stsluciano 03/01/2013
Uma FC clássica pra ninguém colocar defeito
Tenho saudades do tempo em que a modinha literária eram os livros de ficção científica. E olha que nem ao menos vivi naquela época. Mas mesmo tendo nascido mais de uma década depois; à distância, contemporâneo de um mundo que de muitas formas fora imaginado por grandes mestres, Asimov, Bradbury, Aldiss, Arthur C. Clarke, e David Gerrold ainda assim causam forte impressão quando os leio.
Ler ficção científica com uma distância tão grande é sempre um prazer. Temos a oportunidade de observar as considerações dos autores sobre o futuro – que muitas vezes já se tornou passado – e colocar na balança: os prognósticos que se concretizaram, o que ainda é coisa de ficção científica, e o que hoje parece ingênuo de ser imaginado.
Nesta minha primeira oportunidade de ler George RR Martin, o famigerado autor das “Crônicas de Gelo e Fogo”, tenho o privilégio de lê-lo também em seu primeiro romance. Bom, será bastante útil para futuras comparações.
Em A Morte da Luz, conhecemos Worlorn, um planeta errante, ou seja, que não orbita regularmente em nenhuma estrela, vagando indefinidamente pelo espaço, sem que nenhum astro exerça uma força gravitacional forte o suficiente para retê-lo em sua órbita.
Dirk é chamado até o planeta por sua ex-namorada, que, após uma separação traumática, ficara sete anos sem reencontrar. Mesmo estranhando o fato – embora no fundo ansiasse por ele – decide ir, pois a fizera uma promessa tempos atrás e a cumpriria, fazendo o que fosse necessário. Ao chegar lá a encontra casada, e, aparentemente, pouco disposta a reatar o antigo namoro, o que o deixa um tanto confuso, sem saber ao certo o motivo de seu chamado.
A Morte da Luz é uma ficção científica clássica, com muitas conjecturas acerca de aspectos sociais e filosóficos, e leitores não habituados podem ter dificuldade em acompanhar ou se cansar rápido. No livro, diversos planetas foram colonizados, milhares de anos se passaram e códigos de honra são levados ao extremo dando espaço para xenofobia, preconceitos e tudo mais. O universo como um todo, apesar de desenvolvido tecnologicamente, parece um grande western americano, como muita gente disposta a sacar a pistola – laser – ao primeiro sinal de desagrado da outra parte.
O livro também toca em um ponto bastante explorado em títulos de ficção científica: as diferenças culturais e os preconceitos e julgamentos precipitados que podem ser feitos para quem observa a distância ou não tem conhecimento mais profundo sobre determinado povo.
Os kavalarianos, por exemplo, uma das etnias mencionada no livro, são um povo extremamente orgulhoso que detém alguns costumes bastante peculiares e que, por nossa sociedade, poderiam ser vistos quase como selvagens. A mulher é sua propriedade, possui poucos direitos, e o laço mais estreito e sincero que um homem fará em sua vida será com outro homem, na qualidade de amigo. Mas não fica apenas nisso: este amigo também tem direitos sobre a mulher do outro, que vive em constante submissão. Uma escrava – e também sexual – diríamos. É preciso dizer, também, que os kavalarianos consideram boa parte daqueles que não são kavalarianos como quase-humanos, bestas, diabos, animorfos.
Dirk não entende a razão de Gwen se sujeitar a isso, pois sempre fora uma mulher forte, independente, mas há coisas que o amor faz que são complicadas de entender, e um fator externo faz com que fiquem ainda mais confuso.
É aí que Martin leva boas páginas descrevendo a estrutura social kavalariana, assim como aspectos chave de sua história. São trechos interessantes e importantes para que se entenda o que se passa, os laços que são formados e até onde cada um está disposto a ir para mantê-los firmes. E este é um livro onde os personagens são guiados por aquilo em que acreditam. O que é muito bom, diriam, mas todos sabemos o que acontece quando homens plenamente convictos de seus ideais encontram outros com ideias totalmente contrárias.
O planeta Worlorn é muito bem descrito. No início do livro, Martin narra sua descoberta, e a construção de grandes cidades em sua superfície para se celebrar um festival; cada uma delas construída por um povo diferente, visando a representar sua arte e modo de vida; e mesmo, para alguns, sua superioridade, seja artística, econômica, intelectual, ou até sua despreocupação quanto a tudo isso. Elas são bastante diferentes entre si, e o tour que o autor faz por elas é fantástico.
Só achei que a ação do livro demora a se desenrolar. Apesar de ser plenamente compreensível que, devido à complexidade da sociedade kavalariana criada por Martin, uma boa base tenha sido fundamental para situar o leitor no tempo e espaço criados por ele, alguns leitores podem desistir. O que é uma pena.
Martin se mostra tão competente ao narrar ação que quando descreve paisagens ou intrincados sistemas sociais. Confusa e meio fora do ar, Gwen decide fugir com Dirk, quando este é desafiado para um duelo por um kavalariano que se sentira ofendido por uma das ações do protagonista.
Apenas após isso vemos o quanto um planeta que caminha para a hibernação enquanto se afasta de seu sol – belamente descrito como um conjunto de vários sóis – é hostil. Repleto de criaturas trazidas dos mundos participantes do festival, os bosques são cheios de segredos e perigos, um ambiente nada propício para uma pessoa como Dirk, e o que ele tem que enfrentar ali muda profundamente a pessoa que ele é.
Como minha primeira leitura de Martin, posso dizer que fiquei ansioso por começar logo “As Crônicas de Gelo e Fogo”. Narrador competente, consegue manter o leitor imerso mesmo enquanto passeia por temas que não são dos mais empolgantes. E é isto que o livro é: um passeio dos mais vigorosos por um mundo de ficção científica. Os fãs do gênero tem aqui um livro de primeira grandeza.
Resenha originalmente publicada aqui: http://www.pontolivro.com/2012/11/a-morte-da-luz-resenha-084.html