Tórtoro 17/09/2010
JESUSALÉM DE MEU PAI
Como a vida de meus pais, atualmente, virou a primeira coisa em que penso quando acordo e a última que me vem à cabeça, antes de dormir, tenho usado a leitura para me distrair, principalmente nos finais de semana.
E, numa dessas leituras, conheci Silvestre Vitalício que leva um grupo de moçambicanos a fugir da vida e se refugiarem numa terra de ninguém: Jesusalém.
Meu pai, que sempre amou existir, já há algum tempo resolveu fugir da vida e enclausurar-se dentro de sua própria casa: talvez como Silvestre, vendo aproximar-se a idade e a morte, escolheu deixar de ser pessoa e, assim, imaginou que se sentiria morrer menos — deixou que seus demônios interiores o devorassem.
Por esse motivo, já faz algum tempo que vivo como se viajando sobre uma ogiva nuclear prestes a explodir, e o pior, conhecendo a forma de como poderia desarmá-la , evitando, assim, um pior desenlace para esse pesadelo.
O motivo das angústias que tomam conta de mim advém da necessidade da constante troca de foco que ora está em meus afazeres ligados ao trabalho e à família, e ora está voltado para as dificuldades vividas por meus pais, octogenários. Esses focos se revezam em minha mente como pontos e traços de um alfabeto Morse, escrevendo uma mensagem que parece não terá fim.
Meu pai fez de sua residência a sua Jesusalém particular, levando ao sofrimento ininterrupto não somente cinco personagens, como no livro de Mia Couto, Antes de nascer o mundo, mas todos aqueles que por ele se sentem responsáveis.
Ele, que sempre foi solução, nos últimos tempos transformou-se num problema que poderia ter múltiplas respostas no campo racional mas, irracionalmente, ele não aceita nenhuma.
Tal qual Antero, personagem da novela Passione, da Globo, ele não admite intromissão em sua vida, não permite a adoção de qualquer saída que não seja a impossível: que os filhos casados deixem seus parceiros, suas próprias vidas e famílias e fiquem à sua disposição vinte e quatro horas por dia.
Como a maioria dos idosos, ele não aceita morar em outro local que não seja a sua casa, não aceita a presença de estranhos para cuidar dele, não aceita separar-se de minha mãe doente assim como não aceita mudar-se para uma clínica especial para tratamento de idosos: mas continuam a ligar para minha irmã ante qualquer problema do dia a dia, que são muitos e normais na vida de quaisquer idosos.
É um tormento vê-lo sofrer e, ao mesmo tempo, sentir que , em algum momento, teremos que tomar medidas extremas e usar a força contra a sua vontade e nosso desejo de permitir a ele um final de vida digna, se não puder ser feliz.
Quando somos pais, é consenso quase que geral que temos que ser respeitados pelos nossos filhos. Quando nossos pais se tornam novamente crianças, seria normal que eles tivessem que respeitar as decisões de seus filhos como se esses fossem, agora, seus pais.
Mas não é assim que geralmente ocorre.
O idoso garante os direitos de voltar a ser criança, sem perder o direito de pais, tornando inviável qualquer interferência a ser assumida por seus filhos, quando necessária, que não seja passível de algum tipo de crítica da sociedade: é a velha história do menino, do velho e do burro.
Os seres humanos, na sua maioria , não se preparam para envelhecer e, por isso, é cada vez maior a admiração que sinto pelos diversos idosos que comigo convivem , ou conviveram, e que sabem ou souberam envelhecer com alegria, sabedoria, demonstrando confiança e respeito pelos seus filhos.
ANTÔNIO CARLOS TÓRTORO
ancartor@yahoo.com
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