GioMAS 19/10/2023
O efeito King
A vida tem os seus horrores. Por vezes, eles se manifestam na esfera privada, são palpáveis e muito reais.
O casamento de Rosie lhe proporcionou, por quatorze anos, silenciamento, fraturas no nariz, costela e pernas, dores persistentes nos rins, lesões por todo o corpo, um aborto e diversos traumas.
A violência doméstica é tratada no livro de forma muito explícita.
Compartilhamos, desde as primeiras linhas, da angústia, dor e comoção da personagem que, casada com seu algoz, Norman Daniels, é submetida a todo tipo de tortura.
A narrativa poderosa de King faz com o leitor se encolha a cada aproximação de Norman, temendo as consequências do próximo espancamento. O narrador em terceira pessoa expressa em discurso direto os pensamentos de Rosie de forma realista e intensa.
Sentimos, com os pelos arrepiados e o corpo rígido, o poder e os efeitos devastos da manipulação e tortura psicológica que antecedem a agressão física. "Quero falar com você bem de perto", prenuncia o agressor, antecipando momentos do mais puro horror.
Rosie, adormecida pelo medo e exaustão, sobrevive sob a influência do marido, policial brutal, estimado em seu meio, e persuasivo, por longos quatorze anos, esquecendo-se de si, anulando sua existência.
Ainda assim, após uma epifania desencadeada por uma única gota de sangue no lençol, ela desperta e, sem qualquer planejamento prévio, rompe com as amarras mentais e abandona o lar do casal.
Partimos na jornada de fuga e recomeço, mas somos refreados por Norman. A narrativa alterna entre a ótica da vítima e do agressor, desenvolvendo uma trajetória de caça. Torcemos para que os desencontros impeçam que Norman alcance Rosie.
Os capítulos que focam no agressor são de tormenta, sua aproximação é rápida demais, assim como sua determinação e agressividade. Não importam os esforços de Rosie para recomeçar, ele está ali, sempre a um passo de distância, uma ameaça constante - infelizmente, um homem como diversos outros da vida real.
Em meio a tudo isso, King nos presenteia com personagens complexos, um romance doce e juvenil, aspectos sobrenaturais e passagens oníricas em um contexto que remete ao País das Maravilhas (isso mesmo, aquele da Alice), no que ele tem de mais bizarro. Explora, sobretudo, o universo da vítima, o abalo emocional, a força, a contradição do padrão social de feminilidade, que exige das mulheres garra e submissão.
O livro, inicialmente despretensioso, envolve e aprisiona - é o efeito King.