Andreia Santana 28/02/2024
A tecnologia não é neutra porque humanos não são neutros
Forward parte de uma premissa semelhante à da série britânica Black Mirror: refletir sobre os usos perversos da tecnologia, abdicando completamente das utopias pregadas pelas big techs e suas legiões de fãs. O futuro tecnológico, mais do que uma promessa de prosperidade para a humanidade, já dá sinais de que esse espelho tem dois lados. A tecnologia não é neutra porque é programada por humanos. E humanos nunca são neutros.
Se o programador da IA - Inteligência Artificial - é racista, o algoritmo se comportará de maneira racista. Se o operador é machista, a máquina irá reproduzir o machismo vigente na sociedade. Se quem desenvolve a linguagem não entende a diversidade das identidades de gênero ou desrespeita a orientação sexual das pessoas, teremos sistemas que reproduzem homofobia, transfobia... ou que não conseguem detectar os conteúdos de ódio, xenófobos e intolerantes destilados nas redes sociais.
Coletânea que reúne seis contos de autores contemporâneos que estão reinventando a ficção científica com bastante criatividade e senso crítico, Forward, organizado por Blake Crouch (Matéria Escura, Recursão), também autor do conto que abre essa antologia, Summer Frost, traz temas bastante atuais em propostas incômodas e nada otimistas. Assim caminha a humanidade, em passos rápidos de desumanização.
As seis histórias desse livro apresentam aspectos negativos da realidade atual do desenvolvimento tecnológico, que funcionam quase como o sonho do velho Scrooge ao ser visitado pelos espíritos do passado, presente e futuro. "Vejam bem para onde estamos indo, porque pode não haver mais volta". No caso de Forward, a redenção de Scrooge não acontece após o sovina acordar da noite infernal ao lado dos três espíritos.
Nossos espíritos acusadores, dessa vez, estão na palma de nossas mãos, diante dos nossos olhos ressecados pela tela e das cabeças curvadas e cervicais lesionadas pela postura torta que sequer percebemos em horas de conexão. E somos completamente dependentes deles. Quem mais, nos dias de hoje, consegue imaginar o mundo sem internet, aplicativos, algoritmos que nos dizem como executar da tarefa mais básica à mais complexa? Não é à toa que boa parte dos filmes apocalípticos atuais mostram o caos e a barbárie instalados mal a rede cai.
Os textos de Forward não são nada indulgentes ao destrincharem a relação complexa dos humanos e seus brinquedos tecnológicos. Além disso, trazem aquela beleza única das histórias bem contadas, das narrativas esmeradas e construídas com precisão e um certo charme despretensioso, da escrita simples, clara, fluída.
A curadoria de Blake Crouch, ao selecionar os autores e as histórias para esse projeto, é certeira e, de certa forma, a altíssima qualidade de Summer Frost eleva as expectativas do leitor logo no começo da antologia a um nível que não decai nas cinco histórias posteriores. Todos os contos de Forward são magníficos. Assustadores enquanto simulacros de realidades sombrias possíveis, mas perfeitos.
Summer Frost, sobre uma IA que alcança um nível de inteligência tão elevado que se torna perigosa, coloca na berlinda a arrogância humana e a incapacidade de quem brinca de deus de enxergar os sinais de que a criatura está devorando o criador. Já Pele de Emergência, uma engenhosa história sobre uma colônia espacial de exilados da Terra nos confins do universo, em busca de DNA humano para não entrar em extinção, é uma historia forte, que toca em feridas como o racismo, a prática da eugenia e o poder alienador de seitas supremacistas. Tudo isso embalado pela prosa segura e engajada da autora N.K.Jemisin (vale a pena buscar outras coisas dela para ler).
Arca, de Veronica Roth, autora entre outros da série Divergente, é um poema de despedida escrito em prosa. O meteoro, que tanta gente pede nas redes sociais cada vez que a humanidade faz uma besteira nova, está para chegar e um grupo abnegado de cientistas tenta empacotar o máximo possível de espécimes de fauna e flora, acondicionando tudo em naves espaciais que vão deixar a Terra antes da destruição. Uma horticultora e um velho botânico iniciam uma amizade profunda às vésperas de um apocalipse nada bíblico. E é através desses dois personagens que Veronica, sem uma gota sequer de pieguice, mas fazendo poesia de primeira, esmaga o coraçãozinho dos leitores com um luto antecipado pela morte da Terra, essa nossa mãe/casa tão maltratada desde que o homo sapiens se autodeclarou senhor de toda a vida e portador da morte de milhares de outras espécies. O meteoro é uma coincidência cósmica, mas ele é o tiro de misericórdia em um planeta agonizante.
Você chegou ao seu destino toca na ferida da maternidade/paternidade contemporânea e todas as suas grandiosas expectativas pelo futuro da prole. Será que é possível moldar nossos descendentes para ter a vida perfeita e cheia de propósitos superiores que não conseguimos alcançar ou a tecnologia - nesse caso a engenharia genética - só será aplicada para super dimensionar o que temos de pior enquanto espécie? Que tramas macabras se escondem no nosso inconsciente se nos tornamos donos do destino de alguém que sequer foi concebido ainda?
Espelhando Você chegou ao seu destino há o conto de Paul Tremblay, A última conversa, que também parte de engenharia genética e da clonagem de seres humanos para refletir sobre o quão mesquinhas as pessoas podem se tornar quando sentem medo da solidão que o fim do mundo representa. Temos o direito de reviver quem amávamos? Victor Frankenstein diria que sim, mas a sua Elizabeth ressuscitada discorda com veemência.
Para finalizar a antologia, Randomizando, de Andy Weir, apresenta uma trama que mistura hackers, cassinos de alto luxo em Las Vegas e um golpe de trilhões de dólares minunciosamente planejado por personagens improváveis e quase invisíveis na sociedade autocentrada norte-americana. Eletrizante como um thriller, Randomizando abre mão do maniqueísmo fácil para mostrar que as pessoas tem mais camadas do que se imagina.
Forward, com seu mosaico de histórias distópicas e seu pessimismo diante dos desatinos do antropoceno, tem ainda o mérito de atender tanto o exigente e especializado público leitor de ficção científica quanto abrir as portas do gênero para quem ainda torce o nariz. Se alguém me perguntasse agora que livro eu indicaria para quem nunca leu ficção cientifica ou ficção especulativa, como o gênero também é conhecido, eu diria para apostar as fichas em Forward. As chances de sucesso beiram a perfeição.
Os seis contos de Forward e seus autores:
Summer Frost - Blake Crouch
Pele de emergência - N.K.Jemisin
Arca - Veronica Roth
Você chegou ao seu destino - Amor Towles
A última conversa - Paul Tremblay
Randomizando - Andy Weir
Ficha Técnica:
Forward
Autores: Vários
Organização: Blake Crouch
Tradução: Bráulio Tavares
Editora: Intrínseca, 2021
304 páginas
R$ 40,40 (capa dura, Amazon), R$ 28,50 + frete (capa dura do Clube Intrínsecos + brindes, Amazon) e R$ 28,63 (e-book, Kindle)
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*Livro lido para o desafio #50livrosate50anos, uma brincadeira que criei para comemorar meu aniversário. Em abril de 2024 eu faço 50 anos. A ideia é ler 50 livros até lá e, se possível, resenhar ou fazer algum breve comentário aqui no Skoob e no Instagram, sobre cada um deles. Forward é o livro 17 do desafio.
site: https://mardehistorias.wordpress.com/