Marcella.Martha 02/08/2018
Eu tenho duas opiniões distintas e opostas sobre The Power e, por incrível que pareça, elas conseguem coexistir. The Power não é um livro qualquer, não é só uma coisa. Dependendo de como você olha, pode ser um ótimo livro ou um livro bem mais ou menos.
A primeira opinião diz respeito a The Power enquanto um espelho da nossa sociedade. No universo distópico do livro, um belo dia, (quase) todas as meninas ganham um novo órgão no corpo capaz de sintetizar e manipular eletricidade tal qual uma enguia. Essas mesmas meninas passam então a ser capazes de despertar o mesmo poder em mulheres mais velhas e, assim, no que foi chamado O Dia Das Garotas, todas as mulheres do mundo ganham uma força física impossível de segurar. Realiza a bagunça.
The Power é um relato, do ponto de vista de quatro personagens diferentes, sobre como esse poder inverte completamente as relações de poder na sociedade. As mulheres se libertam em massa da opressão, tomam o poder (a força ou não) no mundo inteiro, o exército passa a ser formado quase que exclusivamente por elas. Surgem as milícias femininas, os grupos criminosos, os países independentes governados exclusivamente por mulheres onde homens precisam de permissão de uma "guardiã" para sequer saírem de casa, sob o risco de serem atacados na rua. Revoluções acontecem a torto e a direito de um lado a outro do planeta, desde mulheres muçulmanas vivendo uma espécie de primavera árabe feminina, até vítimas de tráfico sexual se libertando das prisões caseiras onde eram violentadas diariamente. A religião muda de rosto, com mulheres como figuras proeminentes e Deus ganhando artigos femininos. Os grupos de homens que se revoltam e se levantam contra as organizações femininas são tratados como terroristas e extremistas radicais. Tudo isso porque um gênero ganha superioridade física sobre o outro.
Eu não sei se chamaria isso de distopia exatamente porque não deixa de ser a nossa realidade atual, só que ao contrário. No mundo de hoje, mulheres vivem com medo, acuadas, violentadas, exploradas, subjugadas simplesmente porque, do ponto de vista físico, os homens quase sempre levam vantagem. Desde que o mundo é mundo, a história é contada - e ditada - pelos homens. A mulher, sempre tratada como uma coisa frágil e facilmente manipulável, foi, durante a maior parte da nossa existência, e continua sendo em muitos lugares, relegada à uma classe inferior de cidadania. Privada de educação formal, de acesso ao conhecimento, de liberdades básicas, de independência. The Power retrata essa realidade exatamente como ela é, mas ao contrário. Nada do que acontece aos homens a partir do Dia das Garotas é novidade para uma mulher.
Mas nada disso vem sem crítica ou em tom de vingança merecida. A autora rebate as noções de que o sexo feminino é naturalmente gentil, caridoso e maternal, enquanto homens seriam naturalmente mais raivosos e violentos. Mostra os absurdos para os quais essa superioridade física e o status geram, a forma como tudo acaba descambando para o caos só porque, de repente, pode. Homens como criaturas fragilizadas, domésticas, bebês do sexo masculino sendo abortados porque quem é que vai querer um filho homem? O poder corrompe e molda, dita as construções sociais, não tem nada a ver com gênero.
Desse ponto de vista, The Power é incrível. Extremamente realista e até deprimente, mas ainda assim importante. Todo homem deveria ler esse livro, aliás.
Minha segunda opinião tem a ver com o livro enquanto uma narrativa em si. A história contada. E aí eu já tenho minhas dúvidas. O começo é bastante promissor, os personagens bastante interessantes e diversos entre si. O desenrolar das coisas cria uma expectativa para ver onde vai dar. Mas é fraco. O arco narrativo, em si, não é grande coisa. Os personagens acabam muito rasos. E a conclusão é bastante qualquer coisa. Enquanto uma obra de ficção, eu diria que The Power é decepcionante.
Na hora de colocar as duas coisas na balança, eu acho que o primeiro aspecto pesa mais. Mesmo se você desconsiderar todos os pontos da história que poderiam ter sido melhor trabalhados, The Power ainda carrega uma força absurda só pelo tema. Eu raramente tenho vontade de sublinhas e fazer anotações e colocar post-its nas páginas dos livros, mas esse eu queria marcar o tempo inteiro (só não fiz isso porque eu tenho muito apreço pelos meus livros, dá licença).
Se você quer uma narrativa maravilhosa, provavelmente esse não é o livro pra você. Mas se quiser ler uma metáfora bastante forte para a nossa realidade, então vai fundo.