spoiler visualizarDanilo 01/05/2024
“Salvar o fogo”: o lado místico que há em cada um de nós
Com o seu segundo romance – Salvar o fogo (2023) – publicado, novamente, pela Editoria Todavia, o baiano Itamar Vieira Júnior consolida seu projeto literário, pautado na espiritualidade mística que todo ser humano carrega em si; no elemento da terra, como território e lugar de pertencimento; o corpo como inscrição do sujeito na vida e as lutas políticas na emancipação de sujeitos marginalizados e excluídos como os pobres e oprimidos, as mulheres, os negros.
Lançado e afamado pelo seu romance de estreia – Torto arado -, que conquistou inúmeros prêmios entre eles o Jabuti, maior prêmio da literatura nacional, neste novo romance alguns elementos permanecem e outros são inseridos. A trama descortina a história de Luzia e sua família na Tapera do Paraguaçu. O lugar é controlado pela Igreja Católica, por meio dos padres e monges de um mosteiro que cobra uma espécie de soldo para que as pessoas possam usar e morar nas terras que teoricamente pertencem ao Mosteiro. Luzia consegue um trabalho de lavadeira das roupas do convento. Marcada por uma deformidade no corpo – uma corcunda nas costas – e por poderes místicos de atear fogo do nada, episódios estes acontecidos na juventude e depois interrompidos, ela se desdobra no cuidado da casa, do pai Mundinho e do seu filho-irmão Moisés. Assim como em Torto arado, a escrita é dividida em partes (A vingança tupinambá; Luzia do Paraguaçu; Manaíba; Alma Selvagem) e as vozes narrativas se alternam. Na primeira parte é Moisés quem narra. Na segunda Luzia, e nas outras duas, um narrador em terceira pessoa mesclando o (in)consciente de diversas personagens da trama.
Mais uma vez a questão da posse da terra é colocada em debate, mas um elemento novo da natureza é trazido: o fogo. Será que podemos esperar uma tetralogia dos quatro elementos: terra, fogo, ar e água?
Outro elemento inovador é a inclusão da personagem Maria Cabocla como uma das irmãs de Luzia, que é uma personagem que advém da aldeia de Torto arado.
A presença do fogo na narrativa nos permite pensar no lado místico que há em cada um de nós. No enredo, não se trata de incutir uma religião institucional no leitor, mas pelo contrário, de questionar a religião enquanto instituição, de mostrar a podridão do dogmatismo e da hipocrisia que culminam em escândalos sexuais e até pedofilia, mas de trabalhar o místico como elemento de identidadade e subjetividade que faz a ligação do sagrado com o mundano. Só somos místicos porque existimos, trazendo aí uma materialidade inerente a todos nós sujeitos terrenos, com corpo material, com produção material na História e em confronto com os poderes. Itamar Júnior parece questionar quando é preciso salvar o fogo. O fogo que devasta é também aquele que cozinha os alimentos, aquece no frio e, inclusive, é utilizado em diversas liturgias, inclusive no catolicismo.
Pode haver também uma ligação de salvar o fogo, com salvar a alma. Os elementos fogo e alma só ganham a metaforização a partir do verbo “salvar”, uma vez que numa sociedade patriarcal, machista, elitista, embranquecida, quem pode-se salvar? Parece que a salvação já está subjugada a alguns poucos e não aos muitos que detêm a força de produção e são alienados do produto da sua força de trabalho. Assim como o fogo, a terra é o lugar do palco da vida e o corpo defeituoso de Luzia, assim como a língua decepada de Belonísia, é a inscrição da vida pulsante e também elemento do místico, porque em momento algum é falado como se desenvolveu, porque havia ali naquelas costas essa corcunda, que é também um questionamento feito em vários momentos da trama.É possível fazer também uma associação, assim como na escrita de Conceição Evaristo, outra autora negra, com o desamparo e a solidão na rudeza dos caminhos da vida. Luzia é violentada e do ato sexual forçado engravida e nasce Moisés, a quem a mãe da personagem já assume como filho e não permite a assunção da maternidade e Luzia vai ficando sozinha, com a partida dos irmãos para outros territórios, se enraizando cada vez mais na sua dor. O filho que foi “coado” no rio, para usar expressão da narrativa, parece surgir-lhe nas costas como a corcunda-marca de suas dores, do filho parido e não desfrutado. É no encontro do Mosteiro deteriorado após uma queimada que Luzia e Moisés vão se encarar como mãe e filho, e como os únicos elementos capazes de Salvar o fogo, porque é o espelho da morte e da vida, do sofrimento e da esperança do (re)nascer.