spoiler visualizarAle 21/07/2014
O individualismo no Romance (Ian Watt) e a personagem Gilliat, de Os trabalhadores do mar
* Texto dissertativo em resposta ao Relatório de Leituras, proposto na disciplina Romance no II nível do curso de Letras da Universidade de Passo Fundo, em 2013/2.
Questão proposta: O individualismo no Romance (Ian Watt) e a personagem Gilliat, de Os trabalhadores do mar
Os Trabalhadores do Mar – Victor Hugo (1866)
O Romance Trabalhadores do Mar, do autor francês Victor Hugo, narra a trajetória da personagem Gilliat na luta contra seus dois grades adversários: a natureza e o amor. A história se passa em Guernesey, ilha onde o autor ficou exilado por 15 anos, cenário perfeito para o desenrolar da trama. Victor Hugo descreve com excelência as características físicas e psicológicas de sua personagem principal logo no início da trama. Gilliat era um homem rechaçado pela sociedade. Desde que chegara ao povoado ainda criança com sua mãe, que viera a falecer anos depois, Gilliat experimentou os maus olhares dos moradores locais que, supersticiosos, tinham o menino e sua mãe por feiticeiros, pois além de seus hábitos autossuficientes e reservados ambos tinham um costume incomum àquela região: sabiam ler. Gilliat cresceu aprendendo a se virar sozinho, tirava o seu sustendo do mar, mas não tolerava agressão desnecessária a vida, a natureza; dependia dela, vivia com ela e assim conhecia todas as suas facetas. Era um exímio pescador, dominava com maestria a travessia pelos rochedos da região. O que não soube dominar foi seu coração. Ao ver a jovem e doce Déruchette escrevendo seu nome com as mãos na neve, Gilliat sentiu amoleceu o seu duro e solitário coração. Déruchette era sobrinha de Mess Léthierry, burguês mais bem sucedido da região, este havia construído um barco a vapor do qual muito se orgulhava e com ele fazia mais rapidamente as travessias e o comercio com o mercado inglês. Léthierry criara a sobrinha para que fosse uma excelente e dedicada esposa, mãe e dona de casa, cumprindo os preceitos de sua época, sonhava vê-la casada como o homem que conduziria Durande, seu amado barco a vapor, quando ele se fosse. Em tempos passado, o bem sucedido burguês tivera sua fortuna roubada por um antigo sócio, foi graças a sua maquina que recuperou fortuna e prestigio. Em falta do homem valente a quem confiaria seu barco e sobrinha, Lethierry deixa-o aos cuidados do capitão Clubin, um experiente homem do mar, mas que tinha segundas intenções. Em um plano para ficar com a fortuna perdida de Lethierry, Clubin joga Durande contra os rochedos esperando que ele afunde e que assim possa ser dado como morto para sumir com o dinheiro. Porém o plano não dá certo. Durande não afunda, fica preso contra o rochedo, e Clubin é misteriosamente puxado pelo pé. Ao saber do suposto acidente, Lethierry, desesperado, oferece a mão da sobrinha ao valente homem do mar que trouxer de volta seu estimado, e lucrativo, barco. Gilliat, já apaixonado, vê na empreitada a oportunidade de ganhar o amor de sua amada. Gilliat lança-se ao mar e durante dias enfrentando os mais extremos limites de sobrevivência planeja um meio de resgatar o motor do barco. Aqui vemos a primeira luta de Gilliat contra seu primeiro adversário, Victor Hugo retrata a luta humana pela sobrevivência. Com seu vasto conhecimento, adquirido nos livros, Gilliat cria uma forma de içar o motor do barco a vapor e o coloca, finalmente, em seu barco. É então que o elemento sobrenatural aparece. Um enorme polvo, o mesmo que havia puxado Clibin pelo pé, surge das profundesas e Gilliat tem de lutar ferozmente por sua vida. É então que o mistério sobre a fortuna de Lethierry é desvendado. Gilliat vence a luta e retorna a vila com o motor do barco e a fortuna do pai de sua amada. Ao chegar a terra firma Gilliat sofre uma decepção. Descobre que Déruchette ama a outro e é correspondida. Espera-se então que Gilliat, homem forte e valente lute pelo seu amor, mas não é o que acontece. Acima das convenções sociais e do acordo que tinha com Lethierry de casar-se com sua sobrinha se recuperasse o barco, Gilliat quebra o “contrato” verbal e nega-se casar com Déruchette. Ele vai além, no intuito de que sua amada seja feliz, dá a ela o baú deixado por sua mãe com o enxoval que deveria ser dado a sua esposa, providencia a união da jovem com seu amado e os ajuda a fugir. Gilliat assiste seu amor ir embora a bordo do Cashmere sentado em um rochedo, onde as pedras tem formato de uma cadeira e são submersas quando a maré sobe ao anoitecer. O segundo maior adversário de Gilliat é o da natureza humana: o amor. E esta batalha ele perde, entregando a própria vida.
A personagem Gilliat caracteriza a lógica do individualismo proposta por Ian Watt. Gilliat é um homem, situado no espaço, que vive por si e para si, desprovido da preocupação de viver em comunidade, o homem adquire o conhecimento através de suas leituras e descobre por si só as formas de manter-se vivo. É provedor do próprio alimento, que tira do mar e da natureza, tem conhecimentos de medicina e meteorologia, sebe se virar independente da adversidade do meio, só não sabe lidar com pessoas. Isso faz de Gilliat uma personagem viva, com traços psicológicos, com livre arbítrio. A solidão de Gilliat e sua autossuficiência são características reveladoras do pensamento moderno, que tem por objetivo a valorização do indivíduo.
Se antes a Literatura e a arte como um todo era voltada para o coletivo o Romantismo traz consigo a valorização do homem e de seus sentimentos. Segundo Ian “o romance constitui um relato completo e autêntico da experiência humana e, portanto, tem a obrigação de fornecer ao leitor detalhes da história como a individualidade dos agentes envolvidos, os particulares das épocas e locais de suas ações.”. A partir desse período, as personagens passam a ter nome, sobrenome, endereço e relações de tempo e espaço com outras personagens que também são construídas baseadas na mesma estrutura. Dessa forma cria-se a identidade das personagens e dá-se a elas traços psicológicos; as personagens passam a existir.
Contudo, Gilliat é um típico personagem romanesco, nele encontramos visivelmente todos os traços do individualismo. Com a riqueza de detalhes fornecidos por Victor Hugo é possível realizar a imagem desse homem desajeitado, feio, e sujo, é possível compreender e realizar o meio em que vive bem como a forma com que o faz. Sobreviver é o que faz Gilliat. Seus valores estão acima dos valores estabelecidos pela sociedade em que vive, Gilliat tem personalidade e defende os valores autênticos.