Sycamore 31/10/2023
Pouco terror, alguns descartes e talvez íntimo
A fragmentação da história no tempo pode ser capaz de conectar causa e consequência em uma narrativa, criando uma história coesa e coerente, mantendo o mistério e construindo o fator inesperado. Não é o caso aqui. Pelo menos não nas duas primeiras histórias do livro, 'O Telefone do Sr. Harrigan' e 'A Vida de Chuck'.
Em não mais que 10 páginas, King escreve o que é essencial à trama e parece preencher o resto de forma preguiçosa. A linha do tempo é bagunçada sem nenhum motivo aparente e isso faz sumir a possibilidade de um ponto alto na história.
Na maior parte do livro, o conteúdo é esticado em passagens sobre escola ou músicas, o que, de fato, não tem relevância para o que parece ser a essência dos textos.
Estes contos se aparentam mais a descartes do autor, histórias que não deram muito certo e foram emendadas aqui para virar um livro.
King não deixou margem para dúvidas. 'Com Sangue', a terceira história do livro, é a protagonista, tanto pelo número de páginas, quase o triplo que a das outras, quanto pelo nome, que ganhou a capa.
Aqui se estabelece um enredo bem mais elaborado. Pano de fundo e primeiro plano se entrelaçam em uma rede de relações parentais e fenômenos sobrenaturais. A protagonista é posta de frente e ao lado de dois monstros com sedes diferentes. Enquanto um tenta consumir sua dor, o outro a arranca pequenos farelos.
Mágoa ou dor, todos nós somos um pouco monstros. Ego ou voracidade, sempre acabam tendo que ser alimentados. King revela uma implícita verdade: até quando podemos correr para não sermos engolidos.
Se em 'O Telefone do Sr. Harrigan' e em 'A Vida de Chuck' a história foi construída em um único plano, sem um senso de profundidade, aqui ela toma forma e volume. Terror, mistério e suspense não são disformes, mas moldados no íntimo da protagonista.
Em "Rato", a quarta e última história do livro, King escancara uma maturidade não vista antes.
Um escritor que vai para um chalé em época de tempestades de neve. Já vimos isso. No entanto, desta vez a história sai da fronteira da angústia e migra para um lado mais divertido e criativo.
Não há nada de terror nestas linhas. Também é arriscado afirmar que há um suspense. King fecha o livro com uma história sobre o processo de escrita, com alguns toques humildes de diversão, o que o arrasta pra uma quase comédia dramática.