Andrezinn 01/12/2022
"Prefiro os perigos da LIBERDADE, ao sossego da SERVIDÃO"
Depois de um primeiro ano muito agitado como estudante da Korkovado, a única coisa que Hugo queria, era um ano tranquilo e aproveitar a escola ao lado de seus amigos; mas ele se vê escravo das consequências de suas escolhas do passado, e pra melhorar, uma misteriosa Comissão invade a escola redefinindo os padrões da Korkovado e castigando aqueles que desviassem desses padrões. Numa luta contra seus impulsos, sua consciência e contra a ditadura da comissão, Hugo conhece novas pessoas que impactarão sua vida - para melhor e para pior - e se encontra em meio a um desafio ainda mais laborioso do que o anterior.
Numa escrita emocionante, que brinca com os sentimentos do leitor, Renata continua com seu antropofagismo literário, nos introduzindo cada vez mais na riqueza cultural do Brasil. Suas brincadeiras com a história brasileira continuam me maravilhando, e fortalecendo o interesse em conhecer mais do meu país. O folclore ganha muito mais destaque no livro, constituindo parte importante do enredo e levando a história a outros rumos. Com fortes elementos políticos na trama, Renata levanta questões que transcendem o âmbito político, passam pelo social e chegam no ético; questões que são importantes para uma análise sócio-econômica-política do Brasil.
No segundo livro da saga, Hugo, em situações inadequadas, acaba conhecendo a escola de bruxaria do Nordeste, o Instituto Paraguaçu de Ensino Bruxo (IPEB), apelidado de Cidade Média, por localizar-se entre a Cidade Baixa e Cidade Alta de Salvador, na Bahia. A escola é diferente da Korkovado, por ser muito liberal e aberta para qualquer bruxo. Na escola, o Sincretismo religioso faz-se fortemente presente entre os bruxos, como herança da constituição da Bahia. Lugares de adoração a Deus, Buda e aos Orixás se encontram no meio da escola, junto a estátuas de santos e dos Orixás, que ganham um destaque significativo na Cidade Média, sendo protetores desta e patronos dos dormitórios dos estudantes. O legado dos africanos escravizados é tratado com respeito e também não é esquecido por Renata. Aulas de Macumba bruxa, leitura de búzios e outras são parte do currículo escolar dos caramurus, apelido dos estudantes da Cidade Média. Eles são brincalhões, rebeldes, alegres, barulhentos e livres. O uniforme deles? Camisa, short e chinelo de dedo. É incrível como a Renata consegue levar o Brasil para suas páginas e temperá-lo com um pouco de magia.
O lider da Comissão, Mefisto Bofronte, é um homem misterioso que foi esquecido pelos brasileiros, que sente frio até em Salvador e que será um grande empecilho para Hugo, que se vê fascinado pela autoridade que o Alto Comissário impõe e é fisgado pelo “carisma” dele, que desperta uma admiração que Hugo não sabia que poderia existir. Se antes, ele já lutava internamente entre o bem e o mal, moralmente falando, a presença de Mefisto aumenta a intensidade dessa luta e o confunde mais ainda, pois a aparência e as ações do Comissário parecem ser divergentes entre si. O título de vilão não condiz com o que Hugo pensa dele, e ele demora para entender o jogo de Mefisto, até que seus amigos passam a se encontrar em graves problemas e ele tem que tomar uma decisão difícil. Esse é um dos pontos altos do livro, pois um vilão inteligente, competente e que cria desafios para os protagonistas, é a chave para uma boa obra.
Quanto à Comissão, ela traz um ar de tensão durante todo o livro que não acaba nem quando este termina. Sendo uma referência a Ditadura Militar que o Brasil vivenciou no Século XX, Renata recheia seu livro com censura ao comportamentos dos alunos “rebeldes” e contestadores, a opressão a liberdade, a delimitação e imposição de padrões a serem seguidos por todos, e até mesmo a tortura, expondo a realidade que muitos vivenciaram durante a Ditadura. Sim, um dos possíveis gatilhos do livro é a tortura, mas também temos drogas, violência, suicídio, vício e abusos psicológicos, fisicos e sexuais, mortes, perseguições e ameaças; então seja cauteloso com a leitura e não tente se forçar a ler, pois acredite, mesmo se você não tiver problema, ficará impactado com os ocorridos.
Infelizmente, não tem muito o que falar sobre a trama do livro sem entrar no terreno dos spoilers. Mas posso falar, sem nenhuma dúvida que vale a pena. Depois de “A Arma Escarlate”, estava em dúvida de como a saga seguiria, e com “A Comissão Chapeleira”, fico feliz que ela tomou um dos melhores rumos, mesmo que eu não esperasse por isso.
Trazendo conflitos mais tensos, o segundo livro da Saga Arma Escarlate, é um livro que aborda sim problemas de nosso país, mas ele também fala sobre arrependimento, escolhas e a aceitação das consequências delas, a luta pela liberdade e contra a opressão, amor, aceitação de nosso legado histórico, respeito, compaixão, perdão, coragem para fazer o necessário, o perigo do orgulho e da ignorância, o peso de nossas palavras e ações, a capacidade humana de mudar e ser melhor a cada dia e a felicidade que podemos compartilhar com outros. “Óia que chique!” O melhor que a literatura nacional tem para oferecer.
"Não faz sentido o mundo inteiro adorar o Brasil, menos os brasileiros! A gente tem vergonha da nossa cultura, dos nossos costumes, da nossa história... Por quê?! Porque não nos conhecemos! Porque não nos entendemos! Que país é esse que não entende a si mesmo?! Que despreza a si mesmo?! Como a gente pode querer se tornar um país melhor se a gente nem entende o que a gente é!? Só quem se entende pode se transformar! Só quem se entende consegue separar o que é defeito do que a qualidade, e então agir para anular o defeito e multiplicar a qualidade! Quem critica tudo que é feito no Brasil, não entende o Brasil ponto e quem não entende o Brasil, nunca poderá melhorá-lo."
"Não seja tão duro consigo mesmo. A gente erra, para depois acertar. É normal. Tão normal, que acontece com todo mundo. E é isso que não devemos nunca esquecer: acontece com todo mundo. Todo mundo erra. Eu sei que é difícil perdoar, mas é preciso entender que todos tem algum motivo para ser como são. Nós nos perdoamos com muito mais facilidade do que perdoamos o outro, porque nós conhecemos a nossa própria história, nossas próprias razões. Nós sabemos o que nos levou a agir errado. Já perdoar o outro é um pouco mais complicado, porque a gente não está na mente dele, a gente não sabe a história deles. Mas é preciso pensar compreender. E, compreendendo, perdoar."
"Em sua essência, todas as religiões falam das mesmas coisas. A maioria ensina valores como retidão, honra, caridade, coragem, humildade, dever, honestidade, perseverança, fé, outras ficam nos aspectos mais práticos da vida, dão conselhos de como seguir, do que fazer. Não se contradizem nisso. O que importa é a moral que elas ensinam. Eu respeito Jesus, porque ele ensinou coisas lindas, então eu saúdo Jesus. Eu respeito Buda pelo mesmo motivo, então eu saúdo o Buda. Xangô é o orixá da justiça, e eu respeito justiça, então, eu saúdo Xangô; e saúdo também Oxum, orixá do amor, da beleza, da diplomacia, e Omolu, orixá da cura. No fim tudo é questão de respeito, tolerância e reverência por aquilo que é certo e justo. Por isso eu respeito todas as religiões que, em sua essência, respeitem as outras... e respeito todos os homens que vem passarem por elas."
"Uma coisa eu sei: a forma mais rápida de se sentir plenamente feliz é fazer uma outra pessoa feliz. Quando eu consigo, eu sinto uma alegria imensa. Inenarrável. Eu só preciso aprender a transportar essa alegria para o resto da minha vida. Só isso", ele concluiu, voltando a ficar pensativo. "Dizem que a alegria é talvez a única dádiva que você é capaz de ofertar sem possuir. Mas uma vez que você a oferta, ela surge em você. Como mágica."
" Somos livres em nossos propósitos, mas escravos de todas as consequências."