador de silêncios) e Ntunzi, e do ex-militar e serviçal da família, Zacarias Kalash. Além desses personagens, existem dois semi-habitantes de Jerusalém: o Tio Aproximado, cunhado de Silvestre, que não mora no lugarejo, mas o visita de quando em quando, sendo o responsável pelo abastecimento de “mantimentos, roupas e bens de necessidade”, e a jumenta Jezibela, “tão humana que afogava os devaneios sexuais” do velho Silvestre. Contudo, a presença de maior força e o fio que une todas essas pessoas é Dordalma. Mãe, mulher, irmã e amante, ela está presente ao longo de todo o romance, na memória dos habitantes de Jerusalém. É Ntunzi quem diz: “Os mortos não morrem quando deixam de viver, mas quando os votamos ao esquecimento”. Embora todo o empenho de Silvestre em obliterar a existência dessa mulher, seu fantasma insiste em assombrar a vida dessas pessoas.

O texto de Mia Couto é carregado de poeticidade e de metáforas sobre a existência e a solidão, da fuga de uma realidade indesejada, mas que não deixa de se fazer presente nas memórias dos habitantes dessa nova Jerusalém. Somente Mwanito é isento de recordações, pois não carrega nenhuma lembrança do passado, seja da mãe morta ou da sua existência anterior em um mundo que o pai teima em dizer que já não existe mais. Contudo, é o próprio Mwanito quem tenta desvendar o passado, reconstituir o que o pai tenta por todas as maneiras apagar. A chegada de Marta vai trazer a realidade do mundo do “lado-de-lá” novamente para Jerusalém e abrir as velhas feridas que na realidade nunca cicatrizaram, e que vai novamente mudar a vida dessas cinco pessoas.

Mia Couto vai desvendando e desnudando esses personagens, revelando suas motivações e o que os levou ao auto-exílio naquele lugar, e a força que os restituirá inexoravelmente à existência. Conforme o autor diz pela boca de Zacarias Kalash, “[...] queres conhecer um homem, espreita-lhe as cicatrizes”.

Foi o primeiro, mas com certeza não será o único. A leitura despertou-me o desejo de conhecer outras obras desse artífice da palavra.
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Tórtoro 17/09/2010

JESUSALÉM DE MEU PAI


Como a vida de meus pais, atualmente, virou a primeira coisa em que penso quando acordo e a última que me vem à cabeça, antes de dormir, tenho usado a leitura para me distrair, principalmente nos finais de semana.
E, numa dessas leituras, conheci Silvestre Vitalício que leva um grupo de moçambicanos a fugir da vida e se refugiarem numa terra de ninguém: Jesusalém.
Meu pai, que sempre amou existir, já há algum tempo resolveu fugir da vida e enclausurar-se dentro de sua própria casa: talvez como Silvestre, vendo aproximar-se a idade e a morte, escolheu deixar de ser pessoa e, assim, imaginou que se sentiria morrer menos — deixou que seus demônios interiores o devorassem.
Por esse motivo, já faz algum tempo que vivo como se viajando sobre uma ogiva nuclear prestes a explodir, e o pior, conhecendo a forma de como poderia desarmá-la , evitando, assim, um pior desenlace para esse pesadelo.
O motivo das angústias que tomam conta de mim advém da necessidade da constante troca de foco que ora está em meus afazeres ligados ao trabalho e à família, e ora está voltado para as dificuldades vividas por meus pais, octogenários. Esses focos se revezam em minha mente como pontos e traços de um alfabeto Morse, escrevendo uma mensagem que parece não terá fim.
Meu pai fez de sua residência a sua Jesusalém particular, levando ao sofrimento ininterrupto não somente cinco personagens, como no livro de Mia Couto, Antes de nascer o mundo, mas todos aqueles que por ele se sentem responsáveis.
Ele, que sempre foi solução, nos últimos tempos transformou-se num problema que poderia ter múltiplas respostas no campo racional mas, irracionalmente, ele não aceita nenhuma.
Tal qual Antero, personagem da novela Passione, da Globo, ele não admite intromissão em sua vida, não permite a adoção de qualquer saída que não seja a impossível: que os filhos casados deixem seus parceiros, suas próprias vidas e famílias e fiquem à sua disposição vinte e quatro horas por dia.
Como a maioria dos idosos, ele não aceita morar em outro local que não seja a sua casa, não aceita a presença de estranhos para cuidar dele, não aceita separar-se de minha mãe doente assim como não aceita mudar-se para uma clínica especial para tratamento de idosos: mas continuam a ligar para minha irmã ante qualquer problema do dia a dia, que são muitos e normais na vida de quaisquer idosos.
É um tormento vê-lo sofrer e, ao mesmo tempo, sentir que , em algum momento, teremos que tomar medidas extremas e usar a força contra a sua vontade e nosso desejo de permitir a ele um final de vida digna, se não puder ser feliz.
Quando somos pais, é consenso quase que geral que temos que ser respeitados pelos nossos filhos. Quando nossos pais se tornam novamente crianças, seria normal que eles tivessem que respeitar as decisões de seus filhos como se esses fossem, agora, seus pais.
Mas não é assim que geralmente ocorre.
O idoso garante os direitos de voltar a ser criança, sem perder o direito de pais, tornando inviável qualquer interferência a ser assumida por seus filhos, quando necessária, que não seja passível de algum tipo de crítica da sociedade: é a velha história do menino, do velho e do burro.
Os seres humanos, na sua maioria , não se preparam para envelhecer e, por isso, é cada vez maior a admiração que sinto pelos diversos idosos que comigo convivem , ou conviveram, e que sabem ou souberam envelhecer com alegria, sabedoria, demonstrando confiança e respeito pelos seus filhos.


ANTÔNIO CARLOS TÓRTORO
ancartor@yahoo.com
www.tortoro.com.br
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Giliade 05/01/2011minha estante
Sua resenha me lembrou Phillip Roth e em especial o livro "Homem Comum". Essa dificuldade de aceitar a velhice apenas como uma antítese da juventude, é sempre retratada nas obras do Roth. A verdade é que por melhor que nos preparemos, a altivez na velhice é uma forma de resignação.
Minha avó materna viveu até os 84 anos, e desde os 70 residia conosco. Nos últimos dois anos viveu um silêncio sepulcral que me fazia questionar o sentido dela continuar conosco. Vê-la naquele estágio era perturbador e gerava um estado constante de impotência de minha parte. Ela faz falta, muita falta, mas demorei a aceitar que aquela avó dos últimos dois anos, não era mais a minha avó!







Clara Vellozo 13/04/2024

Amo a escrita de Mia Couto mas achei a história confusa
No mês de março, mês do meu aniversário, escolho uma leitura de Mia Couto, para me presentear com um dos meus escritores preferidos. Essa foi a vez de ?Antes de nascer o mundo? e confesso que tive sentimentos confusos em relação ao livro porque eu amo a maneira como ele escreve, a poesia de sua prosa, as palavras novas e divertidas que inventa, mas a história é confusa, não muito envolvente. Fez falta um certo ritmo narrativo, o início é muito lento, o desenvolvimento mais agitado e o final é um turbilhão de acontecimentos, reviravoltas e confissões que para mim não fizeram muito sentido.

Aqui temos a história de cinco pessoas, três homens e dois garotos que fogem e se isolam em um posto de guerra abandonado, rebatizado por eles com o nome Jesusalém (com S mesmo). Aliás, todos os cinco aqui recebem novos nomes porque chegam até o local numa tentativa de recomeçarem suas vidas, com exceção de Mwanito, o narrador da história que tampouco sabe o motivo da fuga e que vai desvendá-la aos poucos junto ao leitor.

É um Mia Couto, então é garantia de passagens ricas de detalhes, de reflexões sobre a vida, religião sociedade e natureza, e de uma poesia tão espontânea. Os diálogos são verdadeiras pérolas, um dos pontos altos do livro - nunca apreciei-os tanto como neste livro. Aqui também tem um amor bem refinado, uma espécie de pessimismo engraçado que me arrancou boas risadas. Só senti falta de um enredo mais interessante.
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Palazo 23/11/2011

Cinco homens fogem para um local desabitado na savana africana. Tio Aproximado, o serviçal Zacaria Kalash, o pai Silvestre Vitalício e seus dois filhos Ntunzi e Mwanito. Eles instalam-se no local que ganha o nome de Jerusalém e fazem “reparos mínimos” para habitá-lo. Enquanto isso, Silvestre constrói uma cruz na entrada do acampamento, “por cima da cabeça de Cristo ele fixou uma tabuleta” desejando boas vindas ao “Senhor Deus” e repetia aos filhos sua crença:
“Um dia, Deus nos virá pedir desculpas”
Os motivos da fuga das cinco almas é a negação do próprio passado, que é recortado da memória e esquecido junto com o resto do mundo, também conhecido como o lado de lá. O ponto que gera a extradição para Jerusalém é a morte misteriosa de Dordalma, a mãe e Ntunzi e Mwanito.
Nesse contexto é construído o livro “Antes de nascer o mundo” do escritor Mia Couto, publicado pela Companhia das Letras. A obra é dividida em três partes. A primeira é chamada de “A humanidade”, onde são apresentados os moradores de Jerusalém. Na segunda parte, intitulada “A visita”, os moradores recebem uma inesperada presença que muda a rotina dos cinco e desencadeia a parte três do livro – Revelações e Regressos.
Apesar da continuidade das partes em que a obra se separa, a construção da narrativa não é linear. Os fatos aparecem entrecortados no meio da ação, alguns lapsos de memória são aos poucos resgatados e os fatos vão e vem sem qualquer nexo aparente. A história precisa ser montada pelo leitor juntando partes de capítulos, unindo pontos desconexos e evitando cair no jogo alucinógeno de Silvestre Vitalício.
A loucura da história tem como criador o pai dos dois garotos, porém ela é narrada quase em sua totalidade por Mwanito, o filho mais jovem. Os olhos do garoto não mostram nenhum ar infantil ou ingênuo, são carregados e envelhecidos pela perda da infância.
Na segunda parte, a narração do garoto é intercalada pela narrativa da visitante ilustre, Marta. Os motivos que levam a portuguesa a Jerusalém são opostos aos dos habitantes de tal região, porém mudam o rumo da narrativa e trazem novas revelações que vão moldando pouco a pouco cada personagem e detalhe da história.
Além da narrativa desconexa e intrigante, o texto de Mia Couto é carregado de uma prosa poética que encanta, quase que obrigando o leitor a andar sempre com um lápis para grifar ou anotar passagens curiosas. Introduzindo cada capítulo, há uma poesia que anuncia em seus versos o que está por vir. Os poemas são em sua maioria de Sophia de Mello Breyner Andresen, Hilda Hist e Adélia Prado.
Através de uma narrativa poética, Mia Couto cria um cenário em que os personagens convivem e encontram-se – ou escondem-se – no mesmo lugar. Em Jerusalém a perda é anunciada através da morte da mãe, do sumiço do mundo, do esquecimento do passado e da falta de um futuro. Porém, fica-se na dúvida se faltou confiança ou esperança aos habitantes, pois como diz o narrador: “Quem perde a esperança foge. Quem perde a confiança esconde-se”. E sinceramente, ainda me paira a dúvida se os habitantes de Jerusalém são fugitivos ou refugiados do mundo.
Antes de nascer o mundo
Autor: Mia Couto
280 páginas
Preço sugerido: R$ 46,50
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Roger 22/01/2012

Esquecimento e morte
"E a loucura nem sempre é uma doença. Por vezes é um acto de coragem." (Antes de nascer o mundo, p. 241)

Quando todas as esperanças se perdem e o mundo parece um lugar cruel demais para se viver, só resta uma opção: acabar com o mundo. E se engana quem acha que o mundo só acaba quando se morre ou com um evento bíblico. A forma que Silvestre Vitalício escolheu foi a auto-alienação. Carregando seus dois filhos e acompanhado por um serviçal e uma burra, Silvestre fundou Jerusalém. Para ele o mundo havia morrido e só restava aquele punhado de terra, no meio de lugar nenhum, onde passaria o resto de sua vida. Ele queria que o mundo o esquecesse e ele próprio esqueceu-se de quem era.

Toda a história é contada por Mwanito, o filho mais novo de Silvestre. Como havia sido levado para Jerusalém muito jovem, não se lembrava de nada além do que havia ali. O livro começa com seu primeiro contato com algo que desconhecia completamente: "A primeira vez que vi uma mulher tinha onze anos e me surpreendi subitamente tão desarmado que desabei em lágrimas". Dividido entre os gigantes e os moinhos de vento, o mundo de Mwanito começa a mudar, revelando as feridas abertas que fazem parte da história das pessoas ao seu redor e trazendo a ele o passado que lhe havia sido negado.

O livro tem um tom bastante realista, quase esbarrando no fantástico. Essa mistura de drama humano e quase-fábula é o que dá um gosto agridoce à história, que certamente estimula o impulso de continuar lendo.
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Antonio Celso 07/01/2013

A escrita de Mia Couto é simplesmente fascinante. Definir assim é mais fácil e simples que refletir sobre seu conteúdo e estrutura mais seriamente. Mesmo acreditando que suas intenções como escritor estão muito além de simplesmente entreter o leitor, a leitura flui singelamente. Conforme algumas entrevistas suas que acompanhei nestes últimos anos percebo que sua preocupação esta colada à militância ecológica e na busca de ações sérias e comprometidas com a estabilidade da biodiversidade do planeta. Claro que estas preocupações já bastariam para seu reconhecimento no universo literário. Mas seus escritos muito nos trazem reflexões sobre a estabilidade entre o particular e universal que acomete os homens nestes momentos de difícil lida mundial, globalização econômica e acirramento da pobreza em bolsões cada vez mais numerosos e próximo da barbárie.
Recordo-me esparsamente de sua fala no filme “Línguas-Vida em português” do diretor lusitano Victor Lopes, documentário belíssimo por sinal. Mia Couto, andando descalço pela praia vai aos pouco descrevendo aquele mundo a parte da oralidade daquela região passada e repassada por várias gerações. Um mundo próprio em que podemos relacionar as vidas e culturas dos habitantes da região costeira de Moçambique como uma forma e dimensão de inteiração entre o particular e o universal. Em sua fala aponta que, pois, os habitantes desta região vivem dois mundos de proporções e dimensões espirituais e sensitivas incalculáveis numa delimitação geográfica muito reduzida, que para nossa cultura poderia ser classificada como ínfima, simplesmente por não ter registros gráficos. Porém, isto para nos, ocidentais, e as experiências de oralidade dos homens daquele lugar não o é de fácil compreensão. Sua fala neste documentário delimita que a relação entre o particular e o universal pode ocorrer ou ser pressentido mesmo a partir das ações mais introspectivas do ser humano e experiências matériais que muitas vezes são definidas como de pouco alcance, principalmente pela ausência da escrita ou das condições sociais reconhecidas como “civilizadas”pelas sociedades industriais. Este é o ponto de partida para observamos a relação entre o universal e o particular; é isto que consigo perceber em sua escrita. O romance “Antes de nascer o Mundo”, que alias como li na critica de divulgação teve o titulo de “Jesusalém” na África e Europa, nos coloca a tudo momento diante desta questão: o particular dos homens em seus mundos limitados e delimitados pelos seus termos imediatos e a reflexão profundamente humanizante que os movem para além do mundo imediato e material.
A profunda reflexão do ser humano que o conduz pelas veredas materiais de seu mundo imediato nem sempre tem sua origem objetivamente no exterior. Os sonhos e projeções não podem ser descartados como simples desdobramentos da produção material, mais também não estão isolados. O pleno do humano é a inteiração entre as duas dimensões. O particular e o universal é o próprio devaneio, este novo plano é a integridade ou o próprio homem como tal. Quanto mais os homens e seus devaneios afundam-se em suas entranhas, em suas particularidades, em suas permissividades, ai é que mais flutua em suas experiências sociais, conflitos e sonhos em passagens de autonomia e coalizões. A diferença é que isto ocorre no seu interior sem que seja diretamente instigado pelo exterior. É a forma como percebo as inteirações entre os personagens construídos no romance “Antes de nascer o mundo” de Mia Couto.
Sustentando estas idéias, sua escrita plaina entre a prosa e o verso. A fluidez da prosa com as ondulações e harmonias próprias das construções poéticas mais profundas.
Algumas passagens considero belíssimas fazem justamente a ponte entre a situação fantástica e a reflexão que aproxima das preocupações de nosso cotidiano. A situação fantástica beira a Gabriel Garcia Marques.
A história do livro gira em torno de uma família que vai morar em um sítio distante de todos e tudo. Formada pelo pai, Silvestre Vitalicio, o filho mais novo Mwanito e o mais velho Ntunzi, um soldado tipo ajudante de ordem Zacaria Kalash e o tio Aproximando, este é que faz o contato com o mundo exterior de Jesusalém, assim é denominado o lugar, e uma jumenta Jezibela. A história é narrada pelo filho mais novo Mwanito, que chega em Jesusalém com poucas lembranças de sua mãe falecida Dordalma e quase nenhuma do restante do mundo. Este é Mwanito:
“A família, a escola, os outros, todos elegem em nós uma centelha promissora, um território em que poderemos brilhar. Uns nasceram para cantar, outros para dançar, outros nasceram simplesmente para serem outros. Eu nasci para estar calado. Minha única vocação é o silêncio. Foi meu pai que me explicou: tenho inclinação para não falar, um talento para apurar silêncios. Escrevo bem, silêncios no plural. Sim, porque não há um único silencio. E todo o silêncio é música em estado de gravidez.
Quando me viam, parado e recatado, no meu invisível recanto, eu não estava pasmado. Estava desempenhado, de alma e corpo ocupados: tecia os delicados fios com que se fabrica a quietude. Eu era um afinador de silêncios.
-Venha, meu filho, venha ajudar-me a ficar calado.” (pág.13/14)
No universo criado por Silvestre é proibido qualquer alusão ao mundo exterior e principalmente ao sexo feminino. O universo e o mundo se restringe a Jesusalém, o restante não mais existe como afirma e reafirma a autoridade de Silvestre para com todo o grupo.
“A verdade é que, no trono absoluto da sua solidão, meu pai se desencontrava com o juízo, fugindo do mundo e dos outro, mas incapaz de escapar de si mesmo. Talvez fosse esse desespero que o fazia entregar a uma religião pessoal, uma interpretação muito própria do sagrado. Em geral, o serviço de Deus é perdoar os nossos pecados. Para Silvestre, a existência de Deus servia para O ocuparmos pelos pecados humanos. Nessa fé às avessas não havia rezas, nem rituais: uma simples cruz na entrada do acampamento orientava a chagada de Deus ao nosso sítio. E a placa de boas-vindas, encimando o crucifixo: “Seja bem-vindo, ilustre visitante!”.
-É para Deus saber que já lhe perdoamos.
A esperança da aparição divina suscitava no meu irmão um sorriso de desdém:
- Deus? Aqui é tão longe que Deus se perde no caminho.” (pág. 47)
Mwanito vai crescendo com as experiências passada pelo irmão Ntunzi, o mais velhos que aos pouco vai revelando verdades que Silvestre quer enterrar e refazer. Os próprios nomes de toda a família é rebatizados por Silvestre e somente o tio Aproximando tem contato com o exterior.
“A cidade desmoronara, o Tempo implodira, o futuro ficara soterrado. O meio irmão de Dordalma ainda o chamou a razão: quem sai do seu lugar, nunca a si mesmo regressa.
-Você não tem filhos, cunhado. Não sabe o que é entregar um filho a este mundo podre.
-Mas não lhe resta nenhuma esperança, mano Silvestre?
-Esperança? O que perdi foi a confiança.
Quem perde a esperança foge. Quem perde a confiança esconde-se. E ele queria as duas coisas: fugir e esconder-se. Mas nunca suspeitássemos de haver em Silvestre um sentimento de desamor.
-Vosso pai é um homem bom. A sua bondade é a de um anjo que não sabe onde está Deus. É só isso.
Em toda sua vida, teve um único desempenho: ser pai. E todo o bom pai enfrenta a mesma tentação: guardar para si os filhos, fora do mundo, longe do tempo.” (pág. 74/75)
Este universo mágico é quebrado com a chegada de uma mulher portuguesa em busca de informações do marido perdido. Na verdade um soldado português que abandona a metrópole e retorna a África em busca de um sonho perdido, assim ela compreende sua partida. Marta passa a viver em torno do acampamento colocando em cheque a autoridade e as verdades que ordena o mundo de Silvestre. Desestabiliza a lógica do lugar e aprofunda a loucura de Silvestre que inválido não tem outra alternativa à não ser retornar para cidade onde a história tem seu desfecho.
Neste cenário fantástico e simples Mia Couto nos brinda com formulações brilhantes e profundas que de momento a momento nos levam a refletir sobre os caminhos que estão sendo construídos pela moderna sociedade ocidental industrial e o homem como principal personagem desta construção. A escrita que plaina entre a prosa e o verso é de uma profundidade imensa que merece ser degustada e divulgada.
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