wdlmlra 28/12/2023
.a sapiência temporal de asimov.
.por mais que seja uma temática de caráter repetitivo na ficção científica, eu realmente aprecio livros ou filmes sobre viagem no tempo e realidades paralelas. e entrando nessa discussão, acho interessante pensar no papel seminal desempenhado por obras como essa no que se refere a conceitos inovadores das décadas de 50 e 60, por especularem sobre o futuro e criarem um conteúdo em cima disso que realmente fez as pessoas se interessarem por essa premissa, que era distinta para a época, mas que, com o tempo, se tornou algo comum no gênero e na cultura de massa.
asimov, o bioquímico, autor, mestre do gênero e inteligente como foi e teve a oportunidade de mostrar em suas diversas obras, executa este trabalho de uma forma que eu jamais imaginaria ter a oportunidade de ver. ?o fim da eternidade? é um thriller futurista com a estrutura narrativa conduzida de uma forma um pouco preguiçosa ao meu ver, mas que consegue ser audacioso, autêntico e ao mesmo tempo simples, com um leve toque de insuficiência devido ao seu universo repleto de informações e que tem como núcleo um elemento tão sinestésico como o tempo.
afinal, o que é o tempo realmente? a natureza dele tem sido objeto de reflexão filosófica ao longo da história da humanidade, e temos tantas perspectivas sobre ele que isso acaba virando uma bola de neve para a especulação e o questionamento sem fim. nessa jornada intelectual complexa e desafiadora, temos kant argumentando que o tempo não é uma característica objetiva do mundo, mas sim uma condição necessária para a experiência; heidegger abordando a ideia de que o tempo é uma parte fundamental da existência humana, influenciando a forma como percebemos o mundo e a nós mesmos; e sartre contribuindo com o contexto existencialista de que o tempo é uma dimensão da liberdade humana, porque as escolhas que fazemos moldam o nosso passado, presente e futuro. o estilo de asimov de subverter esse tipo de lógica em pouco mais de 200 páginas é o que torna tudo tão irresistivelmente sofisticado, tenso e envolvente. é sem dúvidas uma representação precursora do conceito de viagem no tempo na literatura.
agora, numa explicação sobre o livro e interligando com o contexto citado, sabe-se que a viagem no tempo é possível. a humanidade compreendeu o espaço-tempo como algo mais palpável do que se imaginava e, logo, foi criada a eternidade, uma espécie de irmandade extra temporal que é capaz de viajar através do tempo, manipulando-o e alterando eventos para criar diferentes versões do presente. nós, como leitores, compreendemos que o tempo é algo sujeito à intervenção da eternidade, e que é mais uma característica intrínseca da realidade objetiva do que uma construção da mente. além da manipulação temporal, o livro suscita questões epistemológicos da filosofia e ética enquanto as camadas da trama vão sendo desenvolvidas e/ou retomadas, como o preço a ser pago por interferir na ordem natural dos acontecimentos. sob essa perspectiva, os eternos são pessoas ? majoritariamente homens ? escolhidas a dedo para dedicarem suas vidas ao monitoramento da corrente temporal, tendo como objetivo moldar a história para alcançar o que é considerado o ?melhor? para todos a longo prazo. são várias etapas até alguém ser efetivamente um eterno e estar apto a decidir o que é certo ou errado a se fazer, como simulações para avaliar o impacto das mudanças realizadas e, se, essas mudanças trarão o resultado desejado, que é sempre o bem maior para a humanidade.
então, entra a questão mais importante e relevante do livro, na minha opinião: a manipulação temporal para alcançar um mundo perfeito, se limitando a uma visão utilitarista, justifica os meios? a intervenção na evolução natural para evitar erros é realmente um acerto? e se for um atraso? os eternos tomam suas decisões com base na avaliação ética das consequências, mas asimov explora essa abordagem questionando as implicações dessas ações consideradas no julgamento e a eficácia delas. sejamos francos, querer que a humanidade seja justa e salva nos remete a um realismo utópico e um padrão moral elevado demais. o decorrer da narrativa sugere e, posteriormente, evidência que esse julgamento colide com a complexidade do mundo real e traz um questionamento dessa tal salvação no contexto temporal da forma mais ampla. todos estão propensos a erros e acertos, e pensadores como nietzsche trazem uma contribuição relevante ao frisar o papel do sofrimento e dos desafios da evolução moral e cultural. errar é uma coisa essencial no processo de desenvolvimento de qualquer ser humano. o controle absoluto é impossível.
a perspicácia do livro reside em como, embora seja possível ter a capacidade de moldar o tempo, os eternos não tem controle total sobre as consequências de suas ações. harlan, nosso técnico super competente e protagonista, é a própria personificação de que a habilidade incrível de manipulação não isenta ninguém dos desafios inerentes à imprevisibilidade dos caprichos humanos. assim como o tempo, vemos também que é difícil lidar com o amor. sujeito a seus próprios dilemas e limitações, o clímax da história se dá quando harlan se apaixona por noys, uma mulher que eventualmente irá desaparecer nas alterações do tempo. ele estava pronto para arruinar a eternidade, se fosse necessário, apenas para tê-la, e tinha poder para isso. com tantas coisas em jogo e noys aparentando ser uma força antagônica, harlan toma consciência de como percebe o tempo, com experiências e emoções em jogo, e levantando a questão de que a eternidade pode não ser o melhor caminho a se seguir.
já entrando no mérito dos personagens, eu sou o tipo de leitora que não aprecia muito quando eles são rasos, mas acredito que a caracterização nesta obra em específico está na ideia que o enredo explora. não temos personagens desenvolvidos profundamente em termos de complexidade emocional, mas eles cumprem bem seus papéis de transmitir a gênese da história mais do que suas emoções pessoais. as interações entre eles também fazem jus ao tema central do livro e contribuem para a exploração dos temas abordados, que residem totalmente nas implicações da intervenção temporal. o romance, mesmo que friamente construído, tem uma importância crucial e no último ato nos proporciona uma reviravolta eletrizante. essa escolha de ferramenta narrativa reflete como asimov conceitua suas histórias elegantemente.
à vista disso, é bom refletir como a ficção científica evoluiu e como nos familiarizamos com os conceitos relacionados ao gênero, e como essa obra, tal qual o próprio isaac asimov é um autor tão conceituado e inovador por explorar com maestria um aspecto há quase 70 anos atrás que ainda é tão relevante para o mundo atual. minha experiência pessoal é de que eu era uma pessoa antes de ler esse livro, e sou outra após ter finalizado. existe algo de provocante em ler obras que retratam não apenas futuros possíveis, mas também aspectos da natureza humana e da sociedade, e das questões associadas a esses avanços. simplesmente fascinante. o triplex foi alugado na minha mente pelo resto da vida com sucesso.