Gildo 27/09/2015
Um tempo nas origens
Deste livro, muito se falou. Inclusive ouvi que as origens de muitos de nossos problemas pareceriam claras durante a leitura de 1808, a corrupção no Brasil, a morosidade dos serviços, um certo desleixo no conviver. E isso, em parte, pode ser verdade, mas não só isso.
Ao esclarecer as circunstâncias da fuga de Dom João VI para o Brasil, o Laurentino Gomes ilumina esse período que foi de grandes transformações no país e que culminaria em sua independência pouco mais de uma década depois. Já é folclórica a figura de Dom João. O príncipe regente ficou famoso (inclusive no cinema e na tv) por ter um perfil meio acovardado, grotesco até, apaixonado por galinha assada, que vivia em meio ao desleixo, fora de forma e sempre, acima de tudo, indeciso. Talvez seja essa a imagem do monarca a ficar para a História e que gerou a lenda do país moroso e corruptível que se tornaria o Brasil moderno, uma nação a espelho de seu rei.
No entanto, o que virou referência para o livro não é a toda a sua essência. Não é simplesmente essa a imagem - a caricatura de um rei covarde numa colônia corrupta - que Laurentino passa em 1808. Há outro lado. A presença da família real no Brasil ('o primeiro rei europeu a pisar em solo americano') trouxe inovação e desenvolvimento à sociedade e principalmente à cidade do Rio de Janeiro. A decisão crucial que alavancou as mudanças brasileiras foi a abertura dos portos, decisão tomada logo que o regente desembarcou em Salvador, antes mesmo de chegar à capital fluminense. Foi quando o Brasil deixou de depender tanto de Portugal, aumentando suas relações diretas com o resto do mundo, principalmente a Inglaterra que havia auxiliado na fuga de Dom João. Também foi a oportunidade de produtos, da cultura estrangeira começarem a fazer parte de uma sociedade até então descrita como provinciana e caipira.
Os hábitos brasileiros (péssima limpeza pública, falta de organização) começaram a ser modificados com a presença da família real. Por outro lado, a monarquia também parece ter sido afetada pelo jeito de viver da colônia. Dom João não era grande referência de realeza, mas parecia ainda mais esdrúxulo no Brasil: vivia mal vestido, sujo e com aparência largada. Carlota Joaquina, a princesa, igualmente desleixada, acentuava seu perfil colérico e intempestivo com roupas nada nobres. Engraçado imaginar que tais situações acontecem de maneira semelhante ainda hoje, com estrangeiros que visitam o Brasil. Parece que o 'relaxamento' tipicamente nacional contagia e agrada o gringo que chega cansado das regras e da austeridade europeias. Nove entre dez estrangeiros que decidem morar no Brasil gostam da 'liberdade' daqui.
Talvez sem querer, Dom João plantou a semente da independência do Brasil durante sua visita. Quando abriu os portos, acentuou a presença do país como nação e ofuscou o papel de colônia. Quando teve de voltar a Portugal, pressionado pelas revoltas e pela ameaça de perder o trono definitivamente, sabia que o Brasil se tornaria independente numa questão de tempo.
1808 também traz personagens fascinantes como o bibliotecário Marrocos, que numa troca de quase duzentas cartas com sua família, em Portugal, conseguiu traduzir e descrever o dia a dia dos brasileiros. Marrocos, em suas questões pessoais, mostra como chegou desacreditado e enojado com os hábitos da colônia e como, em poucos anos, passou a gostar e amar o país, ficando aqui mesmo quando a família real retorna a Lisboa. Outro mito da 'paixão estrangeira pelo Brasil'.
Há, também, claro, os indícios da origem da corrupção de que tanto falam. A própria coroa, para angariar fundos, acabou vendendo títulos de nobreza a preço de banana, simplesmente para arrecadar trocados a mais. Muitos enriqueceram a partir de relações promíscuas com a administração pública. E tem-se, assim, o germinar de um crime de administração que nos persegue desde então. A própria perpetuação do escravagismo no Brasil se deve, de certa forma, à uma dependência da administração aos senhores de engenho e mercadores de pessoas. Num número assustador, imagina-se que cerca de 10 milhões de escravos tenham sido trazidos da África para a América, pelo menos 40% ao Brasil. Foi o horror descrito por estrangeiros que visitavam o Rio de Janeiro que começaram a jogar luz sobre as injustiças desse sistema.
1808 é esclarecedor, não somente em história, mas em processos do sistema de gestão do Brasil, num atraso secular e numa maneira de raciocínio que nos perturba e nos corrompe até hoje. Seria, talvez, ainda pior se Dom João não tivesse fugido para o Brasil. Mas não foi o melhor dos caminhos para garantir um país independente e desenvolvido.