alineaimee 04/04/2024Realismo mágico luso-cearense?O barco de cada um está em seu próprio peito?. (provérbio macua)
?O sonho é o olho das almas?. (p.189)
?Oração para desaparecer? é o segundo romance de ficção literária da escritora cearense Socorro Acioli (a autora publicou diversos livros infantis). Lançado em 2023, este romance conta a estória de Cida, uma mulher que, de certo modo, revive misteriosamente noutro continente.
Retornando ao realismo mágico que caracterizou seu livro anterior, ?A cabeça do Santo?, Acioli trama uma narrativa deliciosa, reunindo elementos folclóricos e lendários do nordeste brasileiro e portugueses: encantados, igrejas soterradas, santas disputadas, cultura tremebé. Consciente das relações profundas entre Brasil e Portugal, a autora é capaz de fazer soar a melodiosa voz que une esses dois mundos ? de Nossa Senhora da Conceição à Umbanda ? que torna as noções de pertencimento e ancestralidade tão nuançadas.
Não é à toa que falo de voz: se orações, tradicionalmente, são entoadas em voz alta, Acioli também procura recriar uma espécie de poesia, de ritmo, que conjugue as oralidades cearense e lusitana aos cantos rituais Tremembé.
?Saí de um buraco na terra de Almofala, em Portugal. Estava nua e careca, só usava um colar de búzios. Não sei meu nome. Fui salva por um casal de idosos. Tenho cortes e marcas de violência no corpo. Sou brasileira. Consigo ver os mortos. Não lembro de nada. Acredito em Deus.? (p. 34)
Com ecos de outras estórias fantásticas, como ?Pedro Páramo?, do mexicano Juan Rulfo, e ?O vendedor de Passados?, do angolano José Eduardo Agualusa, Acioli vai costurando sua produção a ramos genealógicos: tudo em seu livro evoca passado, influências, histórias, tradições. Talvez por isso o romance se torne um tantinho mais didático na parte final. Senti o apego da escritora ao que ela precisava revelar.
Felizmente, isso não chegou a abalar o prazer da leitura. Fui envolvida pelas imagens dos sonhos de Cida, pela cooperação das trigêmeas Marias, pelas paisagens que desafiam a razão. E ainda mais pela agência da protagonista, que consegue respeitar seus elos e raízes sem se deixar determinar por eles. Afinal, se ?Nunca se entende tudo de uma vida, muito menos de uma travessia?, como nos explica a pajé Tremembé Malba, será que adianta se torturar diante das escolhas que precisam ser feitas?
*resenha publicada originalmente no Instagram @alineaimee