Marina 21/06/2020
Crónica de um romance anunciado
As primeiras linhas de "Gabriela cravo e canela" já informam toda a trama do livro: de quando Gabriela chega a Ilhéus e vira cozinheira de Nacib; ou de quando Mundinho Falcão e o coronel Ramiro Bastos disputam o poder; ou do ano em que o coronel Jesuíno Mendonça matou a sua esposa, dona Sinhazinha Guedes Mendonça e o cirurgião-dentista Osmundo Pimentel, por infidelidade.
Num primeiro momento, temos o tradicional pipoco de personagens das obras de Jorge Amado. São tantas figuras importantes para conhecer, tantas coisas rolando... que temos que insistir na leitura até pegar o seu ritmo... e que ritmo!
Primeiro conhecemos o árabe Nacib, os outros habitantes da cidade (o Capitão, o Doutor, Tonico Bastos, Josué, Malvina...) e claro, a própria Ilhéus:
"Essa terra de Ilhéus, sua terra, estava longe de ser realmente civilizada. Falava-se muito em progresso, o dinheiro corria solto, o cacau rasgava estradas, erguia povoados, mudava o
aspecto da cidade, mas conservavam-se os costumes antigos, aquele horror...".
Mas quando Gabriela chega (no mesmo dia em que os amantes foram mortos, no mesmo dia que Nacib fica sem cozinheira e que Mundinho Falcão chega do RJ disposto a fazer política em Ilhéus), traz com ela a revolução.
Gabriela chega quando o progresso se assoma a Ilhéus: o povo começa a apoiar quem realmente quer ver a cidade evoluir e a violência de antanho já não é bem vista.
O autor consegue fazer uma crítica ao passado: "Para tal cargo Mundinho não tinha nenhuma possibilidade. Mesmo que ganhasse em Ilhéus, perderia em Itabuna e em Una, e no interior do município as eleições seriam fraudadas". Mas também faz uma ode ao futuro, pois o "final feliz" é um final onde a cidade cresce, as traições são perdoadas e a violência é condenada.
Adoro a forma como os homens da cidade são grandes fofoqueiros (Nacib o primeiro). Também achei curioso que Nacib parece ser o grande protagonista, pois a ele acompanhamos o livro todo. Valente por fora, terno por dentro. De costumes antigos, mas de cabeça aberta.
Mas é Gabriela, com sua sensualidade nordestina, sua doçura, seu sorriso, seu gingado e seu tempero, que conseguiu expor o ridículo de alguns costumes. Ela representa essa mudança. E o livro trata de mudança.
Como senhora Saad, estava triste e presa. Como Gabriela, era livre, só queria amar, não tinha ciúmes, não tinha ambições. Era linda. E Nacib percebeu que a amava quando ela era quem era.
Gabriela, do seu jeito livre, também amava Nacib. E era fiel a ele de coração. Não aceitava propostas de outros, não queria o dinheiro, nem bens de outros. Mas não se importava que ele estivesse com outras mulheres, nem de dormir com outros homens. Fico imaginando o legal que é escrever sobre uma mulher assim (e conseguir que todos a amem), nos anos 50!
Gabriela, que foi abusada pelo seu tio ainda bem nova (por isso sua sutil repulsa a homens mais velhos), mas que veio do sertão, disposta a trabalhar, ser feliz. E foi feliz. E o coronel que matou sua esposa, foi condenado. Tudo termina como tem que terminar.