João Moreno 05/04/2022 Isso daqui não é uma resenha, é só algumas breves anotações para tentar entender o que eu acabei de ler
A história é dividida entre dois personagens, Tengo e Aomame, os quais se alternam, entre os capítulos. Tengo é professor de matemática, escritor sem livros publicados, um cara solitário que gosta da sua rotina: dar aulas, tentar escrever seu romance, ler. Aomame é professora de Educação Física e uma assassina de aluguel, mas isso só descobrimos mais tarde. A relação entre ambos só aparece mais pra frente, também: lá pro final do romance, descobrimos que Tengo é o grande amor juvenil de Aomame; ambos estudaram juntos aos dez anos, quando Aomame ainda estava presa aos "vícios" religiosos dos pais, Testemunhas de Jeová.
A história parece girar em torno de um romance, 'Crisálida de ar', inscrito para um concurso de romancistas iniciantes. Komatsu - editor, mentor e amigo de Tengo - aponta para a originalidade da obra. Seu grande sonho, como editor, parece ser o de descobrir e publicar uma obra potente. 'Crisálida de ar' parecer ser essa história. Entretanto, para além da história genial, a obra carece de uma "estrutura literária adequada", e é aí que Tengo assume o seu protagonismo. A mando de Komatsu, Tengo tem a missão de reescrever 'Crisálida' de forma anônima, preservando a sua originalidade e beleza. Para que a obra possa ser publicada, não se trata de apenas reescrever o texto: é necessário se reaproximar da autora, uma adolescente de 17 anos, Fukaeri, que vive isolada do mundo, também por causa de seu passado de abusos.
Os protagonistas se cruzam quando o mundo de Aomame é narrado com mais detalhes, à frente. Por causa de suas habilidades especiais, isto é, assassinar sem deixar rastros, Aomame é "contratada" esporadicamente para "serviços especiais" por uma velha senhora. Eu acabei de perceber que, até o final do primeiro livro, não sabemos o nome da idosa rica. A tal "velha senhora", como reação ao suicídio da filha vítima de abusos conjugais, criou uma rede de apoio a mulheres vítimas de violência. Por entender a morosidade da Justiça e os problemas envolvendo o sistema penal, decidiu, em casos extremos, em que a violência marital pudesse ser perpetuada, dar fim aos maridos abusadores. É assim que o destino da velha senhora se cruza com o de Aomame.
O que mais liga os mundos de Tengo e Aomame? Depois de muito pensar, o sobrenatural de Murakami - presente em suas outras obras -, parece ser fundamental. Na primeira parte do romance, Aomame parece ter lapsos sobre alguns fatos históricos: desde quando policiais usam armas tão potentes? O que foi o incidente envolvendo os grupos (radicais) Aekebono e Sagikake? Como não tinha respostas às perguntas, Aomame decidiu chamar esse novo mundo de 1q84. Mais à frente, descobriu não se tratar de apenas "um mundo sem resposta": em 1q84 havia duas luas, mas, até o momento, só Aomame parecia notá-las.
Em determinado momento da história os eventos ocorridos em Aekebono e Sagikake ganham centralidade. Antes, Murakami usa dos personagens para contextualizar os leitores: ficamos sabendo que Aekebono foi uma organização radical que enxergava na guerrilha o instrumento para a revolução social. Tem origem universitária, mas seus membros acabaram se dividindo, de onde surge Sagikake. O fim de Aekebono foi uma ação terrorista, reação à uma investigação policial (aquela, que Amaome não conseguia se lembrar). Sagikake, por sua vez, permaneceu. Apesar do vínculo forjado nas revoluções sociais, transformou-se numa nova religião: os fieis abdicavam da vida em sociedade para viver isolado, pregando o ascetismo e a busca por libertação da alma.
Sagikake está envolta em mistérios. Sabemos que, apesar do discurso, não se trata só de uma religião. A seita estende seus tentáculos para diversos setores, como a especulação imobiliária. Por meio da velha senhora, Aomame recebe a denúncia de que estupros, envolvendo crianças, acontecem em Sagikake. Também recebe uma missão: neutralizar o líder da seita, que ainda não foi revelado, envolto em segredos, responsável pelos crimes sexuais. Vale lembrar que Fukaeri, a menina prodígio que escreveu 'Crisálida de ar', também fugiu de lá. Não bastasse tudo isso, ainda temos o sobrenatural, característico, mais uma vez, de Murakami. Não tenho certeza, mas 'Crisálida de ar' não parece ser um simples romance. Talvez seja a descrição de um outro mundo, irreal, o tal 1q84. As duas luas que Aomame enxerga está presente em 'Crisálida', no romance. Também estão os "Povos pequeninos", seres sobrenaturais citados em alguns momentos. Na única cena em que aparecem, são descritos como minúsculos, ao saírem, literalmente, do nariz de uma criança que fugiu de Sagikake.
Por fim, o livro termina com Tengo, falando de seu novo romance. Diz que o protagonista é um personagem parecido com ele, mas que vive num outro mundo, onde é possível "mudar o passado". Nesse mundo, há duas luas.