Mauricélia 31/05/2020
Meu primeiro encontro com "Vidas Secas" foi há 18 anos e foi inesquecível! Eu sou do Sertão de Pernambuco e minha infância passou-se muito em graves períodos de seca brava. Conheci de perto a paisagem e o enredo desse clássico da Literatura Brasileira, que completou este ano 80 anos de sua publicação. Esse novo encontro agora foi feito com um olhar mais maduro e tornou o livro ainda mais sensacional. .
Graciliano Ramos, um dos mais aclamados autores que esse país conheceu, narra a história de uma família do Sertão nordestino em busca constante pela melhoria de vida, impedida pelos longos períodos de estiagem. Pela vivência de Fabiano, Sinha Vitória, o menino mais velho, o menino mais novo (assim mesmo!) e a cachorra Baleia, a gente vai participando de uma reflexão filosófica, sociológica e humanista das desigualdades que assolam nosso Brasil. .
O estilo de Graciliano coloca "o outro" no foco. O narrador onisciente e observador nos conduz a elaborarmos juízo de valor sobre as relações sociais da família e dela com os que exploram sua mão de obra; podemos nos emocionar com os simples sonhos de seres humanos que vivem em situação tão degradante. Sinha Vitória sonhava em ter uma cama. Isso, uma cama com colchão, para parar de sentir dor e dormir mal no leito feito de varas. .
Fabiano conduz a família por uma caminhada sob sol escaldante em busca de oportunidade de trabalho em alguma fazenda, como vaqueiro. Seus dias de glória dão-se quando a terra fica verdinha, o que planta dá pra comer e o gado engorda para abate. Aos seus olhos, isso é a verdadeira riqueza. O que não entende é como trabalha tanto para ter um salário tão miserável e no fim do mês sempre fica devendo ao patrão. Sem estudo, a matemática da exploração não fica clara para ele, mas mostra-se melhor para sua esposa, que com pouco conhecimento interpreta que o suor da família, seca após seca, não conseguirá tirá-los da miséria imposta pelo sistema.
Fabiano e Sinha Vitória não querem essa vida para os filhos e sonham que eles possam estudar, para não viverem no cabresto de donos de terras, nem dependerem da natureza para terem dias de fartura ou de fome. Todas essas reflexões acontecem em fluxo de consciência, pois na pequena família os diálogos são escassos como a chuva. .
A fuga é a única saída, quando por mais que se trabalhe, mais a dívida aumente. E o ciclo continua: caminhadas sem rumo, comendo bichos do mato, bebendo água lamacenta, passando mal com o sol escaldante, passando fome, muita fome. Precisaram matar e comer o papagaio de estimação da família; mesmo que isso doa no coração, é preciso sustância pra continuar em busca da mudança de vida. Ela chegará?. .
A cachorra Baleia é um personagem à parte. Cada membro da família tem um capítulo dedicado às suas características e ideias e ela também tem o mesmo tratamento. Representa a humanização do bicho, em contraponto ao homem animalizado em situações como as que se mostram na história. Ela é gente, pensa como, age igual e luta tanto quanto eles. Impossível não se emocionar com essa personagem que tem nome de bicho que vive no mar, na água, no que falta em abundância ao sertanejo nordestino. .
O silêncio significa muito nesse livro. É preciso entender esse tipo de discurso, seja quando usado pelos personagens ou pelo narrador. O silêncio afaga, acusa, mostra sofrimento, admiração. O mesmo silêncio traduz o sentimento de injustiça por que Fabiano passa na cidade e a certeza de que falar e tentar a defesa não o livraria na sua condição. É o silêncio da fome, da incerteza, da agonia. .
Não à toa, "Vidas Secas" tem uma bibliografia imensa de trabalhos acadêmicos a seu respeito. É um dos clássicos mais aclamados de nossa literatura, enquadrado no Modernismo-Regionalismo. Oitenta anos depois, a paisagem e a vivência desses seres repetem-se a cada ano. A seca é certa, mas nada é feito para a enfrentar. Graciliano lia como ninguém que esse fenômeno é parte do sistema de exploração do Nordeste brasileiro e, talvez, nunca chegue o dia em que essas vidas secas deixem de existir e de abalizar o cabresto dos mais poderosos. Apenas leiam