Ana Sá 04/04/2022
Um livro inacabado de uma boa escritora
ATENÇÃO: Se você é muito sensível a informações sobre enredo/personagens, este texto pode conter spoilers e eu não tenho Serviço de Atendimento às Consumidoras. Siga por sua conta e risco!
Li este livro num intervalo de 24 horas. Ele flui mesmo, acho que quase ninguém tem/terá reclamações quanto a isso. Ah, e também é daquelas obras nada mornas! Dificilmente uma leitora sai indiferente a este romance; por uma razão ou por outra, fica uma sensação de: "o que é que eu acabei de ler?". O livro incomoda e esse incômodo, por si só, pode fazer valer a leitura.
Para situar quem não faz ideia do que trata "Tudo é rio", são três suas personagens principais: Dalva, Venâncio e Lucy. Os dois primeiros casados, sendo esta última uma prostituta que se envolve com Venâncio quando seu casamento é abalado por um ato gravíssimo de violência doméstica por ele praticado contra a esposa e o filho recém-nascido (isso acontece nos primeiros 10% do livro, nem conta como spoiler!). E justamente devido à complexidade do tema, "Tudo é rio" levantou e continua a levantar um debate fervoroso sobre uma suposta romantização (ou não) da violência contra a mulher. É este o bafafá da vez e foi ele, também, que me fez antecipar a leitura desta obra... Mergulhei no rio de Carla Madeira com a intenção de dar muita atenção a esse ponto: "Há romantização? Não há romantização?"... Mas eis que, para a minha surpresa, esse aspecto acabou se tornando secundário. Antes de chegar a ele, fui acumulando outras inquietações ou, para ser precisa, outras insatisfações...
Na minha humilde opinião, a autora escreve bem. Há muitos elementos que provam isso. Contudo, seu estilo, cheio (mas muito cheio mesmo) de aforismos me cansou! A gente não consegue seguir com a leitura sem tropeçar numa frase de efeito. Há quem goste, já eu me canso quando percebo excessos. Tive vontade de poder dizer para a autora: "amiga, eu já entendi que você escreve muito bem, que você faz coisas lindas com as palavras, agora me deixa respirar um pouquinho! guarda alguma metáfora pro próximo livro!". Por exemplo: tem um momento que para anunciar que Venâncio vai 'mijar' (verbo usado logo em seguida), tem-se a frase: "...já estava lá fora no portão, quando pôs sentido na bexiga cheia e pesada". Então... me cansa. Quebra o ritmo. Eu encaro como um excesso. Pode ser meramente questão de gosto, mas o fato é que: ai que preguiça!
Pois bem, mas mais grave, a meu ver, são as lacunas que o romance coleciona:
[Lembre-se, eu não tenho Serviço de Atendimento às Consumidoras, e a partir daqui eu posso mesmo ferir os olhos de quem é sensível a spoilers!]
* Dalva opta por uma postura silenciosa e retraída após sofrer a violência doméstica. Por quê? Que elementos de sua personalidade e trajetória explicam essa escolha?
* Lucy é prostituta por escolha (o que é, de início, um ponto forte da narrativa, pois nos traz uma visão pouco usual da prostituição), mas como foi construída sua sexualidade? De onde vem tanto desejo, tanta sensualidade, desde cedo? Aliás, de onde vem esse profundo ódio de Lucy por Dalva, num momento em que elas nem sabiam direito uma da existência da outra?
* Venâncio supostamente se arrepende? Como, quando, onde começou esse arrependimento?
Enquanto lia "Tudo é rio", eu tive uma sensação recorrente de "mas DO NADA isso?". Há afirmações genéricas, sugestões, indícios de respostas, mas será que esses temas, será que essas personagens permitem uma narrativa de superfícies?
Chega a ser paradoxal porque são personagens marcantes mas que, ao mesmo tempo, acabam ficando rasas pois a complexidade de suas trajetórias e ações nunca é devidamente trabalhada (repito, na minha humilde opinião!). E por isso dei o título que dei a esta resenha: "um livro inacabado de uma boa escritora". Carla Madeira escreve bem, mas parece que seu livro sofreu de certa desatenção por parte da editora, parece que faltou ali uma profissional para sugerir, por exemplo, que a linguagem fosse lapidada ou que o conteúdo fosse expandido. Raras são as vezes que fecho um romance com a sensação de quem faltaram páginas. E neste eu senti isso. A força do enredo e dessas personagens não cabiam nessas 200 e poucas páginas.
Sei que pode parecer pedante ou oportunista, mas, assumindo o risco, acho que vale compartilhar aqui um relato pessoal bastante sincero: parte dessas reflexões foram guiadas pela minha própria experiência de escrita. Ano passado, eu decidi publicar de forma independente um livro de contos. E precisamente por não ter editora, e precisamente por escrever sobre temas delicados, tive muitos receios envolvendo o excesso ou a falta na minha escrita. Eu sabia o que estava (e estou) a perder por não ter um editora. E é por essa razão que às vezes eu encaro bem algumas críticas negativas que eu recebo... Às vezes, uma leitora pega num ponto de excesso ou de falta em um dos contos e eu penso: "você tem toda razão... se você tivesse sido minha editora, e me criticado antes da publicação, teria sido bom!". Foi um pouco disso que senti em "Tudo é rio": "poxa, que pena que a obra não caiu nas mãos de uma boa editora" (e aqui não falo de editora no sentido de empresa, mas de uma boa profissional/crítica literária mesmo, sabe? que inclusive são difíceis de encontrar!).
E para não dizer que não eu falei da tal "romantização":
[Eu avisei dos spoilers... amiga, ainda dá tempo de você fechar o Skoob!]
Para mim, também essa chave de leitura, a de que o livro romantiza o "irromantizável", cai de novo na questão das lacunas deixadas pela autora. A priori, a premissa da punição que vem do remorso do agressor e da indiferença passivo-agressiva da vítima, seguida de redenção, que é o que Venâncio experimenta, é muito válida artisticamente e, se bem trabalhada, poderia nos entregar uma baita personagem! Há verossimilhança possível num crime de violência doméstica que passa despercebido ou ignorado numa cidade pequena. E haveria, imagino eu, caminhos para se construir um sofrimento e um arrependimento à altura de uma violência tão bárbara. Na arte, haveria. Crime, perdão, redenção, amor, ódio, o humano e suas contradições... Quer mais literatura do que isso? Mas aí é que está... Uma vez mais, lá estava eu, me perguntando: "mas DO NADA isso?" (o desfecho do Venâncio foi, para mim, o famoso "de cair o c* da bunda!"). Ou seja, na minha humilde leitura, nem chega a ter romantização, pois até para isso teria sido necessário escrever mais! Ou então, quem sabe, há margem pra essa crítica à romantização justamente por causa daquilo que não foi dito.
Fechei a minha avaliação de leitura num "bom" (3.5 estrelas), pois como é de se esperar de uma boa escritora, como é Carla Madeira, há passagens, capítulos, descrições muito autorais e interessantes. Algumas, quando não pecam pelo excesso, são belíssimas! Eu lamento que a autora tenha deitado a caneta tão antes do fim.
Agora, com licença. Já escrevi demais e estou apertada... preciso "pôr sentido na bexiga cheia e pesada" (ah, gente, sério?! rs).