Dhiego Morais 26/02/2018Kindred: uma história para ser lembradaMudanças significam algumas vezes uma nova oportunidade de permitir-se um recomeço. As raízes antigas são extraídas do antigo solo, feito uma planta caseira, que agora migrará para um novo vaso. Esse novo vaso, para nós, se traduz na forma de um novo lar. Recomeçar é reconstruir-se no futuro, firmando-se em parte no próprio presente, ou assim normalmente deveria ser, afinal, quem hoje em dia ainda acredita em viagens no tempo, certo?
Antes de ter lido Kindred, eu havia me aventurado por Bloodchild (resenha em breve), uma short story muito bem escrita e desenvolvida pela dama da ficção científica, Octavia E. Butler. Dessa maneira, já conhecia a prosa da autora, que me agradara bastante, e guardava ótimas expectativas para uma de suas obras mais elogiadas. Com o trabalho exemplar da editora Morro Branco, Octavia finalmente ganha uma boa e merecida casa editorial no Brasil, e a espera valeu muito a pena, posso afirmar.
?Escrevo sobre pessoas que fazem coisas extraordinárias. E isso coincidiu de ser chamado ficção científica?. - Octavia E. Butler
Em Kindred, Octavia leva os seus leitores até 1976, onde conhecemos Dana, uma mulher jovem, forte e decidida, que acabara de se mudar de seu apartamento em Los Angeles, junto de Kevin, seu esposo, para o novo lar, em Altadena. Cansados demais até mesmo para comemorar o aniversário de Dana ? que completava vinte e seis anos ?, enquanto ela se ocupava com a organização dos livros, Kevin tentava capturar alguma inspiração no ar. Esse recomeço de vida poderia ser como qualquer outro, mas não seria uma obra de Butler se algo excepcional não acontecesse. A história se transforma quando Dana se sente tonta e, repentinamente, desaparece da sala.
O próprio início de Kindred é bem peculiar, já que a autora opta por narrar a sua trama justamente do final, quando Dana precisa justificar à polícia o estrago que ocorrera em sua última ?volta?, tendo perdido o braço esquerdo. Aqui o toque da ficção especulativa começa a tingir as páginas, enquanto Octavia amarra seus leitores à sua narrativa, habilidosamente envolvente. Há no ar certo tom de mistério, que tende a desabrochar na medida em que os capítulos prosseguem.
Quando Dana desaparece, a jovem ressurge primeiramente próxima a um rio, e logo não tarda para que escute o som de alguém se afogando nas águas mais a frente. Em um ímpeto, Dana consegue resgatar um garoto e, graças ao mínimo conhecimento de salvamento, traz o pequeno de volta à vida. A mãe do menino logo aparece, em trajes atípicos de sua época, junto do pai. De salvadora, Dana passa a intrusa, enquanto o cano de uma espingarda lhe é apontada. Apavorada, estranhamente ela é sugada de volta para o seu lar, como em um piscar de olhos, encharcada e aterrorizada. Dana de alguma maneira viajou no tempo e isso é algo que está fora de seu controle e do de Kevin, pois essa foi apenas a primeira vez. Quantas mais acontecerão até que algum desastre ocorra?
?A pele negra. Ela qué dizê que ocê deve mandá pro inferno as pessoa que diz que ocê é algo que não é?.
Uma das coisas mais interessantes da ficção especulativa, como a fantasia e, neste caso, a ficção científica, é poder abordar, tratar de temas passados, que precisam se manter vivos na mente humana, e temas extremamente atuais com o recurso de poder construir personagens e ambientes espetaculares, cativantes e surpreendentemente realistas. Dependendo da forma narrativa escolhida, em primeira, segunda ou terceira pessoa, diferentes visões e sensações são transmitidas aos leitores sob diferentes óticas. Em Kindred, Octavia discorre em primeira, o que permite que seus leitores escolham vestir a pele da personagem, que neste caso segue Dana, uma jovem mulher, negra, que sem qualquer controle sobre o que a rodeia, aterrissa em uma Maryland do início do século XIX, em pré-Guerra Civil, configurando um dos piores ambientes para uma mulher negra viver, em pleno regime de escravidão.
Em Kindred, Octavia nos apresenta uma série de personagens que se dividem entre duas épocas, e, portanto, em duas vertentes de pensamento. Dana é uma mulher forte e resiliente, que tenta lidar da melhor maneira com o seu problema temporal, que a puxa como um bumerangue para uma época racista, machista e perigosa, ciente de que deve tomar cuidado com as transformações que pode realizar em uma época que não é a sua, sem se desprender inteiramente de seu próprio caráter e de seus direitos e respeito. Kevin, o marido, tem a sua participação na obra e, embora não seja negro e, por isso não corra risco imediato, o jovem escritor é posto com frequência a enfrentar os problemas históricos que atingem Dona diretamente, sob a visão de homem branco e fingido escravagista. Do outro lado, Octavia E. Butler convida os leitores a conhecerem Tom e Rufus Weylin, pai e filho, respectivamente. Enquanto Tom é um dono de escravos, homem bruto, direto e pouco amoroso com a própria família, Rufus é a figura peculiar que atrai Dana, atravessando espaço e tempo. A relação dos dois é o foco do romance ficcional da autora.
?A dor nunca tinha sido minha amiga antes, mas agora, ela me mantinha parada. Ela forçava a realidade em mim e me mantinha sã?.
A ambientação, o cenário construído por Octavia é digno de nota. Não é difícil imergir na Maryland de 1815, pois a narrativa da autora consegue prender sem muito esforço. No entanto, por mais fácil que seja a imersão, não se torna menos dolorosa a leitura, na medida em que percebemos realmente em que época passamos a viver, sob a ótica de Dana. Em um país que começava a ferver, anunciando anos mais tarde a guerra civil que dividiria a nação, aliado a um contexto histórico escravagista, que via o povo negro como mercadoria, como objeto e ferramenta de serviço; em uma época em que o sequestro, a violência e o estupro de negras e negros era fator comum; quando a chibata corria solta e os capatazes eram sombras que anunciavam o medo... Octavia traz a tona um assunto forte e doloroso, que levanta uma série de assuntos relevantes para debate.
Kindred é uma história envolvente, que busca descobrir feridas esquecidas, valendo-se de personagens representativos para resgatar temas de um passado que não deveria nunca ser esquecido. Kindred é, sobretudo, a respeito de identidade e igualdade, mas também versa sobre poder, respeito, empoderamento e direitos. É duro observar sem poder interferir quando um povo massacra outro por se sentir superior devido ao seu tom de pele, quando na verdade, em todos nós, corre o mesmo sangue, vermelho-vida. Octavia prova em sua prosa que a ficção é capaz de ser o espelho atemporal da própria humanidade.