Gil Manga 31/03/2024
Octavia e Eu
Quando eu tinha entre nove e dez anos decidi ser um escritor. Uma criança, nascida em uma cidade pequena na beira do Velho Chico, distante de tudo, havia decidido que escrever era uma boa coisa para se querer no futuro. Passei algum tempo lendo a biografia de alguns autores na contracapa, ou nas orelhas de livros. Alguns desses jamais li, mas sabia sobre a vida de seus autores.
Era um trabalho para mim: buscar algum autor que tivesse qualquer semelhança com minha vida. Entre Vinícius, Drummond, Clarice, Mário de Andrade, frustrava-me, mas continuava a busca. Foi já grande que eu conheci esses autores como eu. Octavia Butler é um deles. Filha de um engraxate e uma empregada doméstica, ela também achou uma boa ideia querer escrever. Não apesar de ser preta e pobre, imagino eu, mas por essas razões.
Enquanto lia ?Kindred? , pegava-me pensando como era maravilhoso que Octavia tenha decidido que era um bom negócio escrever. Imaginei que talvez não tivesse tido a boa vida dos autores geniais que li, que muito jovem já escreviam para jornais, frequentavam com facilidade as casas dos literatos e publicaram cedo seus primeiros livros. Fiquei agradecido também por ela não ter se resignado, pois estava eu entusiasmado, ansioso, empolgado com a história de Dana, Alice, Rufus, Kevin?
Em Kindred, Octavia Butler leva Dana a viajar no tempo, protagonista do seu livro. Um tempo em que o sul dos Estados Unidos era escravista e ser negro era pior do que o ano 1976, época que vive Dana. Entre idas e vindas, a personagem tenta comp?eender o quanto a sua história está relacionada ao passado escravista. Das péssimas condições de trabalho do presente, para a escravidão do passado. Algumas coisas parecem mudar, outras nem tanto.
Não é segredo meu amor por histórias sobre viagem no tempo. Alguns dos meus filmes e séries favoritos são sobre essa temática e Octavia não decepciona o epíteto de ? a grande dama da ficção científica?, que está na capa da edição que li e que talvez jamais seria usado para se referir a um homem. Na história, Dana também escreve e, talvez, também não ficasse feliz em ser chamada de dama, quando poderia ser chamada de escritora.
Apesar disso, o livro nos leva junto na viagem, não sem repulsa, não sem contradições e raiva. A história dos estereótipos negros na literatura ocidental é revisitado com uma crítica que vai além dos clichês de sempre. Alguns momentos ser um deles parece algo certo a se fazer para permanecer vivo, na escrita de Octavia Butler. A personagem se vê diante deles e nos coloca diante das inúmeras contradições sobre a histórias das pessoas negras no período escravista.