Daniel 11/07/2013
Relato à altura do fato
Pela primeira vez, uma edição da revista The New Yorker conteve uma única reportagem, sendo revogado o espaço costumeiramente concedido a críticos, colunistas e assuntos diversos da metrópole estadunidense. A escolha editorial do fundador da revista, Harold Ross, não foi por acaso: com mais de cento e cinquenta páginas, a reportagem Hiroshima, de John Hersey, seria considerada de imediato um ícone jornalístico, dando origem, na opinião de estudiosos, ao jornalismo literário. Publicada em 31 de agosto de 1946, a matéria chegou ao Brasil em 2002, traduzida por Hildegard Feist e lançada em forma de livro pela Companhia das Letras. A tardia versão brasileira veio acrescida de um capítulo final, escrito por Hersey quarenta anos após a publicação da revista.
O objetivo da publicação ao incubir a Hersey a missão de apurar os fatos e redigir a reportagem foi claro: entender e transmitir, sob o ponto de vista dos habitantes da cidade – das pessoas realmente afetadas pelo acontecimento – a extensão e as implicações da tragédia que tirou a vida de cem mil pessoas e feriu gravemente outras cem mil.Conforme editorial da revista: “Esta semana, The New Yorker devota todo o espaço editorial a um artigo sobre a quase completa obliteração de uma cidade por uma bomba atômica e sobre o que aconteceu à população daquela cidade. Isso é feito com base na convicção de que poucos de nós compreenderam todo o inacreditável poder destrutivo dessa arma, e de que todos possam ter tempo para considerar a terrível implicação de seu uso”.
Para alcançar tão pretensiosa meta, Hersey ficou no Japão de 25 de maio a 12 de junho, período no qual realizou centenas de entrevistas com os mais variados personagens. O enfoque da reportagem teria como base, no entanto, a vida de apenas seis pessoas e a maneira como a explosão da bomba atômica as afetou ou deixou de afetar, antes, durante e depois de o artefato ser lançado sobre o arquipélago que dá forma à cidade. São elas: reverendo Kiyoshi Tanimoto, pastor Metodista;Hatsuyo Nakamura, viúva, mãe de três crianças; Dr. Masakazu Fujii, médico proprietário de um hospital privado;Padre Wilhelm Kleinsorge, pastor Jesuíta; Dr. Terufumi Sasaki, médico no Hospital da Cruz Vermelha e Toshiko Sasaki, funcionária da East Asia Tin Works. O artigo é dividido em quatro grandes partes, ao longo das quais o autor reconstrói o dia da explosão de forma metódica, sob os olhares distintos dos seis personagens principais. Com um relato descritivo ao extremo, fazendo pouquíssimo uso de adjetivos, Hersey busca retratar o acontecimento da forma mais factual possível. O resultado é uma reconstrução minuciosa e rica em detalhes, que faz o leitor mergulhar no ambiente em que a tragédia se sucedeu, comovendo-se a cada parágrafo. Ao humanizar o acontecimento, o autor pode abrir mão de especificidades técnicas: a história viu-se servida com uma abordagem profunda e sincera a tal ponto que nenhum número a poderia alcançar.
Não há dúvidas de que o Hersey e seus editores, Ross e William Shawn, obtiveram sucesso com a realização e a publicação da reportagem. Tanto em âmbito comercial – os trezentos mil exemplares esgotaram-se em minutos e passaram a ser disputados no mercado informal por um preço quintuplicado em relação ao original – quanto editorial – a matéria consagrou-se como um divisor de águas para o jornalismo, sendo exaltada e repercutida ao redor do mundo. Não por acaso, em 1999, uma enquete com 67 jornalistas e hitoriadores realizada pela Universidade de Nova York consagrou Hiroshima como o melhor texto publicado pela imprensa mundial no século XX. Diante de tudo isso, resta a certeza de que a obra consiste em um primor jornalístico, sendo recomendável sob todos os aspectos.
Daniel Stein Rohr