Fabio.Nunes 04/05/2024
O grande clássico brasileiro contemporâneo
Um defeito de cor ? Ana Maria Gonçalves
Editora: Record, 2022
Ao amigo que se aventurar a ler esta resenha, peço-te paciência. O livro é rico demais para que eu escreva pouco.
Planejei a leitura deste livro mais à frente, ainda este ano, mas aí veio o carnaval da Portela de 2024 e mudou tudo:
Salve a lua de Benin
Viva o povo de Benguela
Essa luz que brilha em mim
E habita a Portela
Tal a história de Mahin
Liberdade se rebela
Nasci quilombo e cresci favela!
Foram 2 meses e meio diante desse monumento da nossa literatura. Um clássico com cê maiúsculo. Um romance histórico que nos leva numa viagem ao século XIX por meio de Kehinde (leia-se Keindé), nossa protagonista e narradora. Escrito quase de forma epistolar, Kehinde busca com a narrativa de sua própria vida apresentar ao seu filho perdido sua própria história.
Aqui é onde a ficção já se encontra com a realidade, pois, embora Kehinde seja uma representação ficcional de Luísa Mahin (com pouquíssimos registros historiográficos), seu filho é nada mais nada menos que Luís Gama, um abolicionista que combateu e denunciou o racismo no Brasil, conseguindo libertar mais de 500 negros escravizados ao longo de sua vida.
A ideia magistral de Ana Maria Gonçalves foi conseguir nos ensinar tanto sobre nossa história, sobre nosso povo, nossa cultura, sobre os povos africanos escravizados e suas culturas; tudo isso por meio da vida íntima, do cotidiano e das experiências de sua personagem ficcional.
Este é um livro que talvez preencha um vazio de conhecimento que nosso povo tem sobre esta época, pois nos permite viver as agruras de um escravizado, desde sua captura até sua libertação.
E esse tema da escravidão é tratado com muito carinho pela autora, desnudando para nós todas as suas nuances e complexidades.
Embora a trajetória de Kehinde seja a meu ver uma história de vitória, ela está preenchida de sofrimento. Ela é a mulher que luta, que não aceita ser inferior, que aprende a ler e escrever por puro gosto, que cai e se levanta, que sabe pensar, que empreende, que vence, mas também que se humaniza diante de nós com suas contradições e defeitos (e não são poucos e nem fáceis de lidar). Uma Jane Eyre melhorada.
Vamos à história (sem spoilers).
E eis que o século XIX se descortina diante de nossos olhos.
Iniciando com a captura de Kehinde, ainda criança, em Uidá, reino de Daomé (atual Benim), passando por todos os sofrimentos da travessia do atlântico até a chegada na cidade de São Salvador da Bahia, onde é enviada para trabalhar numa fazenda na ilha de Itaparica.
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"O Benevides tinha se matado, e muita gente disse que ele tinha feito o certo, que antes virar carneiro de bicho do mar, pois provavelmente seria lançado ao mar, do que carneiro de branco no estrangeiro."
"Eu estava com muito medo, pois até então só tinha ouvido histórias terríveis sobre o selvagens da senzala grande, contadas pela sinhá ou pela sinhazinha. Só mais tarde percebi que nada poderia deixar alguém mais selvagem do que a travessia da África para o Brasil?"
"Para os brancos fiquei sendo Luísa, Luísa Gama, mas sempre me considerei Kehinde. O nome que a minha mãe e a minha avó me deram e que era reconhecido pelos voduns, por Nanã, por Xangô, por Oxum, pelos Ibêjis e principalmente pela Taiwo. Mesmo quando anotei o nome de Luísa por ser conveniente, era como Kehinde que eu me apresentava ao sagrado e ao secreto."
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Cresce nessa fazenda, experienciando toda a injustiça e violência a que eram submetidos os escravizados, inclusive ela mesma, de onde sai acompanhando a sinhá para a cidade de São Salvador, um lugar efervescente de inquietação social. Ali tomamos conhecimento das revoltas abolicionistas, como a revolta dos Malês (muçulmanos), das lutas pela independência do Brasil e das revoltas federalistas e republicanas separatistas (cabanagem, farroupilha, sabinada).
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"Achei o assunto interessante mesmo não entendendo, pois era como se os argumentos que usavam contra a dominação portuguesa também valessem contra a dominação que eles tinham sobre nós, os escravos. A mesma liberdade que eles queriam para governar o próprio país, nós queríamos para as nossas vidas."
"fiquei sabendo que os ingleses eram contra a escravatura. Não porque fossem bonzinhos e achassem que também éramos gente, Como de fato faziam pensar nos tratando melhor que o senhor os portugueses ou brasileiros, mas porque tinham interesse em que fossemos todos libertos."
(...)
"Era isso que os ingleses mais queriam, que todos tivessem dinheiro para comprar as mercadorias produzidas nas grandes fábricas construídas em Inglaterra."
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Consegue a muito custo e trabalho comprar sua liberdade e a de seu filho. Relaciona-se com um português, com quem tem o segundo filho (Omotunde), deixando-o depois aos cuidados do pai e de uma amiga para viver 7 anos numa comunidade de sacerdotisas vodúnsi (sacerdotisas jejes no culto da grande serpente).
Descobre que, apesar de livre, seu filho Omotunde é vendido como escravo pelo próprio pai ? aqui eu peço licença em dar o spoiler, visto que é a história de Luís Gama.
Assim, embarca numa busca pelo filho perdido, que a levará a São Sebastião do Rio de Janeiro, Santos, São Paulo e Campinas, sem sucesso.
Identifica os diferentes povos que desembarcaram na Bahia (fons, eves, iorubás, muçulmanos e outros) e no Rio de Janeiro (angolas, moçambiques, monjolos e benguelas) apresentando, contudo, as semelhanças entre suas culturas e seus cultos.
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"Não sei se era bem tristeza, mas os pretos da Bahia pareciam ter mais esperanças de felicidade, não sei se dá para entender, e os de São Sebastião pareciam mais conformados. Acho que essa é até uma palavra melhor que tristeza, a palavra conformismo, porque é uma palavra que acaba com os sonhos das pessoas."
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Sobre esses cultos, preciso abrir um parêntese: que coisa maravilhosa aprender sobre os voduns, orixás, eguns, nkisis, quimbanda, candomblé. São mitologias animistas que guardam semelhanças e uma beleza artística extraordinária, embora tão malvistas pelos brancos cristãos à época, senão hoje. E quanta não é a maravilha da nossa cultura brasileira, que misturou tanta riqueza num só lugar!
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"Ìyá Won, a nossa mãe suprema, a mãe de todas as coisas e para toda a eternidade, a que dá continuidade a tudo que existe ou venha a existir. Olodumaré disse a Oduá que, a partir de então, o homem nunca mais poderia fazer nada sem a colaboração da mulher. Com o poder dos pássaros, as mulheres receberam de graça e de nascimento o axé, que é uma energia que os homens têm que cativar."
"eu não sabia a quem pedir o agradecer pelos acontecimentos. Se não tivesse saído de África, provavelmente teria sido feita vodúnsi pela minha avó, pois respeitava muito os voduns dela. Mas também confiava nos orixás, herança da minha mãe. Porém, cozinhava na casa de um padre e estava morando em uma loja onde quase todos eram muçurumins."
"Eu sabia que o mesmo tinha acontecido com a religião dos orixás, pois em África, cada orixá é cultuado em uma determinada região, da qual é o protetor. No Brasil, por causa da falta de liberdade e de espaço para que cada orixá tivesse seu culto separado, foram todos misturados no candomblé."
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Depois do insucesso em encontrar o próprio filho, decide retornar a Daomé, já liberta e rica, onde consegue se casar e enriquecer ainda mais. E é aqui que as contradições da personagem mais saltam à tela:
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"Os brasileiros faziam questão de se afastar ainda mais dos selvagens conversando sempre em português e dizendo que não cultuavam mais os deuses dos africanos, que professavam a fé dos brancos, o catolicismo. Gente que, no Brasil, provavelmente tinha orgulho de não se submeter à religião católica e fazia questão de conversar em línguas de África, como forma de dizer que não tinha se submetido aos brancos, mas que, de volta à terra, negava esses costumes."
"Às vezes eu ficava um pouco constrangida por me relacionar com mercadores de escravos, mas logo esquecia, já que aquele não era problema meu. Eu não conseguiria resolvê-lo mesmo se quisesse, e também não poderia ficar com muitos escrúpulos depois de fornecer armas para o rei Guezo, sabendo que seriam usadas em guerras que fariam escravos, quase todos os mandados para o Brasil."
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No fim, zarpa de volta ao Brasil, com a esperança de entregar em mãos sua história ao filho.
Concluindo, e agradecendo a quem aqui chegou, este é um livro para se ler com calma, talvez em mais tempo do que eu levei, tamanha a riqueza que ele possui. E se eu falhei em narrar tudo o que essa obra nos brinda, em mim não carrego culpa, pois desconheço quem o faça.
?Saravá Kehinde! Teu nome vive!
Teu povo é livre! Teu filho venceu, mulher!
Em cada um de nós, derrame seu axé!?