spoiler visualizarjmrainho 29/01/2021
A ilha de todos nós
OS TRABALHADORES DO MAR (1866), VICTOR HUGO
Segunda versão da tradução de Machado de Assis, feita em 1866, e que só atualizou a ortografia. Edição Nova Cultural/Clube do livro, 1979.
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A relação do homem com o mar e com uma ilha - real ou fictícia é bem explorada na filosofia e na literatura. Victor Hugo (1902 - 1885) usa mais que uma metáfora em "Os Trabalhadores do Mar" (publicado em 1866). É quase um autobiografia. Não do ponto de vista da história narrada e das personagens. Mas sim do ponto de vista psicológico daquilo que coloca em cheque o destino fatal ou construído no roteiro da narrativa - onde detalha se Deus ou o Diabo que cuida das pessoas e se é possível de desvencilhar de um destino perverso.
O autor também provavelmente questionava sua própria vida. Vivia confortavelmente, numa mansão (hoje museu) no topo da capital da ilha de Guernesey, Canal da Mancha. Era um exílio auto-imposto pelas atitudes ditatoriais de Napoleão III - que ajudou a eleger e se arrependeu.
Achava que esse exílio duraria para sempre. Deve tem lembrado da Ilha de Santa Helena, último refúgio de Napoleão, que faleceu lá em pouco tempo. Mas para Victor Hugo foram longos 19 anos. Tempo para terminar o clássico "Os Miseráveis" (1862), e também "Os Trabalhadores do Mar", entre outros. Achava que iria morrer ali, que era o fim, o seu destino final. Ledo engado, porque teve uma via ativa pós exilio (com a morte de Napoleão III volta à França), foi senador, escreveu dezenas de outras obras e se tornou um dos escritores vivos mais influentes de seu tempo. E ainda hoje.
O personagem principal de "Os Trabalhadores do Mar", Gilliat, que morava na ilha, é muito semelhante a Jean Valjean de "Os Miseráveis". Ambos são heróis éticos, cuja vida foi marcada por grandes sacrifícios físicos e psicológicos pelo bem de uma mulher. Jean Valjean foi o herói de sua filha de criação Cosett, desde que a resgatou de uma família que a usava em trabalho escravo infantil, até sua união com Marius. Em "Trabalhadores do Mar", Gilliat se dedica para salvar a fortuna da jovem Déruchette, por quem estava apaixonado. O pai de Déruchette perdeu sua fonte de renda, um inovador barco vapor - chamado de "Navio Diabo" pela ignorância e inveja locais -, em um naufrágio, e se martiriza pelo peso da mão do destino, achando que nunca mais vai se reerguer. Gilliat retoma o que sobrou do barco, o suficiente para construir outro, e recupera um dinheiro também perdido do pai da moça. E termina o livro colocando a amada nos braços e no casamento com outro homem, onde sentimentos eram verdadeiramente correspondidos. Valjean e Gilliat morrem no fim. Como verdadeiros mártires. Fazendo antes a coisa certa. Se tornaram heróis mais para si mesmo que para a sociedade. É o que importa. E lutaram pela felicidade do próximo, desinteressadamente. Puro amor.
O livro tem um pano de fundo de realismo fantástico. Gilliat era filho de uma feiticeira (segundo as más línguas), morava numa casa mal assombrada (segundo a fofocaiada local); existiam outras casas fantasmas na ilha.... Gilliat falava com fantasma e via monstros reais e imaginários - um deles, um polvo, quase o matou. O autor lembra que a ultima queima de feiticeiros na Guernesey da vida real aconteceu em 1747. Ouve outras entre 1565 e 1700 - onze no total. Uma critica ao poder religioso fanático. Sua critica as religiões formais também está inserida num dos personagens, o jovem Ebenezer, recém-eleito líder religioso local, que volta à França para receber uma fortuna de herança e com o dinheirama muda sua vocação e pede a heroína em casamento. Ambos fogem para o continente, porque o pai da moça havia prometido ela para seu benfeitor, justamente Gilliat, que ajuda o casal a contrair matrimônio em quase segredo e partir para outro mundo...
PS: a cópia que tenho, capa dura, belíssima edição da Nova Cultural/Circulo do Livro, é uma tradução de Machado de Assis.
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Trechos da luta entre Deus e o Diabo: Na voz de vários personagens (grafia original do livro)
Para saber se está com o diabo ou com o marido, apalpe-lhe a cabeça e, se encontrar pontas, pode estar certa.
Diz uma fábula da Índia: Um dia Brama perguntou à Força: Quem é ais forte que tu? A Força respondeu: É a Astúcia. Diz um provérbio chinês: "Quanto não poderia o leão, se fosse macaco?"
O Desconhecido faz surpresas ao espírito do homem. rasga-se bruscamente a sombra, deixa ver o invisível; depois fecha-se. Tais visões são às vezes transfiguradoras; de um condutor de camelos faz Maomé, de uma cabreira faz Joana d´Arc. A solidão desprende uma certa quantidade de desvaria sublime.
Lethierry, meio arruinado, não cedeu, e tratou imediatamente de levantar-se, Aos homens de boa têmpora arruína-se a fortuna, não a coragem.
As novidades têm contra si, o ódio de todos; o menor erro compromete-as.
Há espíritos mais timoratos (acanhados, medrosos) ainda, Esses chegam a persuadir-se de que o mal pode ter razão contra eles. Ser irrepreensível para com o demônio é uma das suas preocupações. Daí vêm as práticas religiosas voltadas para a imensa malícia obscura. É uma carolice como qualquer outra. Os crimes contra o demônio existem em certas imaginações doentias; violar a lei do inimigo é uma coisa que faz sofrer os estranhos casuístas da ignorância; há escrúpulos para com as regiões das trevas.
Quando o homem começa a assustar-se, não pára mais. Sonha culpas imaginárias, sonha purificações imaginárias, e faz limpar a sua consciência com a vassoura das feiticeiras.
Clubin imaginava de boa fé que tinha sido oprimido. Por que não nascera rico? Não lhe dando todos os gozos da vida, forçaram-no a trabalhar, isto é, a enganar, a trair, a destruir? Por que motivo condenaram-no assim a essa tortura de adular, de rastejar, de comprazer, d fazer-se amar e respeitar, e trazer dia e noite no rosto um roto que não era dele?
Tudo quanto ele construíra deu em resultado aquela cilada; foi ele próprio o arquiteto laborioso de sua emboscada. Nenhum recurso. Nenhuma solução possível. O triunfo fazia-se precipício. Em vez a liberdade, a captura. Em vez de um futuro próspero, longo, a agonia.
É próprio da hipocrisia ater-se à esperança. O hipócrita é o homem que espera. A hipocrisia é uma esperança horrível: o fundo dessa mentira é feito desta virtude, tornada vício.
Estranha coisa é ver com que facilidade os tratantes acreditam que devem ser bem sucedidos.
Tinha uma alma no mar, e essa ama acabava de perecer. Que faria ele agora? Levantar-se de manhã, deitar-se de noite. Já não podia esperar a Durande, nem vê-la partir nem voltar. O que é um resto de existência sem objeto? Beber, comer, e depois?
Não tinha mais nada a fazer. Naquela idade não é possível recomeçar; de mais a mais estava arruinado. Pobre velho!
O naufrágio era uma desgraça, mas era também uma felicidade. Sondemo-nos; não nos inchava a prosperidade? As águas da felicidade são perigosas. Não se deve tomar as desgraças à má parte. Os caminhos do Senhor são desconhecidos. Mess Lethierry estava arruinado. Pois ser opulento é estar em perigo, aparecem amigos falsos. A pobreza afasta-os. Fica isolado.
O isolamento dá frutos. Ganha-se nele as graças do senhor.
Não nos revoltemos contra os impenetráveis decretos da Previdência. O santo homem Jó, depois da sua miséria, cresceu em riquezas. Quem sabe se a perda da Durande não teria compensações, mesmo temporais?
O conselho vem do homem, a inspiração vem de Deus.
A bíblia aberta ao acaso faz uma revelação. É sobretudo boa para os aflitos.
O que o homem não escolhe, escolhe-o Deus.
Os teimosos são sublimes. Quem é apenas bravo tem só um assomo, quem é apenas valente tem um temperamento, quem é apenas corajoso tem só uma virtude; o obstinado na verdade tem a grandeza. Quase todo o segredo dos grandes corações está neta palavra: perseverando. A perseverança está para a coragem como a roda par a alavanca; é a renovação perpétua do ponto de apoio. Esteja na terra ou no céu o alvo da vontade, a questão é ir a esse alvo; no primeiro caso é Colombo, no segundo caso é Jesus.
Não deixar discutir a consciência, nem desarmar a vontade, é assim que se obtêm o sofrimento e o triunfo. Na ordem dos fatos morais o cair não exclui o pairar. Da queda sai a ascensão. Os medíocres deixam-se perder pelo obstáculo especioso; não é assim os fortes. Parecer é o talvez dos fortes, conquistar é a certeza deles. O desdém das objeções razoáveis cria a sublime vitória vencida que se chama o martírio.
Todos os esforços de Gilliat pareciam agarrados ao impossível, o êxito era mesquinho ou lento, e cumpria gastar muito para obter pouco; isso é que o fazia magnânimo, isso é o que o fazia patético.
Fatalidade na causa, necessidade no efeito.
A perda das forças não esgota a vontade. Crer é apenas segunda potência; a primeira é querer; as montanhas proverbiais que a fé transporta nada valem ao lado do que a vontade produz.
O homem pode embriagar-se com a própria alma. Essa embriaguez chama-se heroísmo.
O inacessível ligado ao inexplicável, eis o céu.
Constrange-nos a fé. Crer por força, eis o resultado. Mas para estar tranquilo não basta ter fé. A fé tem uma estranha necessidade de forma. Daí vêm as religiões.
Quando Deus quer, excede o execrável.
A razão desta vontade ´o medo do pensador religioso.
Mess Lethierry estava reduzido à função maquinal de viver.
Os homens mais valentes, privados da sua idéia realizável, atingem a isto. É esse o efeito das existências esvaziadas. A vida é uma viagem, a idéia é o itinerário. Sem itinerário, pára-se. Perdido o alvo, morre a força. A sorte é um obscuro poder discricionário. Pode bater com suas vergastas o nosso ser moral. O desespero é quase a destituição da alma. Só os grandes e espíritos resistem. E ainda assim...
Ser impotente é uma força. Diante das nossas duas grandes cegueiras: o destino e a natureza, é na sua impotência que o homem acha o ponto de apoio, a oração.
No tempo que era feliz, Deus existia para ele...Mas no infortúnio de Lethierry, fenômeno aliás frequente, Deus eclipsava-se. Isto acontece a quem imagina um Deus bonachão.
O pesar é nuvem e muda de forma..
Nada mais triste do que pensar em decair.
É o que no dia seguinte começa a sentir. Por que? Por alfinetadas. Passa um homem sem tirar o chapéu, chovem as contas das lojas, ri-se um inimigo.
Lê a tua decadência até nos olhares indiferentes; as pessoas que jantavam em tua casa acham demasiado os três pratos da tua mesa; os teus defeitos saltam aos olhos de todos; as ingratidões, não tendo que esperar mais nada, tiram a máscara; todos os imbecis predisseram o que te acontece; os maus dilaceram-te, os piores lamentam-se. E mais cem pormenores mesquinhos. A náusea sucede às lágrimas. Bebias vinho, beberás sidra. Duas criadas! Uma seria demais. Há flores demais no jardim, plante batatas. Davas flores aos amigos, vende-as agora no mercado.
Cumpre-te morrer todos os dias. Cair não é nada, é a fornalha. Decair é o fogo lento.
A queda é Waterloo. Decadência é Santa Helena. Essas duas fases, Waterloo e Santa Helena, reduzidas às proporções burguesas, todos as atravessam.
Merecer a compaixão altiva dois idiotas! Ver triunfar a rotina, a obstinação, o ramerrão, o egoísmo, a ignorância!
Nada perturba tanto o espírito como curvar-se ao peso do ignoto. O homem é o paciente dos acontecimentos. A vida é um perpétuo sucesso, imposto ao homem. O homem não sabe de que lado virá a brusca descida do acaso. As catástrofes e as felicidades entram e saem como personagens inesperadas. Tem a sua fé, a sua órbita, a sua gravitação fora do homem. A virtude não traz a felicidade, o crime não traz a desgraça; a consciência tem uma lógica, a sorte tem outra; nenhuma coincidência. Nada pode ser previsto. Vivemos de atropelo. A consciência é uma linha reta. A vida é o turbilhão. O turbilhão atira à cabeça do homem caos negros e céus azuis.
A precipitação dos incidente, caindo em existênica habitualmente calmas, tornam logo ininteligíveis os acontecimentos aos que os sofrem ou deles de aproveitam.
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