Kizzy 07/01/2014
Obra prima. Histórica e Artística
Essa é uma das mais difíceis resenhas que eu já escrevi. Terminei de ler a história da fortíssima Kehinde há 4 dias e até agora não consegui parar de pensar em tudo que vivi com ela. Nesses dias, pensando no que escrever, cheguei a conclusão que tenho muito mais vontade de escrever sobre tudo que senti enquanto lia, do que os detalhes e características do livro ou do texto.
Pra começar, há muito pouco a falar sobre o livro em si. É um primor, histórico, literário, textual, antroplógico, social, teológico e cultural. Sim um livro extremamente descritivo, detalhista em relação ä vida do preto no Brasil e principalmente com relação à cultura e religião do povo africano. E ao mesmo tempo, profundamente sensível, dinâmico e delicioso de ser lido. De forma que, não tenho muito o que analisar, gostando ou não do enredo, o livro é definitivamente muito bem escrito e eu leria cada uma das quase mil páginas novamente com muito gosto.
Já com relação ao meu sentimento enquanto brasileira lendo esse livro, eu poderia escrever 300 páginas aqui. Eu me senti representada, me senti entendendo coisas que deviamos aprender desde criança, sobre nossa origem, sobre como o processo da escravidão mudou definitivamente a sociedade africana e brasileira. As situações vividas pelos personagem, na verdade são explicações extremamente importantes sobre a formação social do nosso país. "Essa história contada pela Adeola mostra bem a mistura das religiões, que valia mais entre os pretos, da África ou da terra, já que os brancos agiam como donos de tudo, inclusive da única crença verdadeira. Batizar os pretos com nomes de brancos, e obrigá-los a renegar a fé que tinham em Africa antes mesmo de pisarem na nova terra, era um modo de mostrar isso."
A vida da Kehinde, é na verdade a formação de um novo povo. Um povo que aprendeu viver com as condições tenebrosas a que foram submetidas e que se transformou em uma nova sociedade. Fato demonstrado pela volta dos ex escravos à África. Lá chegando, eles não eram mais os mesmos que haviam sido capturados há tantos anos atrás, não tinham mais os mesmo interesses, a mesma cultura, nem a mesma religião, que apesar de manter as mesmas raízes africanas tinha muito do catolicismo, um catolicismo que com certeza só existe no Brasil, cheio de figuras africanas. Quem voltou à Africa não era mais africano, e também não era português, nem inglês como os que eram seus senhores por aqui. Esse povo era o brasileiro, o braseileiro formado pelos pretos trazidos de áfrica, que sobreviveu a todos aqueles anos de escárnio, e que bem diferente do que aprendemos na escola, não passou sua vida como um cachorro doméstico jogado a sua sorte, mas viveu, lutou, aprendeu, acertou e errou muito, como a Kehinde.
Um povo que tenta ser feliz e andar pra frente apesar de tantas coisas, o tal do brasileiro, e principalmente o brasileiro negro, que até hoje, tenta e luta para desatar as consequências histórias que toda a atrocidade da escravidão deixou não só no Brasil, mas em todo mundo.
"Eu achava que era só no Brasil que os pretos tinham que pedir dispensa do defeito de cor para serem padres, mas vi que não, que em África também era assim. Aliás em África, defeituosos deviam ser os brancos, já que aquela era nossa terra e éramos em maior número. Não tenho defeito algum, e talvez para mim ser preta foi, e é uma grande qualidade, pois se fosse branca não teria me esforçado tanto para provar que sou capaz, a vida não teria exigido tanto esforço e recompensado com tanto êxito. Eu me sinto muito mais orgulhosa de ter nascido Kehinde, do que me sentiria se tivesse nascido Padre Clement".
Para terminar, queria falar do prólogo do livro. A autora conta que a obra foi fruto de uma "Serendipidade"(quando estamos procurando por uma coisa, e achamos uma muito melhor). Ao terminar de ler o livro, fiquei com a impressão que existia algo de mágico ou místico mesmo na história da Kehinde, pois no tempo em que estava lendo, me aconteceram também algumas serendipidades. Conheci pessoas que nem imaginava, com quem passei bons momentos comentando e aprendendo um pouco sobre o que lá estava escrito. Encontrei vários textos e "coincidências"sobre o que estava aprendendo, aprendi enxergar na rua tantas marcas que antes passavam desapercebidas, e passei 40 minutos no consultório do ortopedista (onde entrei com o livro porque estava lendo na sala de espera), e que ao ver a obra na minha mão, começou imediatamente a trocar muitas experiências sobre quando ele tinha lido e o quanto tinha sido tocado pela obra.
A Kehinde realmente me marcou, e por tudo que foi absorvido nessas quase mil páginas, hoje também sinto muito mais orgulho do que antes, de ter nascido Kizzy e ter me tornado a mulher que sou hoje.