Antonio Celso 07/01/2013
A escrita de Mia Couto é simplesmente fascinante. Definir assim é mais fácil e simples que refletir sobre seu conteúdo e estrutura mais seriamente. Mesmo acreditando que suas intenções como escritor estão muito além de simplesmente entreter o leitor, a leitura flui singelamente. Conforme algumas entrevistas suas que acompanhei nestes últimos anos percebo que sua preocupação esta colada à militância ecológica e na busca de ações sérias e comprometidas com a estabilidade da biodiversidade do planeta. Claro que estas preocupações já bastariam para seu reconhecimento no universo literário. Mas seus escritos muito nos trazem reflexões sobre a estabilidade entre o particular e universal que acomete os homens nestes momentos de difícil lida mundial, globalização econômica e acirramento da pobreza em bolsões cada vez mais numerosos e próximo da barbárie.
Recordo-me esparsamente de sua fala no filme “Línguas-Vida em português” do diretor lusitano Victor Lopes, documentário belíssimo por sinal. Mia Couto, andando descalço pela praia vai aos pouco descrevendo aquele mundo a parte da oralidade daquela região passada e repassada por várias gerações. Um mundo próprio em que podemos relacionar as vidas e culturas dos habitantes da região costeira de Moçambique como uma forma e dimensão de inteiração entre o particular e o universal. Em sua fala aponta que, pois, os habitantes desta região vivem dois mundos de proporções e dimensões espirituais e sensitivas incalculáveis numa delimitação geográfica muito reduzida, que para nossa cultura poderia ser classificada como ínfima, simplesmente por não ter registros gráficos. Porém, isto para nos, ocidentais, e as experiências de oralidade dos homens daquele lugar não o é de fácil compreensão. Sua fala neste documentário delimita que a relação entre o particular e o universal pode ocorrer ou ser pressentido mesmo a partir das ações mais introspectivas do ser humano e experiências matériais que muitas vezes são definidas como de pouco alcance, principalmente pela ausência da escrita ou das condições sociais reconhecidas como “civilizadas”pelas sociedades industriais. Este é o ponto de partida para observamos a relação entre o universal e o particular; é isto que consigo perceber em sua escrita. O romance “Antes de nascer o Mundo”, que alias como li na critica de divulgação teve o titulo de “Jesusalém” na África e Europa, nos coloca a tudo momento diante desta questão: o particular dos homens em seus mundos limitados e delimitados pelos seus termos imediatos e a reflexão profundamente humanizante que os movem para além do mundo imediato e material.
A profunda reflexão do ser humano que o conduz pelas veredas materiais de seu mundo imediato nem sempre tem sua origem objetivamente no exterior. Os sonhos e projeções não podem ser descartados como simples desdobramentos da produção material, mais também não estão isolados. O pleno do humano é a inteiração entre as duas dimensões. O particular e o universal é o próprio devaneio, este novo plano é a integridade ou o próprio homem como tal. Quanto mais os homens e seus devaneios afundam-se em suas entranhas, em suas particularidades, em suas permissividades, ai é que mais flutua em suas experiências sociais, conflitos e sonhos em passagens de autonomia e coalizões. A diferença é que isto ocorre no seu interior sem que seja diretamente instigado pelo exterior. É a forma como percebo as inteirações entre os personagens construídos no romance “Antes de nascer o mundo” de Mia Couto.
Sustentando estas idéias, sua escrita plaina entre a prosa e o verso. A fluidez da prosa com as ondulações e harmonias próprias das construções poéticas mais profundas.
Algumas passagens considero belíssimas fazem justamente a ponte entre a situação fantástica e a reflexão que aproxima das preocupações de nosso cotidiano. A situação fantástica beira a Gabriel Garcia Marques.
A história do livro gira em torno de uma família que vai morar em um sítio distante de todos e tudo. Formada pelo pai, Silvestre Vitalicio, o filho mais novo Mwanito e o mais velho Ntunzi, um soldado tipo ajudante de ordem Zacaria Kalash e o tio Aproximando, este é que faz o contato com o mundo exterior de Jesusalém, assim é denominado o lugar, e uma jumenta Jezibela. A história é narrada pelo filho mais novo Mwanito, que chega em Jesusalém com poucas lembranças de sua mãe falecida Dordalma e quase nenhuma do restante do mundo. Este é Mwanito:
“A família, a escola, os outros, todos elegem em nós uma centelha promissora, um território em que poderemos brilhar. Uns nasceram para cantar, outros para dançar, outros nasceram simplesmente para serem outros. Eu nasci para estar calado. Minha única vocação é o silêncio. Foi meu pai que me explicou: tenho inclinação para não falar, um talento para apurar silêncios. Escrevo bem, silêncios no plural. Sim, porque não há um único silencio. E todo o silêncio é música em estado de gravidez.
Quando me viam, parado e recatado, no meu invisível recanto, eu não estava pasmado. Estava desempenhado, de alma e corpo ocupados: tecia os delicados fios com que se fabrica a quietude. Eu era um afinador de silêncios.
-Venha, meu filho, venha ajudar-me a ficar calado.” (pág.13/14)
No universo criado por Silvestre é proibido qualquer alusão ao mundo exterior e principalmente ao sexo feminino. O universo e o mundo se restringe a Jesusalém, o restante não mais existe como afirma e reafirma a autoridade de Silvestre para com todo o grupo.
“A verdade é que, no trono absoluto da sua solidão, meu pai se desencontrava com o juízo, fugindo do mundo e dos outro, mas incapaz de escapar de si mesmo. Talvez fosse esse desespero que o fazia entregar a uma religião pessoal, uma interpretação muito própria do sagrado. Em geral, o serviço de Deus é perdoar os nossos pecados. Para Silvestre, a existência de Deus servia para O ocuparmos pelos pecados humanos. Nessa fé às avessas não havia rezas, nem rituais: uma simples cruz na entrada do acampamento orientava a chagada de Deus ao nosso sítio. E a placa de boas-vindas, encimando o crucifixo: “Seja bem-vindo, ilustre visitante!”.
-É para Deus saber que já lhe perdoamos.
A esperança da aparição divina suscitava no meu irmão um sorriso de desdém:
- Deus? Aqui é tão longe que Deus se perde no caminho.” (pág. 47)
Mwanito vai crescendo com as experiências passada pelo irmão Ntunzi, o mais velhos que aos pouco vai revelando verdades que Silvestre quer enterrar e refazer. Os próprios nomes de toda a família é rebatizados por Silvestre e somente o tio Aproximando tem contato com o exterior.
“A cidade desmoronara, o Tempo implodira, o futuro ficara soterrado. O meio irmão de Dordalma ainda o chamou a razão: quem sai do seu lugar, nunca a si mesmo regressa.
-Você não tem filhos, cunhado. Não sabe o que é entregar um filho a este mundo podre.
-Mas não lhe resta nenhuma esperança, mano Silvestre?
-Esperança? O que perdi foi a confiança.
Quem perde a esperança foge. Quem perde a confiança esconde-se. E ele queria as duas coisas: fugir e esconder-se. Mas nunca suspeitássemos de haver em Silvestre um sentimento de desamor.
-Vosso pai é um homem bom. A sua bondade é a de um anjo que não sabe onde está Deus. É só isso.
Em toda sua vida, teve um único desempenho: ser pai. E todo o bom pai enfrenta a mesma tentação: guardar para si os filhos, fora do mundo, longe do tempo.” (pág. 74/75)
Este universo mágico é quebrado com a chegada de uma mulher portuguesa em busca de informações do marido perdido. Na verdade um soldado português que abandona a metrópole e retorna a África em busca de um sonho perdido, assim ela compreende sua partida. Marta passa a viver em torno do acampamento colocando em cheque a autoridade e as verdades que ordena o mundo de Silvestre. Desestabiliza a lógica do lugar e aprofunda a loucura de Silvestre que inválido não tem outra alternativa à não ser retornar para cidade onde a história tem seu desfecho.
Neste cenário fantástico e simples Mia Couto nos brinda com formulações brilhantes e profundas que de momento a momento nos levam a refletir sobre os caminhos que estão sendo construídos pela moderna sociedade ocidental industrial e o homem como principal personagem desta construção. A escrita que plaina entre a prosa e o verso é de uma profundidade imensa que merece ser degustada e divulgada.