Mark 03/12/2023
Como pode um nobre menino sofrer tanto?
Há aproximadamente três anos atrás conheci este título por meio de uma pessoa muito especial que apreciava demais esta obra e tinha por ela um carinho imenso, mas até então o desejo por sua leitura ainda não me havia aflorado ao peito.
Foi apenas por meio de alguns comentários de outras pessoas nas redes sociais, que ao falarem sobre este livro, me fez despertar uma leve vontade de lê-lo, o que me fez o salvar em minha lista de compras por alguns meses. Por fim, e graças a Deus, por meio de uma amiga querida, o livro voltou a ser tema de conversas em meu dia, e decidi então comprá-lo e mergulhar em sua história.
Entrei sem muito saber o que esperar, afinal acreditei ser uma obra infantil, algo para me divertir e fazer sorrir a criança interior que em mim habita... ledo engano! Dentre muitas camadas que o livro tem, escolho aqui comentar um pouco sobre minhas percepções quando às agressões que o garoto sofre em sua casa e o contraste de personalidade que ele denota ao receber um pouco de afeto.
Um livro repleto de camadas sociais e culturais, nos direciona a uma caminhada de observação sobre uma criança de cinco anos, rejeitada por sua família por ser um menino deveras levado e inquieto. Zezé, o famoso menininho com o "sangue do diabo", como assim o chamam os familiares, é uma criança muito inteligente, com desejo de ser um grande poeta e que ama palavras difíceis (aos seus olhos), prazer este que é alimentado por seu tio que lhe ensina sobre as palavras e a vida, de modo sutil.
Zezé tem tudo em mãos para ser um grande homem no futuro, mas sua condição social é deplorável e o aprisiona com as correntes da miséria em uma vida de sofrimento e rejeição. Seu pai, uma das vítimas do período de recesso econômico que passa o país na época, segue arduamente em busca de trabalho, mas nada encontra. Sua mãe aplica-se a trabalhar e o pouco que recebe consegue sustentar miseravelmente a família grande de filhos que pariu.
Zezé então é um menino que vive solto no mundo, praticamente criado pelos irmãos que muito judiam no pobre menino, dotado de uma criatividade surreal, desconta toda sua energia em aprontar poucas e boas, "tocando o terror" na rua, sendo então conhecido por suas traquinagens.
Observo que no decorrer da história as peraltices (se é que esta palavra existe) do Zezé e toda sua "ruindade", como classificam seus irmãos, se dá pela falta de afeto em casa, de uma boa educação que lhe ensine o certo e o errado de modo adequado. Mas infelizmente, e desgraçadamente, a lógica que impera na casa do menino é a lei da palmada, onde arduamente espancam o pobre garoto a qualquer sinal de traquinagem, mesmo que ele de fato não as tenha feito.
Este ponto em especial do livro me assustou, pois em certos recortes do livro o garoto nos narra que nada estava fazendo e é espancado por seus irmãos e pai por qualquer motivo, que muito se mostra como um desconto de suas frustrações pessoais sobre o menino. Há um trecho em especial que me arrasou e arrebatou o fôlego, quando o menino estava fazendo um balão para brincar e a desgraçada de sua irmã mais velha, por simplesmente não ter paciência em esperar o menino terminar sua atividade (o que lhe custaria esperar um pouco?) grita com o menino e o leva a um alto nível de estrece que, quando reage às agressões da irmã, é agredido desgraçadamente ao ponto de ter seu rosto desfigurado por tapas e murros.
O livro nos apresenta vários outros momentos em que o garoto apanha sem sequer saber por qual motivo está levando tão severa surra. Isso nos mostra muito sobre a lógica de criação dos filhos, infelizmente, ainda imperante sobre muitos lares do nosso Brasil. Crianças que diariamente são espancadas, agredidas e reduzidas a sacos de pancadas de adultos frustrados com suas próprias dores e angústias, o que em um momento de extremo sofrimento, leva o menino a planejar sua própria morte. (Observem bem! estamos aqui falando de uma criança de cinco anos planejando suicídio por se sentir rejeitada e fonte de toda desgraça em casa.)
Este garoto então, sem ter afeto de sua família, com exceção de sua irmã glória, que é a única misericordiosa com o garoto, encontra em uma figura inesperada o amor paterno, o cuidado e o zelo por sua vida. O tal portuga, um senhor com condição financeira melhor que a da família do menino, aos poucos lhe conquista o coração ao ponto de o garoto compreender que o amor de família não está no sangue que corre às veias, mas sim nas ações que temos com as pessoas. Achei doce, emocionante, surreal, quando o garoto encontra no "portuga" um pai para si e lhe pede que o compre, que dê à sua família dinheiro em troca do garoto para que possa morar com o que agora de fato considera seu pai. Que momento lindo, quando este menino aprende o que é o amor paterno.
Com o passar do livro, vemos nas páginas muitos momentos em que é comprovado a forma como o menino internaliza tudo que lhe dizem em casa sobre si. A prova disto são os momentos em que a professora da escola e o portuga tecem comentários positivos sobre o pequeno garoto e ele prontamente lhes repreende afirmando que ele "tem o sangue do diabo" e repete tantas outras frases que seus irmãos lhe direcionam em momentos de fúria interna deles mediante às traquinas do guri.
Mas ao receber o afeto da professora e do "Portuga", o garoto se transforma em uma criança amplamente contrastante com o que é em casa e na rua. Coberto por um manto de afeto o menino "endiabrado" se revela uma criança doce, emotiva e de uma pureza e inocência sem igual.
As cenas finais do livro, a dor e angústia que o pobre menino sofre com a morte do portuga me travaram o coração, mente, respiração, o existir! Quanta dor e quanta dor sincera o menino sente ao saber que sua única fonte de amor verdadeiro, como ele mesmo se expressa, agora está morta e ele terá de voltar a viver sozinho o farto de suportar não apenas os açoites de casa, mas também o fardo de viver sem o amor que toda criança deveria receber naturalmente, o amor de um pai.
Este livro mais que me surpreendeu, me tirou o fôlego, lágrimas e me trouxe gatilhos emocionais à mente que me revelaram um Zezé dentro de mim precisando de atenção.
Leia este livro, mas leia com carinho, leia com o seu Zezé sentado em seu colo, fazendo cafuné nele, pois este menino precisa de todo amor do mundo.
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