Mauricio 29/09/2017
A um escombro da morte
Livro de John Hersey, Hiroshima, traz à tona a história de seis sobreviventes que estavam a poucos metros do centro da explosão da bomba atômica jogada pelos Estados Unidos no Japão. Contando com a sorte e alguns metros de concreto, todos os personagens sobreviveram ao ataque e relatam minuciosamente a experiência traumática de se tornar cobaia da primeira bomba de destruição em massa, que vitimou cerca de 100 mil pessoas. A cautela ao relatar o perfil dos personagens, por Hersey, demonstra a frieza e o impacto em trazer ao leitor, com dados precisos, a reportagem mais importante do século 20.
Título: Hiroshima
Editora: Companhia das Letras
Páginas: 172
Preço: R$47,90
Autor: John Hersey
Hiroshima é uma aula de empatia. E o fast-journalism, hoje, sente a ausência disso. O autor busca, por meio da descrição, criar a imersão do leitor ao fato, imaginando, por meio das características e o sentimento de tensão da Segunda Guerra Mundial, o fato que chocaria o mundo - a explosão de uma bomba atômica. Hersey achou na precisão dos dados uma das formas de chocar e trazer o debate aos leitores da New Yorker, que tiveram o privilégio de ler uma matéria completa, com uma edição inteira, sobre os horrores que se passaram na cidade japonesa. Ele poderia - e faz - provar que a precisão de dados não se antepõe à descrição literária; é necessário saber utilizar ambos em conjunto. É como uma fuga do maniqueísmo político que viria a tomar o mundo posteriormente na Guerra Fria. O Dr. Terufumi Sasaki, um dos seis personagens do livro, é descrito, por meio do que fazia, no momento exato do acidente: desde suas angústias ao que viria acontecer posteriormente. O clímax do livro, como uma boa chamada de uma matéria, vem logo no início, no momento da explosão. E nesse período o autor se consolida como repórter nato: ‘‘Então a explosão sacudiu o prédio (a 1485 metros do centro). Os óculos do médico voaram longe; o frasco de sangue se espatifou contra a parede; as sandálias saíram-lhe dos pés - mas isso foi tudo que lhe aconteceu, graças à posição em que ele se encontrava.’’ (Pg. 20). Percebe-se que, pelo número quebrado, sua precisão em relatar o local onde se encontrava o médico demonstra o alto nível de apuração realizado pelo autor, não deixando de lado as minúcias do fato, que mantêm o leitor preso à reportagem.
Na década de 60, o debate entre Jornalismo de Dados e Jornalismo Literário se antepôs. Não há duvidas a um leitor de Hiroshima que trata-se literatura, mas sem qualquer tipo de invenção - tudo é verdade no fato, por se tratar de jornalismo. O que não se observara naquele período é que os dados eram complemento à literatura. É impossível fazer jornalismo sem dados tal como é improvável contar uma boa história sem qualquer tipo de descrição. A Sangue Frio, de Truman Capote, pode resumir perfeitamente o tipo clássico de Jornalismo Literário, por conta da apuração em trazer o melhor tipo de descrição ao assassinato brutal de uma família no Kansas, mas só Hiroshima soube complementar ambos os tipos de fazer jornalístico. O único problema da reportagem de Hersey - e que é dito por Harold Ross, um dos fundadores da New Yorker, onde o texto foi publicado - é que em nenhum momento se fala o motivo da morte de todas aquelas pessoas descritas, adjacentes aos seis personagens: elas faleceram pela intoxicação, pelos escombros ou pelas queimaduras? O autor não responde isso; deixa como interpretação vaga ao leitor.
A reportagem - apesar de dissolver seu clímax logo no início, no momento da explosão - se tornou um alento por dois motivos: o primeiro é que ela aborda o ponto de vista de seis pessoas que não se conheciam ou que tinham um contato superficial antes da explosão, mas que, apesar das divergentes características e ramos profissionais, acabam convergindo pela tragédia e se conhecendo, como em uma série de televisão; isso é observado claramente entre o Padre Kleinsorge e a trabalhadora de uma fundição de estanho, Toshiko Sasaki. Tudo parece ficção, o que deixa a narrativa mais interessante: não foge à cabeça do leitor, o tempo inteiro, pensar que tudo aquilo era verdade e de fato aconteceu. Pensar nisso, hoje, é algo inimaginável. O segundo ponto é que o autor sobre precisamente trabalhar com o pré e o pós; com os fatos, de cada um dos personagens que sucederam nas horas anteriores até a explosão, às 8h15, em Hiroshima, mas, também, valorizando a destruição posterior, o caos de pessoas que, ao serem encostadas, tinham a pele arrancada, a história de uma cidade civil que teve um raio de 8km devastado pela justificativa norte-americana de um ‘‘mal necessário’’ para terminar de vez com a Segunda Guerra.
Hiroshima é um prato cheio para um historiador que busca a contextualização do maior conflito do planeta até então. Seu impacto histórico é irreversível. Quando Hersey volta ao local, 40 anos mais tarde, no capítulo Depois da catástrofe, descreve os fatos sucessivos ao fim da Guerra, como a polarização entre URSS e EUA, o desenvolvimento de bombas atômicas por outros países e o auxílio - e principalmente a ausência dele - internacional às vítimas do experimento.atômico. Hersey traz à tona, também, pelos relatos, o orgulho de pertencimento à nação, desdobrados através da Revolução Francesa; esse foi um dos motivos do início da Grande Guerra. A banalidade do mal, de Hannah Arendt, se torna um complemento essencial às questões éticas presentes na reportagem. O autor busca explicar o termo utilizado pelos que sobreviveram à explosão; eles não gostavam de ser chamados de sobreviventes, pois era um desrespeito aos mortos que não tiveram a mesma sorte. Hibakusha se tornou a palavra precisa às pessoas. Ela significava ‘‘pessoas afetadas pela explosão’’. Houve um grande traço de humanidade, como toda reportagem responsável deve ter, no autor em se utilizar da expressão no restante do livro. O que separava um morto de um vivo era uma parede. A maioria dos que sobreviveram estavam a um escombro da morte. E isso bastou.
Maurício Rabaiolli Paz