Karla Lima 10/04/2017
Fissura
Fissura
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Em construção civil, claraboia é uma abertura no teto pela qual entram luz, ventilação ou ambos. Neste romance passado em um edifício, é a fresta por onde espiamos a vida íntima dos moradores. Na história escrita em 1953 e inédita até o ano seguinte à morte do autor, é o orifício que nos permite enxergar dentro dos personagens. Sim, dentro, pois este é um romance em que, por mais que os personagens falem, ajam, mudem e se mudem, a ação dá-se principalmente em seus sonhos, pensamentos e sentimentos. É essa matéria-prima (melhor seria dizer imatéria-prima) que engolfa o leitor em cenas familiares, nas quais facilmente se reconhecem episódios vividos ou testemunhados, e surpreendentes, nos quais provavelmente poucos de nós alguma vez pensaram.
O primeiro livro do autor, “Terra do pecado”, foi escrito e publicado em 1947. Seis anos depois, o original de “Claraboia” foi recusado pelo editor. Só em 1977 Saramago voltaria a escrever romances, e que romance é este. Parece que, enquanto escrevia poemas e crônicas, acumulou ideias e forças para criar este livro notável. Não endosso a negativa do editor, mas compreendo que, em plena ditadura salazarista (1932-1968), fosse arriscado publicar uma obra em que cada capítulo transpira uma tensão sexual impossível.
A linguagem toda particular de Saramago já aqui se faz presente (já é inconfundível em “Terra do pecado”, aliás), bem como a ironia, o senso agudo de observação, a crítica à opressão do homem pelo homem e à anulação que cada um impõe a si mesmo em nome de uma sobrevivência social que só muito raramente se equipara aos sacrifícios feitos no esforço de sua obtenção.