Betega 19/03/2021
Um prédio, seis apartamentos, muitos significados
Escrito no início da carreira de Saramago, publicado postumamente. E esse fator é importante pelo menos por um detalhe: a pontuação. O autor ainda não tinha começado a utilizar seu modo bastante característico de escrever, o que quer dizer que o texto de Claraboia tem pontuação absolutamente normal.
No entanto, a crítica, a ironia, o humor, tantas outras características marcantes de Saramago estão já presentes neste livro. Aliás, um alerta para quem nunca leu nenhum de seus livros: como a maioria deles, Claraboia não tem uma trama com começo meio e fim claros, não é um livro que você espera para saber no final o que vai acontecer. Nada disso. É só contação de história, é um livro para quem gosta da viagem, não para quem viaja só pela intenção de chegar no destino.
A história se passa em um edifício com seis apartamentos, todos ocupados. Ora a história está em uma família, ora em outra. Cada uma tem suas características, há famílias harmoniosas, famílias destruídas, famílias que sonham ou sonharam, e aquelas resignadas. Suas características vão sendo demonstradas através das interações dentro dos seus respectivos apartamentos, bem como nas inevitáveis interações entre vizinhos.
Conforme conhecemos cada grupo, temos a oportunidade de enxergar diversos arquétipos presentes na nossa sociedade. Isso independente do livro ser português e antigo. O que o ele mostra é muito atual, talvez "eterno" dentro do nosso modelo de sociedade. Algumas hipocrisias oriundas da mudança no nosso jeito de viver, que não veio acompanhada da mudança nos nossos mitos. Algumas dificuldades em equacionar as demandas do mundo com as demandas pessoais, dificuldades estas que levam diferentes personagens a diferentes... fracassos? Não sei se essa palavra define, cabe a cada leitor, com sua própria definição de sucesso e fracasso definir.
É interessante também a citação de outras obras, musicais e literárias. Pessoalmente, me levou a ler uma poesia de Alberto Caieiro, heterônimo do ídolo do autor, Fernando Pessoa. E a relação entre as pessoas e a arte. Até que ponto a arte acrescenta? Até que ponto ela traz uma contestação com a qual a pessoa não será capaz de lidar? Também os preconceitos contra arte, a tal perda de tempo.
No fim, é um livro que, através de coisas corriqueiras do dia a dia de um pequeno condomínio, permite diversas análises sobre o comportamento humano, inclusive podendo servir de alerta ao leitor sobre caminhos e atitudes suas que são passíveis de crítica, de acordo com sua própria mentalidade, mas os quais ele nunca parou para olhar. Padrões de comportamento que parecem dados. Naturais e inevitáveis. É possível que o leitor ganhe a chance de se confrontar com esses hábitos.