Bruno.Rafael 31/12/2016Mais que um livro infanto-juvenil!
Para começar, o que Mark Twain fez, mesclando fatos reais com ficção, é muito interessante para o leitor, pois vai conhecer alguns fatos relacionados àquela época da monarquia inglesa e desfrutar de uma agradável história que envolve um príncipe e um rapaz pobre. Não deve ter sido tão simples para o autor escrever, porque essa mistura precisa de pesquisa e de leitura minuciosa para ele poder descrever o ambiente, as vestimentas (que foram detalhadamente descritas até com um certo exagero), o comportamento das pessoas, o sistema social e tudo o mais que contêm no livro relacionado à vida naquele século.
Mas o senhor Samuel Langhorne Clemens (verdadeiro nome do autor) fez uma boa pesquisa, baseada principalmente nos escritos de Hume, e nos presenteou com uma obra que vai além de uma história para crianças e adolescentes.
Em muitos trechos do livro, para-se um pouco para se refletir as idéias expressas pelas palavras, que às vezes precisam ser traduzidas pelo dicionário engrandecendo o vocabulário do leitor. Mas voltando às reflexões, a primeira impressão forte que se tem é a grande desigualdade social. De um lado a nobreza exibindo sua pompa e arrogância, lado onde figura o personagem do príncipe Edward, e no outro lado a miséria e o “buraco” de Offal Court, lar do pobre Tom e sua família. Poucos com muito e muitos com pouco. Assim operava o sistema monárquico ontem e assim opera o sistema capitalista hoje, claro, com as suas diferenças e singularidades.
A troca de papéis entre os garotos foi um tiro que saiu pela culatra para os dois jovens. O príncipe queria se divertir com os outros meninos, rolar na lama, disputar corridas, nadar nos canais e rio, e experimentar tudo que uma criança normalmente fazia. E o pobre Tom queria vestir-se de príncipe e viver como tal, do mesmo modo em que vivia seus sonhos de realeza. Mas o ditado já dizia que “vida boa é a do vizinho”. Dito e feito, os dois trocaram de vida e pouco tempo depois pediam que voltassem atrás, principalmente o príncipe. Já Tom, apesar de relutar no começo e até ser chamado de louco, ainda aproveitou e curtiu seu momento alguns dias depois de se acostumar à nobreza, mas depois se arrependeu depois que viu sua mãe sendo humilhada.
A amizade gratuita de Miles Hendon com Edward acabou sendo benéfica para os dois. Nos braços de John Canty, pai de Tom, Edward pouco poderia fazer para reaver seu trono, mas com a ajuda do ex-prisioneiro Miles Hendon ele conseguiu perspectivas de conseguir seu objetivo. Hendon tratou o príncipe como príncipe, pensando ele que o menino estava doente e não queria piorar a situação do garoto. Com isso, Hendon praticamente adotou Edward, protegeu-o de John e da quadrilha de ladrões e desordeiros, deu-lhe alimento e abrigo nas poucas vezes que podia usufruir destes benefícios, foi atrás do seu protegido quando ele desaparecia ou quando era raptado. No fim, foi agraciado com todo o privilegio que lhe caberia pelos seus atos de bondade para com o príncipe. Há algo de interessante e curioso nessa amizade. Miles Hendon não acreditava que o menino era realmente um príncipe e em seus pensamentos o tratava como um garoto passando por distúrbios psicológicos. Em um momento quando o príncipe lhe pergunta se ele acredita que ele é da realeza, Miles fica apreensivo e se detêm diante da resposta, mas é salvo pela entrada de outro personagem. Já Edward não ligava para os interesses pessoais de seu amigo, o que é comprovado em um trecho em que ele quer que Miles leve uma carta sua para entregar para seu tio em Londres, logo quando Miles acabara de chegar em sua terra natal e estava passando por um momento familiar difícil. Mesmo os dois tornando-se amigos, um mantinha uma ponta de descrédito pelo outro, mas que não afetava o carinho que existia entre eles.
Um rei nunca perde sua majestade. Assim ocorreu com o príncipe Edward que depois da morte de seu pai foi nomeado Rei da Inglaterra. Apesar de estar vivendo uma vida como mendigo, ele nunca se afastou de sua posição, que foi demonstrada no livro pelas suas atitudes e falas. Como por exemplo, no momento em que ele estava na casa de Miles Hendon e pediu, como se Miles fosse um de seus servos, para que ele tirasse a sua roupa e lhe desse banho, e mais ainda, o príncipe dormiu na cama do seu defensor e Miles dormiu no chão. Como Miles pensava que o pobre garoto estava passando por problemas de loucura, ele não ligou para o modo de agir e pensar do garoto. Nunca passou pela cabeça de Edward que ele teria que continuar vivendo como mendigo e que teria de deixar o trono. Ele sempre se sentiu na sua devida posição de príncipe e posteriormente, rei. Sua petulância e às vezes arrogância para com as pessoas de má índole e castigadoras sempre foram dignas de um juiz. Era uma autoridade sem símbolos que o justificasse. Então surge uma questão: uma pessoa nasce para ser aquilo que é na sua vida ou pode modificá-la com seus atos? O destino existe ou podemos com nosso livre arbítrio moldar o futuro a nosso gosto?
A crueldade do ser humano pode chegar a pontos extremos. Essa deve ser uma das reflexões mais fortes que o livro nos oferece. Há alguns trechos de crueldade no livro, como as torturas de John Canty para Tom e sua família, o menino das chicotadas e, principalmente, as leis cruéis que existiam na Inglaterra, mas vamos ficar com um trecho específico: a morte das mulheres batistas. No período em que Edward e Miles Hendon ficaram na cadeia, o príncipe conheceu duas mulheres que deram consolo para ele. Essas mulheres foram condenadas por serem batistas, e isso deixou o príncipe perplexo por tamanho absurdo. Mais perplexo ainda, ficou quando ele viu que a pena para as mulheres seria a morte na fogueira. Ele, rei daquela nação, que poderia mandar e desmandar a seu bel-prazer estava prestes a ver uma grande injustiça sem poder fazer nada. Esse trecho do livro é tão denso e pesado que se alguém lesse apenas essa parte, não acreditaria se tratar de um livro para crianças. Há uma cena perturbadora em que aparece as filhas das mulheres correndo para junto das suas mães, gritando e chorando, até que os guardas as tiraram à força, e depois surge os gritos de dor das mulheres sendo queimadas vivas! Horrível para um adulto, quem dirá para uma criança. Fato esse compartilhado pelo autor no seguinte trecho, onde o príncipe fala:
“- Isso que eu vi, nesse momento fugaz, jamais sairá da minha memória, aí permanecerá. Verei a cena todos os dias, e o sonho do que se passou todas as noites, até morrer. Quisesse Deus que eu fosse cego!”
É uma ficção, uma narrativa inventada por Mark Twain, mas isso aconteceu na Idade Média e foi bem real. Quais tantas outras mortes e torturas cruéis foram executadas naquele tempo e quantas injustiças foram praticadas sem oportunidade de defesa pelas vítimas? Com certeza muitas. Vamos pensar e refletir, assim como o príncipe fez, para que relatos de crueldade sejam minimizados e se possível, extinguidos. Assim o fez o rei Edward VI no seu curto tempo de reinado, que foi “singularmente misericordioso para aqueles tempos duros”. E assim deviam fazer os atuais governantes: conhecer o seu povo e as moléstias da sociedade para que possam criar políticas que tragam justiça, paz e felicidade para a população que lhe confiou o papel de líder.
Existe outras reflexões que podem ser trazidas à tona, mas isso caberia melhor em um estudo longo do que em uma resenha. Não é só em livros complexos que o leitor pode ter insights, o simples também pode vislumbrar idéias reflexivas e boas oportunidades para se aprofundar no oceano dos pensamentos.