Luísa Coquemala 24/01/2017
Hoje eu topei com uma resenha escrita no New York Times, em 1966, sobre A sangue frio. Que bom reencontrar brevemente com um dos meus livros preferidos. O final da resenha diz o seguinte: "At a time when the external happening has become largely meaningless and our reaction to it brutalized, when we shout “Jump” to the man on the ledge. Mr. Capote has restored dignity to the event. His book is also a grieving testament of faith in what used to be called the soul." Isso me fez lembrar um pouco o porquê de eu gostar dando desse livro, de pensar tanto nele ultimamente.
Li A sangue frio pela primeira vez em 2010, nas minhas férias de julho, por indicação e emprestado. Após o término do livro, passei os anos seguintes lendo coisas de Truman Capote e sobre Truman Capote. Achei muita coisa boa, mas poucas vezes encontrei algo da magnitude de A sangue frio (seja do próprio Capote, seja de qualquer outro autor).
Lembro também que o mês de julho de 2010, período da minha primeira leitura do livro, foi um mês de muitos sentimentos e descobertas. E também de sofrimento, muito sofrimento. Primeiramente, por conta da família Clutter. É indigesto ler sobre o assassinato da família, sobre o estado em que foram encontrados, sobre o namorado da jovem garota recebendo a notícia. É triste ler sobre o velório, sobre o sofrimento da cidade, sobre as luzes acesas e as portas trancadas diante do medo.
Mas, acredito eu, mais difícil ainda (e maior o aprendizado também) é ler sobre a figura inesquecível de Perry Edward Smith, um dos assassinos da família Clutter. Primeiro, você o odeia. Depois, lendo sua vida sofrida, sua infância de abusos, você se sente estranho porque passa a ter uma espécie de compaixão por ele. Finalmente, quase no fim do livro, você cai em lágrimas diante da confissão - pois agora você já sabe que não é só mais um assassino, um assassinato. É, como diz a resenha que eu acabei de ler, a restauração de uma dignidade.
E, talvez, seja por isso que o livro não saia da minha cabeça nesses tempos. Isso porque A sangue frio, um dos meus primeiros clássicos, uma das minhas maiores experiências, me ensinou duas lições.
A primeira delas tem a ver com empatia - aquela empatia que a literatura tem a capacidade despertar, de fornecer a quem lê. Truman Capote poderia ter escrito sobre os Clutter e pronto. Sobre como eles eram bons e foram assassinados de uma maneira horrível - mas, sobretudo, desastrada. Truman Capote nunca foi obrigado a escrever sobre Perry, com quem ele estranhamente simpatizou - e, dizia ele, era como, se criados em uma mesma casa, fosse o irmão que tivesse saído pela porta de trás, enquanto ele saía pela da frente.
Mas Truman Capote, apesar de jornalista, queria fazer também literatura (usou o termo "jornalismo literário") e, como bom autor que era, tinha a capacidade de despertar a compaixão. Portanto, Truman Capote foi além. Ele contou para nós o outro lado da história: a trajetória de Perry Smith. Ele mostrou o que ninguém queria ver, o que ninguém se dispõe a ver. Porque empatia, empatia de verdade, é seguir os dois caminhos: o óbvio, que dói muito, e o difícil que dói ainda mais. É sofrer pelos Clutter, mas igualmente se sentir penalizado por Perry. É ler duas atrocidades: o assassinato de uma família e também a destruição da vida de um jovem desde a sua infância.
E optar pela empatia é traçar esse difícil trajeto. É engolir a parte indigesta de tudo isso. É nem sempre ser compreendido por aqueles que, por mais que querem justiça, não conseguem, por algum motivo, entender a existência de dois lados - mesmo que um seja infinitamente mais complexo e menos imediato de se alcançar do que outro.
A empatia de verdade dói e me leva ao segundo ensinamento: a complexidade das coisas. Desde que li A sangue frio, eu nunca mais consegui ver o mundo em dois campos. Pra mim, o olhar maniqueísta para o mundo é ingênuo, superficial. As pessoas são mais complexas do que "bom" ou "mau", "culpado" e "inocente". Há histórias, há traumas, há problemas.
A sangue frio causa essa estranheza de perceber que, no mundo, não há só dois times e que escolher um lado pode ter boas intenções, mas pode ser também superficial. Afinal, se há os Clutter, há Perry - e Perry ser visto ou não pode ser mais uma questão social do que podem querer fazer parecer. E, talvez, por estar disposto a fazer uma grande obra, Truman Capote pode ter entendido que era necessário encarar esse lado difícil, dolorido e tortuoso que é a natureza humana. Só mostrando os dois lados é que a gente poderia chegar perto de sentir, de entender.
Afinal de contas, é isso que um bom livro faz: muda sua visão de mundo. Eu devo muito a esse livro e, por isso, eu amo muito esse livro. Se hoje, por trás do pano fácil da argumentação unilateral eu sinto que consigo, mesmo que pouco, enxergar uma complexidade, se tento enxergar o outro lado, é por causa desse livro. É por causa de julho de 2010. E por isso eu sou muito grata.
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