Jr. 21/06/2020
Mais do que a verdade; a literatura
O que talvez difira esse clássico de Truman Capote de um sem número de livros-reportagem que, invariavelmente, vieram em sua esteira, é a composição ficcional muito particular – ainda que a obra, como se sabe, tenha sido vendido como romance de não-ficção – que o autor faz sobre as figuras reais envolvidas nesse crime hediondo da década de 50. Tanto os quatro membros da incauta família Clutter quanto os dois homicidas que executaram a ação como descreve o título são descritos com uma profundidade quase poética que toma essas pessoas não pelas ressonâncias dos acontecimentos na vida real, mas pelas potencialidades enquanto personagens de um universo imaginativo.
O pequeno artigo do New York Times, pouco detalhado, que levou Capote a ir atrás desse caso, revela o interesse do escritor, acima de tudo, pelos elementos literários por trás do fato, escondidos sob as mal traçadas linhas de um jornal, a absoluta zona de esquecimento em que se encontrava a cidade de Holcomb, no Kansas, e a banalidade dos assassinatos. Em sua onipresença e onipotência de narrador, ele traça perfis contraditórios, dilemas existenciais e ações corriqueiras – dos quatro chacinados e dos dois responsáveis – permeados por um tom fatalista, em que tudo parece convergir, de algum modo, para aquela fatídica noite fria de novembro.
Não que Capote tente, com isso, dar qualquer significado maior à tragédia; ao contrário, sua intenção parece mais a de explorar as possibilidades narrativas de um crime que, ironicamente, não faz sentindo algum, mas cujo impacto vem justamente de sua banalidade – na maneira como aquelas pessoas de diferentes bagagens convergiram suas trajetórias em um episódio de absoluta crueldade, e como as testemunhas dessa violência, uma população de interior que vivia seus dias em repetitivos rituais, foram impactadas por esse acontecimento imprevisto e desorientador.
São, particularmente, desoladoras as descrições em que Capote evidencia o cotidiano confortável das práticas corriqueiras da família Clutter e de toda a cidadezinha – congregar na igreja, participar de eventos comunitários, etc. –, que se repetiam desprevenidamente, para romper com essa bolha de segurança com o impacto de tiros na noite, revelando então um outro lado da narrativa, em que acompanhamos os agora desnorteados moradores da bucólica Holcomb, que depois dali, teriam que enxergar algo além do manto preto do luto, perplexos com a crueldade, mas, sobretudo, abalados pelo fim da noção de proteção – seja ela das cercas de suas propriedades, das autoridades policiais ou, para além disso, da presença de Deus.
Já foram exaustivamente discutidas questões acerca da verossimilhança dos acontecimentos narrados e a parcialidade do autor em relação a estes (e às suas personagens, por extensão), mas acho que direcionar a proposta desse livro a essas questões de ética é, na verdade, relegar o elemento literário que, para além do trabalho de apuro investigativo, me parece o mais interessante, por lançar um olhar sobre os personagens – quer sejam as vítimas ou os algozes – que vão além da materialidade de fatos, da cronologia e das motivações de um registro policial. No entremeio de literatura e jornalismo, Capote lançou uma luz sobre componente que une os dois, para o bem ou para o mal: o humano.
“As pessoas não estariam tão alteradas se isso tivesse acontecido com outros que não os Clutter. Com uma família menos admirada. Menos próspera, menos segura. Mas eles representavam tudo o que as pessoas daqui valorizam e respeitam, e o fato de uma coisa dessas ter acontecido com eles — é o mesmo que dizer que Deus não existe. Dá a impressão que a vida não faz sentido. Acho que as pessoas não estão apenas assustadas, estão profundamente deprimidas” (pág. 121)