Rosa Santana 01/02/2011
Kafka à beira-mar, Haruki Marakami, Alfaguara, 2008, 571 páginas
Bem edipiano, esse livro conta a história de Kafka, um jovem de quinze anos que recebe uma maldita profecia: matará o pai para se relacionar sexualmente com a mãe e com a irmã. E, ainda parodiando Édipo, que se cega para melhor se ver por dentro, esse aqui parte para uma floresta e se deixa "perder" nela e, negando forças externas, busca seu mundo interior (George Lukács diz, em seu "Teoria do Romance“: 'verdadeira essência do trágico': a solidão".). Mas, sai de lá para enfrentar o mundo.
De caráter fantástico, essa é uma narrativa, sinuosa e cheia de pontas que exigem atenção e desvelo para serem atadas, pois elas se desviam e desviam, também, o leitor! E é somente a dedicação que nos possibilita entender a história dos dois personagens principais, que mesmo nunca tendo chegado a se verem, são capazes de cometer atos um pelo outro, numa "transposição" de espíritos, como se fossem uma força única... Essa parece ser a chamada prática do ikiryou, que inclusive é descrita no romance em forma de metalinguagem via conversa dos personagens sobre vários livros, literários ou não em cujas páginas é vivenciada.
Kafka Tamura e Satoru Nakata são os personagens que se “transubstanciam”. O primeiro tem a “missão” de matar o pai, mas é o segundo quem o faz, como se fosse o outro... Ambos são fugitivos, um do pai, em primeira instância e, depois, da polícia, porque, muito novo, não pode viver sozinho e longe da escola, conforme as leis do seu país; o segundo, por ter cometido um assassinato contra um escultor (pai de Kafka) que lhe matava os queridos gatos. Kafka sai de sua cidade e vai para Takamatsu, arruma trabalho em uma biblioteca, onde se dedica, sobretudo, à leitura... e, quando a polícia “exige”, se esconde em uma propriedade isolada, nas montanhas, procurando, também, solidão e crescimento. Nakata, após o assassinato, vai, igualmente, para Takamatsu, porque sabe: deve ir para tal cidade. Quem o diz? Uma grande força que conduz os personagens a tal ponto de eles agirem sem mesmo saber bem o como e o porquê de seus atos. E aqui voltamos à característica da tragédia em que o os personagens, comandados pelo Destino, não têm forças para lutar contra...
Nakata, por ser analfabeto, necessita de ajuda para chegar aonde precisa ir. Aparece então Hoshino, o personagem, que, a partir daí, passa também a ser comandado pelo Destino! Inclusive, depois da morte de Nakata de quem se torna grande amigo, herda-lhe o “poder” de conversar com gatos e, conseqüentemente, de outros dons sobrenaturais.
Murakami constrói sua narrativa mesclando a cultura popular japonesa com a mundial. Em suas páginas, faz desfilar Charles Dickens, Anton Tchekhov, Schubert, François Truffaut, Arnold Schwarzenegger, John Walker, Walt Disney, tragédias gregas, como a de Cassandra, As Mil e uma Noites, A Noviça Rebelde, e, claro, Franz Kafka, de quem “rouba” o nome do personagem principal, que, segundo ele mesmo, significa “corvo”! Um “corvo” que se devora a si mesmo, buscando pessoalidade em um mundo em que as forças externas governam o indivíduo impedindo-o de agir por conta própria. Mas um “corvo” que, sobretudo, procura o equilíbrio entre essas duas forças que governam os seres: o mundo interior e o que lhe faz oposição. Kafka busca seu espelho, mas, também, aprende que deve quebrá-lo, para se abrir para o outro, para o mundo...
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Para terminar minhas considerações, trago um poema de Cecília Meireles, do livro “Cânticos” que se liga à trajetória dos personagens:
“Não tem mais lar o que mora em tudo
Não há mais dádivas
Para os que não têm mãos
Não há mundos nem caminhos
Para o que é maior que os caminhos
E os mundos.
Não há mais nada além de ti.
Porque te dispersaste...
Circulas em todas as vidas *
Pairas sobre todas as vidas *
E todas te sentem
Sentem-te como a si mesmos.
E não sabem falar de ti.”
* Esses versos, sobretudo, refletem Kafka, que é Corvo, que é Nakata que é Hoshino, que é....
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Não estou considerando esse escrito uma “resenha”, até por que essa é uma narrativa bem difícil de ser abarcada em um texto curto, dada a sua quantidade de pontas que o Murakami vai deixando para o leitor atar. Mas, em linhas gerais é a isso que veio quando li “Kafka à beira-mar”...
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