Antes de Nascer o Mundo

Antes de Nascer o Mundo Mia Couto




Resenhas - Antes de nascer o mundo


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Neto 24/07/2014

Jerusalém
Antes de nascer o mundo
Mia Couto
Companhia das Letras
277 páginas

Primeiramente, gostaria muito de entender por que uma editora resolve trocar o nome do livro se vai manter toda a ortografia como a original, em português moçambicano (nem sei se podemos falar em português moçambicano, mas enfim). O livro originalmente se chama Jerusalém, e acho que deveria chamar assim (mas poderia ser pior, poderia se chamar The tuner of silences, como é nos EUA - Deus me livre).

Agora, me livrando da bobagem inicial, que em nada pode desmerecer um livro como Antes de nascer o mundo, começo a falar um pouco dele. Como foi bom conhecer o Mia Couto. Escreve com uma sutileza, uma poesia... Mia é o tipo de escritor que me faz ter certeza de que a literatura é uma das mais belas artes, pois, mesmo com o livro não trazendo absolutamente nenhuma gravura, conseguimos sentir com tanta força o vazio de Jerusalém.

O livro é de leitura bastante rápida, porém não menos complexo e profundo. Mia Couto consegue dar vida com maestria aos cadáveres que vivem na distante, vazia e inóspita Jerusalém. Colocar a narrativa em primeira pessoa, na voz de Mwanito, só melhora, pois leva o leitor a uma proximidade tão grande com o último refúgio da humanidade, criado pelo autoritário Silvestre Vitalício, pai do narrador, que será possível abraçar a terra de Jerusalém antes de dormir.

Mia Couto se descreve mais como um poeta do que como um escritor de romances, em entrevistas. E nesse livro é possível perceber como ele quer colocar todo o seu lirismo presente na narrativa, o que a deixa viva, intensa, apaixonante. Há de se verificar também que todo início de capítulo há um trecho de poema de alguma poetisa, em especial Sophia de Mello Breyner Andresen, que fazem com que os capítulos sejam reflexos destes trechos.

Entre os vários temas abordados pelo livro, os que mais me tocaram foi como o autor filosofou sobre a morte. Em certo ponto, é possível verificar que, mesmo vivos, todos os residentes de Jerusalém estão mortos, todos ligados a um passado terrível, porém há muito sepultado por Silvestre, que partiu para o além simplesmente por bloquear todo este passado. Nesse ponto, é possível perceber como a memória é de importância enorme para a experiência de vida de uma pessoa. Sem as minhas memórias, não consigo ter identidade e terei, portanto, que criar uma nova. E é isso que Silvestre faz com todos os que moram em Jerusalém, criando assuntos proibidos e inibindo a reprimindo a infância de seus dois filhos, o narrador e seu irmão Ntunzi.

É o tipo de livro que não parece chegar a lugar algum. Os primeiros capítulos são todos para introduzir personagens e contar sobre eles somente a partir da fundação em Jerusalém, pois Silvestre jura que não existem mais cidades, que todos morreram, e agora eles são os guardiões da humanidade, o último sopro de vida humana no mundo.

Porém, esse não chegar a lugar algum acaba chegando, Mia Couto guiando magistralmente. Eu não gosto de rabiscar meus livros, mas senti muita vontade de grifar tantas passagens que perdi a conta.

Mais um escritor lusófono que conheço e que me agrada grandemente. A leitura foi rápida, mas a sensação com que fiquei foi intensa, e o livro já figura entre os que mais me impactaram.

Não deixe de visitar Jerusalém, mas não deixe que Silvestre saiba de sua chegada.
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DIRCE 12/03/2014

Mui lisonjeiro
Nós, mulheres, fomos muito homenageadas no dia 08 de Março– Dia Internacional da Mulher– até o Google nos prestou homenagem. Agora... Agora o que eu não esperava era me sentir homenageada por meio do livro “Antes de nascer o mundo” – coisas de Mia Couto. Coisas de Mia Couto enaltecer a mulher por meio da sua literatura (eu já havia chegado a essa conclusão em outras obras), porém, no livro Antes de Nascer o Mundo, a figura feminina não dá trégua. Ela se faz sentir o tempo todo: quer seja pelas epígrafes que abrem cada capítulo, ou livro (a obra é constituída de 3 livros), quer seja pela constante presença da ausente Dordalma, quer seja pelo “grito” contra a violência e abuso pujante que sofrem as mulheres africanas abordado no romance e igualmente em nosso país. Mui lisonjeiro.
Voltando as epígrafes: elas foram retiradas da literatura das poetisas Sophie de Mello Breyner Andresen, Hilda Hist e Adélia Prado e dão um brilho todo especial aos capítulos, pois semelhantes ao som de uma trombeta que anuncia uma aparição, elas anunciam as questões que serão abordadas nos capítulos e tal qual ao som de uma trombeta elas causam calafrios pela pungência do “toque”.Outra constante que norteia as obras do Mia Couto é a forma que ele nomeia as personagens: os nomes revelam como eles são, o que eles carregam na alma. Em Antes de nascer o mundo me chamou a atenção o nome de Silvestre Vitalício (o patriarca), um homem atormentado pela vergonha, pela culpa, pelo remorso, que abandona a cidade onde vivia levando consigo seus dois filhos, um serviçal e uma jumenta. Esse homem abdica da sua identidade e,em um lugar no meio do nada, “cria” um novo mundo: Jesusalém, haja vista que de acordo com sua concepção o mundo havia acabado. Ele tenta fazer do seu novo mundo um refúgio amnésico e assume a condição de um silvestre vitalício. Chamou-me também atenção o nome de Dona Dor-dalma ,esposa de Silvestre Vitalício que, a priori, só nos é dado saber que ela morreu quatrocentas vezes (número de vezes que o inconformado Mwanito pergunta pela mãe). Há também o nome Jesusalém. Esse nome não só me causou estranheza como demorei com ele me acostumar. Nas primeiras vezes que com ele me deparei, fiz a leitura de Jerusalém. Jesu-salém...não é Salém um local onde se executava mulheres acusadas de bruxarias? (!!!???). A única informação que temos acerca do nome Jesusalém é de que foi o nome dado por Silvestre ao seu novo mundo, e que, ali, Jesus seria descrucificado. Mia Couto, sem deixar de lado a beleza que reveste sua escrita, se utiliza da voz do menino Mwanito para nos mostrar o drama, a aridez, os anseios, os rancores de cada personagem e também as atitudes insanas do Silvestre que além de cercear seus filhos: Mwanito e Ntunzi, de sentirem qualquer tipo de emoção e de buscarem qualquer tipo de conhecimento, impôs a “população”, assim que chegaram em Jesusalém, uma espécie de “iniciação”: eles foram desbatizados e passaram a ter um novo nome, somente Mwanito foi isentado dessa iniciação, uma vez que quando lá chegaram, o menino contava com apenas 3 anos de idade, portanto era desprovido de memória. Tudo era interditado por Silvestre. Mulheres?? Até citá-las era proibido.
Mas que ironia! Compete a elas – as mulheres – desvendarem os mistérios que cerca a tragédia familiar. Compete a Marta (a forasteira) e a Noci (a nativa), por meio dos seus relatos,trazerem à tona um passado que Silvestre tentou vão soterrar.
Bem, quem conhece a escrita de Mia Couto sabe que sua escrita se abre como um leque permitindo inúmeras leituras, inúmeros entendimentos, mas eu optei por privilegiar o nosso universo – o universo feminino, pois o mundo pode ainda ser um território masculino, mas como muito bem disse Erasmo Carlos: (...)mulher, mulher / na escola que você foi ensinada/ jamais tirei um dez/ sou forte mas não chego a seus pés.
Voltando a leitura do livro há também outra opção: fazer uma leitura simplesmente saboreando as frases. Deixar se embevecer por frases como:
“Viver? Ora, viver é cumprir sonhos, esperar notícias. Silvestre não sonhava, nem aguardava notícias. No princípio, ele queria um lugar onde ninguém se lembrasse do seu nome. Agora, ele próprio já não se lembrava quem era”
“(...) Nunca faças nada para sempre. Excepto amar”. (pag. 242)
“ Afinal, o velho Silvestre não mentia assim tanto com sua visão apocalíptica. Porque ele tinha razão: o mundo termina quando já não somos capazes de amar.” (pag.241)
“Um dia o pai diz a Mwanito que Jesusalém é um lugar "cheio de milagres". "Nunca vi nenhum", responde-lhe o filho. "São milagres tão pequenitos que nem damos conta da sua ocorrência." Esta é a lição deste romance: "a vida é demasiado preciosa para ser esbanjada num mundo desencantado."
Depois de tudo o que aqui consta, e também do que não consta, como não incluir Antes de Nascer o Mundo entre os meus favoritos?
Arsenio Meira 13/03/2014minha estante
Esse livro eu li, e reli. E de posse de tua excelente resenha, eu vou terminar é doido, sem saber o que ler ou reler. Para quem não leu, eu torço para que leia. Valeu, Dirce. Mia é um gigante. Um escritor fabuloso.


Manuella_3 14/03/2014minha estante
Dirce, querida. Mais uma vez você enche meus olhos com uma resenha que encanta! Gosto demais do Mia, acompanho uma página dedicada a ele e sim, ele é um poeta que fala maravilhosamente do universo feminino. Mais um para a minha lista.


DIRCE 14/03/2014minha estante
Arsenio,
Não endoidece não (risos). Faz uni duni tê...

Manu,Mia Couto além de um escritor impar, (aparentemente)é um ser humano muito especial.
Que descoberta o Skoob me proporcionou...
Obrigada a ambos


Jayme 18/03/2014minha estante
Depois desta resenha cativante, como não ler?


Arsenio Meira 03/04/2014minha estante
Gostei, Dirce, kkkkkkkkk
Vou terminar nessa senda eterna da infância!
Abraços




Catharina 27/01/2014

O leitor encontrará em "Antes de nasce o mundo" um belíssimo representante da literatura africana, onde se destacam a qualidade poética, a narrativa bem construída e toda a mística de um universo particular criado por Mia Couto.

"Antes de Nascer o Mundo" é um livro formidável, escrito com maestria, uma verdadeira poesia escrita em forma de prosa, envolvente, comovente e repleto de simbolismos e valores.

Mais que indicado: é leitura obrigatória!
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Aninha 07/01/2014

Afago para os olhos e para a alma
"... sou a letra que aguarda pelo afago dos teus olhos." (página 134)

Silvestre Vitalício se exilou em um fim de mundo de Moçambique, longe da civilização, com seus dois filhos (Ntunzi e Mwanito), seu cunhado (Aproximado) e seu serviçal (Zacaria Kalash), depois que sua esposa (Dordalma) faleceu.

Esses não são seus nomes de batismo: todos receberam um novo nome nessa terra de ninguém, que também recebeu um nome, Jerusalém, e passaram a viver sob as ordens e os delírios de Vitalício.

"Neste mundo existem os vivos e os mortos. E existimos nós, os que não temos viagem." (pág. 54)

Quem narra a história é Mwanito, 11 anos, que não se recorda da cidade de onde viera, nem de sua mãe. Ele aprende a ler e a escrever com o irmão mais velho, escondido do pai, rabiscando um velho baralho de cartas.

"...a escrita era uma ponte entre tempos passados e futuros (...) No jogo com a escrita, perdi-me sempre." (pág. 42)

Um dia, ele se depara com uma mulher (Marta) em Jerusalém, uma portuguesa branca e se assusta com os sentimentos que são despertados nele. Ela, por sua vez, está à procura de Marcelo, o marido que a traíra.

De uma forma que é peculiar de Mia Couto, vamos conhecendo os segredos de cada personagem, seus medos e seus desejos. A vida se avoluma e se perde, conforme o ritmo das tragédias e alegrias de cada um.

"A vida é demasiado preciosa para ser esbanjada num mundo desencantado." (pág. 23)

Ainda bem que existe um Mia para nos encantar com suas palavras...

Boa leitura!

site: http://cantinhodaleitura-paulinha.blogspot.com.br/2014/01/antes-de-nascer-o-mundo.html
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uyara 06/11/2013

Mudou um pouquinho
Mia Couto é sempre delicioso de ler. Portanto, esse livro não seria diferente. O que eu gostei é que essa é a primeira obra de Mia que eu leio que não tem um foco grande na política. Vi também uma consistência maior na prosa e menor na poesia.
Neste livro, o foco está no coração, na fuga. Como fugimos de nós mesmos??? Como lidamos com o que está além de nosso controle? Alguns fatos podem ser mudados através de nossas escolhas e algumas escolhas definem fatos que não serão mais mudados...
Muito bom e vale a pena ser lido.
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Renata 01/11/2013

Mia Couto - afinando silêncios
Mia é mago.
Faz de instantes longas poéticos.
Me traz à tona melancolias diversas, paisagens sonoras, e reverberações físicas em suas palavras.
Com esse não podia ser diferente. A história de Mwanito e sua infância roubada/criada, repleta de passagens bucólicas e mistérios a desvendar.
Traz ao leitor ecos do mais fértil e sensual continente.
Me marcou a mudança de ritmo a medida que o livro sucede.
Na infância a lentidão, o mundo cabendo em cada minuto.
Já na cidade e com a puberdade fatos importantes passam como que de relance.
Dessa vez não fiquei tão triste ao findar um livro. Não porque não gostara, mas sim por que fora leve.
Mia é mago e dentro de si há uma mulher, ou seria o tipo de homem que queremos ver nascer?
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sonia 19/10/2013

O bem e o mal estão na mente do homem, e cada um faz suas próprias escolhas e é responsável por seu próprio destino, afirma a filosofia.
As verdadeiras histórias não são sobre fatos, sim como as pessoas sentem e reagem a eles.
Tanto homem traído, tanta mulher atacada, tanto filho órfão, e tantas histórias tão diferentes a serem contadas. Um escolhe superar, outro escolhe proteger seus entes queridos, outros escolhem enfiar-se em si mesmos, esconder-se do mundo, egoísticamente sacrificando seus mais próximos parentes e amigos. O sofrimento pode levar à loucura, como pode levar à redenção. Concordo com o poeta Drummond que, no poema Os ombros suportam o mundo, diz:
‘Alguns, achando bárbaro o espetáculo,
prefeririam (os delicados) morrer.’
A história lindamente contada por Mia Couto relata a destruição decorrente do comportamento de seu personagem principal, que arrasta em sua loucura até os filhos, privando-os de uma infância com alegria, afeto, esperança, projetos de future.
O personagem, enredado em seu perpétuo sofrimento, não sabe, que, nesta vida, como diz Saint-Éxupéry: ‘para trás não há caminho’. É preciso ter sabedoria, amor, enfrentar os desafios da vida e prosseguir, ou então, como o personagem do romance, seremos destruídos por nossos demônios interiores.
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Antonio Celso 07/01/2013

A escrita de Mia Couto é simplesmente fascinante. Definir assim é mais fácil e simples que refletir sobre seu conteúdo e estrutura mais seriamente. Mesmo acreditando que suas intenções como escritor estão muito além de simplesmente entreter o leitor, a leitura flui singelamente. Conforme algumas entrevistas suas que acompanhei nestes últimos anos percebo que sua preocupação esta colada à militância ecológica e na busca de ações sérias e comprometidas com a estabilidade da biodiversidade do planeta. Claro que estas preocupações já bastariam para seu reconhecimento no universo literário. Mas seus escritos muito nos trazem reflexões sobre a estabilidade entre o particular e universal que acomete os homens nestes momentos de difícil lida mundial, globalização econômica e acirramento da pobreza em bolsões cada vez mais numerosos e próximo da barbárie.
Recordo-me esparsamente de sua fala no filme “Línguas-Vida em português” do diretor lusitano Victor Lopes, documentário belíssimo por sinal. Mia Couto, andando descalço pela praia vai aos pouco descrevendo aquele mundo a parte da oralidade daquela região passada e repassada por várias gerações. Um mundo próprio em que podemos relacionar as vidas e culturas dos habitantes da região costeira de Moçambique como uma forma e dimensão de inteiração entre o particular e o universal. Em sua fala aponta que, pois, os habitantes desta região vivem dois mundos de proporções e dimensões espirituais e sensitivas incalculáveis numa delimitação geográfica muito reduzida, que para nossa cultura poderia ser classificada como ínfima, simplesmente por não ter registros gráficos. Porém, isto para nos, ocidentais, e as experiências de oralidade dos homens daquele lugar não o é de fácil compreensão. Sua fala neste documentário delimita que a relação entre o particular e o universal pode ocorrer ou ser pressentido mesmo a partir das ações mais introspectivas do ser humano e experiências matériais que muitas vezes são definidas como de pouco alcance, principalmente pela ausência da escrita ou das condições sociais reconhecidas como “civilizadas”pelas sociedades industriais. Este é o ponto de partida para observamos a relação entre o universal e o particular; é isto que consigo perceber em sua escrita. O romance “Antes de nascer o Mundo”, que alias como li na critica de divulgação teve o titulo de “Jesusalém” na África e Europa, nos coloca a tudo momento diante desta questão: o particular dos homens em seus mundos limitados e delimitados pelos seus termos imediatos e a reflexão profundamente humanizante que os movem para além do mundo imediato e material.
A profunda reflexão do ser humano que o conduz pelas veredas materiais de seu mundo imediato nem sempre tem sua origem objetivamente no exterior. Os sonhos e projeções não podem ser descartados como simples desdobramentos da produção material, mais também não estão isolados. O pleno do humano é a inteiração entre as duas dimensões. O particular e o universal é o próprio devaneio, este novo plano é a integridade ou o próprio homem como tal. Quanto mais os homens e seus devaneios afundam-se em suas entranhas, em suas particularidades, em suas permissividades, ai é que mais flutua em suas experiências sociais, conflitos e sonhos em passagens de autonomia e coalizões. A diferença é que isto ocorre no seu interior sem que seja diretamente instigado pelo exterior. É a forma como percebo as inteirações entre os personagens construídos no romance “Antes de nascer o mundo” de Mia Couto.
Sustentando estas idéias, sua escrita plaina entre a prosa e o verso. A fluidez da prosa com as ondulações e harmonias próprias das construções poéticas mais profundas.
Algumas passagens considero belíssimas fazem justamente a ponte entre a situação fantástica e a reflexão que aproxima das preocupações de nosso cotidiano. A situação fantástica beira a Gabriel Garcia Marques.
A história do livro gira em torno de uma família que vai morar em um sítio distante de todos e tudo. Formada pelo pai, Silvestre Vitalicio, o filho mais novo Mwanito e o mais velho Ntunzi, um soldado tipo ajudante de ordem Zacaria Kalash e o tio Aproximando, este é que faz o contato com o mundo exterior de Jesusalém, assim é denominado o lugar, e uma jumenta Jezibela. A história é narrada pelo filho mais novo Mwanito, que chega em Jesusalém com poucas lembranças de sua mãe falecida Dordalma e quase nenhuma do restante do mundo. Este é Mwanito:
“A família, a escola, os outros, todos elegem em nós uma centelha promissora, um território em que poderemos brilhar. Uns nasceram para cantar, outros para dançar, outros nasceram simplesmente para serem outros. Eu nasci para estar calado. Minha única vocação é o silêncio. Foi meu pai que me explicou: tenho inclinação para não falar, um talento para apurar silêncios. Escrevo bem, silêncios no plural. Sim, porque não há um único silencio. E todo o silêncio é música em estado de gravidez.
Quando me viam, parado e recatado, no meu invisível recanto, eu não estava pasmado. Estava desempenhado, de alma e corpo ocupados: tecia os delicados fios com que se fabrica a quietude. Eu era um afinador de silêncios.
-Venha, meu filho, venha ajudar-me a ficar calado.” (pág.13/14)
No universo criado por Silvestre é proibido qualquer alusão ao mundo exterior e principalmente ao sexo feminino. O universo e o mundo se restringe a Jesusalém, o restante não mais existe como afirma e reafirma a autoridade de Silvestre para com todo o grupo.
“A verdade é que, no trono absoluto da sua solidão, meu pai se desencontrava com o juízo, fugindo do mundo e dos outro, mas incapaz de escapar de si mesmo. Talvez fosse esse desespero que o fazia entregar a uma religião pessoal, uma interpretação muito própria do sagrado. Em geral, o serviço de Deus é perdoar os nossos pecados. Para Silvestre, a existência de Deus servia para O ocuparmos pelos pecados humanos. Nessa fé às avessas não havia rezas, nem rituais: uma simples cruz na entrada do acampamento orientava a chagada de Deus ao nosso sítio. E a placa de boas-vindas, encimando o crucifixo: “Seja bem-vindo, ilustre visitante!”.
-É para Deus saber que já lhe perdoamos.
A esperança da aparição divina suscitava no meu irmão um sorriso de desdém:
- Deus? Aqui é tão longe que Deus se perde no caminho.” (pág. 47)
Mwanito vai crescendo com as experiências passada pelo irmão Ntunzi, o mais velhos que aos pouco vai revelando verdades que Silvestre quer enterrar e refazer. Os próprios nomes de toda a família é rebatizados por Silvestre e somente o tio Aproximando tem contato com o exterior.
“A cidade desmoronara, o Tempo implodira, o futuro ficara soterrado. O meio irmão de Dordalma ainda o chamou a razão: quem sai do seu lugar, nunca a si mesmo regressa.
-Você não tem filhos, cunhado. Não sabe o que é entregar um filho a este mundo podre.
-Mas não lhe resta nenhuma esperança, mano Silvestre?
-Esperança? O que perdi foi a confiança.
Quem perde a esperança foge. Quem perde a confiança esconde-se. E ele queria as duas coisas: fugir e esconder-se. Mas nunca suspeitássemos de haver em Silvestre um sentimento de desamor.
-Vosso pai é um homem bom. A sua bondade é a de um anjo que não sabe onde está Deus. É só isso.
Em toda sua vida, teve um único desempenho: ser pai. E todo o bom pai enfrenta a mesma tentação: guardar para si os filhos, fora do mundo, longe do tempo.” (pág. 74/75)
Este universo mágico é quebrado com a chegada de uma mulher portuguesa em busca de informações do marido perdido. Na verdade um soldado português que abandona a metrópole e retorna a África em busca de um sonho perdido, assim ela compreende sua partida. Marta passa a viver em torno do acampamento colocando em cheque a autoridade e as verdades que ordena o mundo de Silvestre. Desestabiliza a lógica do lugar e aprofunda a loucura de Silvestre que inválido não tem outra alternativa à não ser retornar para cidade onde a história tem seu desfecho.
Neste cenário fantástico e simples Mia Couto nos brinda com formulações brilhantes e profundas que de momento a momento nos levam a refletir sobre os caminhos que estão sendo construídos pela moderna sociedade ocidental industrial e o homem como principal personagem desta construção. A escrita que plaina entre a prosa e o verso é de uma profundidade imensa que merece ser degustada e divulgada.
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Roger 22/01/2012

Esquecimento e morte
"E a loucura nem sempre é uma doença. Por vezes é um acto de coragem." (Antes de nascer o mundo, p. 241)

Quando todas as esperanças se perdem e o mundo parece um lugar cruel demais para se viver, só resta uma opção: acabar com o mundo. E se engana quem acha que o mundo só acaba quando se morre ou com um evento bíblico. A forma que Silvestre Vitalício escolheu foi a auto-alienação. Carregando seus dois filhos e acompanhado por um serviçal e uma burra, Silvestre fundou Jerusalém. Para ele o mundo havia morrido e só restava aquele punhado de terra, no meio de lugar nenhum, onde passaria o resto de sua vida. Ele queria que o mundo o esquecesse e ele próprio esqueceu-se de quem era.

Toda a história é contada por Mwanito, o filho mais novo de Silvestre. Como havia sido levado para Jerusalém muito jovem, não se lembrava de nada além do que havia ali. O livro começa com seu primeiro contato com algo que desconhecia completamente: "A primeira vez que vi uma mulher tinha onze anos e me surpreendi subitamente tão desarmado que desabei em lágrimas". Dividido entre os gigantes e os moinhos de vento, o mundo de Mwanito começa a mudar, revelando as feridas abertas que fazem parte da história das pessoas ao seu redor e trazendo a ele o passado que lhe havia sido negado.

O livro tem um tom bastante realista, quase esbarrando no fantástico. Essa mistura de drama humano e quase-fábula é o que dá um gosto agridoce à história, que certamente estimula o impulso de continuar lendo.
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Palazo 23/11/2011

Cinco homens fogem para um local desabitado na savana africana. Tio Aproximado, o serviçal Zacaria Kalash, o pai Silvestre Vitalício e seus dois filhos Ntunzi e Mwanito. Eles instalam-se no local que ganha o nome de Jerusalém e fazem “reparos mínimos” para habitá-lo. Enquanto isso, Silvestre constrói uma cruz na entrada do acampamento, “por cima da cabeça de Cristo ele fixou uma tabuleta” desejando boas vindas ao “Senhor Deus” e repetia aos filhos sua crença:
“Um dia, Deus nos virá pedir desculpas”
Os motivos da fuga das cinco almas é a negação do próprio passado, que é recortado da memória e esquecido junto com o resto do mundo, também conhecido como o lado de lá. O ponto que gera a extradição para Jerusalém é a morte misteriosa de Dordalma, a mãe e Ntunzi e Mwanito.
Nesse contexto é construído o livro “Antes de nascer o mundo” do escritor Mia Couto, publicado pela Companhia das Letras. A obra é dividida em três partes. A primeira é chamada de “A humanidade”, onde são apresentados os moradores de Jerusalém. Na segunda parte, intitulada “A visita”, os moradores recebem uma inesperada presença que muda a rotina dos cinco e desencadeia a parte três do livro – Revelações e Regressos.
Apesar da continuidade das partes em que a obra se separa, a construção da narrativa não é linear. Os fatos aparecem entrecortados no meio da ação, alguns lapsos de memória são aos poucos resgatados e os fatos vão e vem sem qualquer nexo aparente. A história precisa ser montada pelo leitor juntando partes de capítulos, unindo pontos desconexos e evitando cair no jogo alucinógeno de Silvestre Vitalício.
A loucura da história tem como criador o pai dos dois garotos, porém ela é narrada quase em sua totalidade por Mwanito, o filho mais jovem. Os olhos do garoto não mostram nenhum ar infantil ou ingênuo, são carregados e envelhecidos pela perda da infância.
Na segunda parte, a narração do garoto é intercalada pela narrativa da visitante ilustre, Marta. Os motivos que levam a portuguesa a Jerusalém são opostos aos dos habitantes de tal região, porém mudam o rumo da narrativa e trazem novas revelações que vão moldando pouco a pouco cada personagem e detalhe da história.
Além da narrativa desconexa e intrigante, o texto de Mia Couto é carregado de uma prosa poética que encanta, quase que obrigando o leitor a andar sempre com um lápis para grifar ou anotar passagens curiosas. Introduzindo cada capítulo, há uma poesia que anuncia em seus versos o que está por vir. Os poemas são em sua maioria de Sophia de Mello Breyner Andresen, Hilda Hist e Adélia Prado.
Através de uma narrativa poética, Mia Couto cria um cenário em que os personagens convivem e encontram-se – ou escondem-se – no mesmo lugar. Em Jerusalém a perda é anunciada através da morte da mãe, do sumiço do mundo, do esquecimento do passado e da falta de um futuro. Porém, fica-se na dúvida se faltou confiança ou esperança aos habitantes, pois como diz o narrador: “Quem perde a esperança foge. Quem perde a confiança esconde-se”. E sinceramente, ainda me paira a dúvida se os habitantes de Jerusalém são fugitivos ou refugiados do mundo.
Antes de nascer o mundo
Autor: Mia Couto
280 páginas
Preço sugerido: R$ 46,50
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Lari 15/08/2011

Esse livro é uma das coisas mais lindas que já li.

Numa linguagem única, prosa poética de Mia Couto vai fluindo, líquida e deliciosa, por entre as palavras... simplesmente apaixonante! Dá vontade de reler e reler e reler cada parágrafo, sugar toda a poesia que explode página após página do livro.


"não chegamos realmente a viver durante a maior parte da nossa vida. Desperdiçamo-nos numa espraiada letargia a que, para nosso próprio engano e consolo, chamamos de existência. No resto, vamos vagalumeando, acesos apenas por breves intermitências. Uma vida inteira pode ser virada no avesso num só dia por uma dessas intermitências."


Recomendo a todos essa viagem infinita aos mais nobres e profundos sentimentos que podemos experimentar.
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André Vedder 07/01/2011

o afinador de prosa
Já sou suspeito em tecer elogios ao Mia Couto, acho a prosa dele uma das mais bonitas que já li...poucos autores me fazem ao ler um parágrafo, retornar e reler uma, duas ou três vezes o mesmo novamente, Mia Couto é um deles.
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Camila 27/12/2010

Diferente mas ao mesmo tempo fantástico
Este livro é totalmente diferente de tudo que já li... Ainda não sei se Silvestre Vitalício era um doido ou uma pessoa que entendia muito bem a vida. Em muitos relatos esperava o momento de que alguém o internaria em alguma clinica. E o Mwanito que teve de crescer muito rápido e praticamente se tornou um velho com apenas 11 anos. Mas admiro a coragem que Silvestre teve de fugir das desgraças e dos problemas da cidade e creio que tudo que ele fez foi pensando nos próprios filhos. Este livro nos remete a uma leitura onde podem ser tiradas várias conclusões e reflexões. Vai depender muito de quem lê e com quais olhos essas palavras são lidas. Recomendo essa leitura. Gostei muito!
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*Zzuulleeiikkaa 25/12/2010

"... Meu pai queria fechar o mundo fora dele. Mas não havia porta para ele se trancar por dentro."

Antes de nascer o mundo (Mia Couto) - pág. 129
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Paula 26/09/2010

Esse livro chegou às minhas mãos por intermédio de uma amiga que me emprestou dizendo que "eu tinha que ler". Fiquei completamente encantada pela narrativa tão poética e fantástica de Mia Couto, de quem havia lido apenas contos. Criando um universo único, Mia Couto explora com sutileza e metáforas a vida e a morte, o amor e a solidão e muitos outros sentimentos humanos que nos fazem refletir a cada página. Fiquei com uma vontade imensa de sublinhar diversos trechos e frases, mas não pude porque o livro era emprestado. É definitivamente um livro para ser lido e relido, um livro para se ter na estante.

"Essa humanidadezita, unida como os cinco dedos, estava afinal dividida: meu pai, o tio e o Zacaria tinham pele escura; eu e Ntunzi éramos igualmente negros, mas de pele mais clara.
- Somos de outra raça? - perguntei um dia. Meu pai respondeu:
- Ninguém é de uma raça. As raças - disse ele - são fardas que vestimos.
Talvez Silvestre tivesse razão. Mas eu aprendi, tarde demais, que essa farda se cola, às vezes, à alma dos homens". [pág. 13]

"Não é segurando nas asas que se ajuda um pássaro a voar. O pássaro voa simplemente porque o deixam ser pássaro". [ pág. 52]

Camila 18/01/2011minha estante
Paula, adorei a sua resenha! Tudo que senti enquanto estava lendo, você escreveu... muito boa mesmo!


Paula 18/01/2011minha estante
Valeu, Camila!
Esse livro é maravilhoso mesmo.
bjs


uyara 11/01/2012minha estante
Paula, já li dois livros de Mia Couto.Gostei mais de "O ultimo voo do flamingo" mas os dois foram maravilhosos... Ele é realmente fantástico. Sua prosa poética entranha na alma. Sublinhei quase que o livro todo!!! kkk
Vou colocar este na minha lista. beijo.




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