natbellangero 15/05/2024
Para que essa simbiose ocorresse e produzisse um efeito duradouro, as disputas ficaram, naturalmente e por um tempo, de lado
==========
Mas espelho mesmo, acessível para nos observarmos, era apenas o espelho d’água dos rios com seu líquido escuro e ferruginoso, onde nos víamos negras num espelho também negro, talvez criado exatamente para nos descobrirmos
==========
Os curadores serviam para restituir a saúde do corpo e do espírito dos doentes, era o que sabíamos desde o nascimento
==========
Mas a terra é deles. A gente que não dê que nos mandam embora. Cospem e mandam a gente sumir antes de secar o cuspo
==========
Sofri um tanto com o pé cortado, sem poder andar por terreiro e quintal, por roça e beira de rio. Aquele era o nosso pacto de vida, desde o fatídico dia em que a faca de Donana havia fendido nossa história, decepado uma língua, impedido a produção de sons, ferindo a vaidade de uma Mãe d’Água, mas unindo duas irmãs nascidas do mesmo ventre, em tempos diferentes, pela vida até aquele instante. Meu encanto por primo Severo não era maior do que o que sentia por minha irmã, do sentido de proteção que lhe devia, da proteção que ela me devotava também. Não fosse o pé ressentido pela ferida que a tarde de pesca me havia produzido, talvez permanecesse ainda por mais tempo distante de Belonísia. Sem a comunicação era como se nos silenciássemos mutuamente. Era silenciar o que tínhamos de mais íntimo entre nós. Sem poder me tocar, ela não poderia sentir a vibração da respiração em meu corpo. Sem poder lhe tocar, não poderia sentir a velocidade com que o rio de sangue corria em suas veias
==========
Não poderia saber, a partir da sua agitação interior, seus humores, se bravos ou mansos. Não poderia olhar para meus olhos e perceber, apenas com o exame de meus movimentos, o que intencionava
==========
Minha avó dizia que não fazia parto, quem o fazia era a mãe, apenas ajudava
==========
Mas pessoas como nós, quando viam o orgulho que sentia dos filhos aprendendo a ler e do valor que davam ao ensino, saberiam que esse era o bem que mais queria poder nos legar
==========
Quando a farinha passou a rarear, meu pai recordou a receita do beiju de jatobá que Donana fazia. Havia vagens em abundância. Era uma árvore que resistia bem à falta d’água, frondosa, imponente, uma reserva de alimento de segunda linha, ignorada quando havia tudo o mais. Assim, comemos beiju de jatobá por meses
==========
A morte apeava nas casas dos nossos vizinhos e, mesmo com todo esforço de Zeca Chapéu Grande para restituir a saúde e o vigor às crianças doentes, muitas não resistiam. As velas que meu pai acendia para cada criança pareciam não querer permanecer acesas: mesmo sem ventos ou golpes de ar, se apagavam
==========
Havia sido parido pela terra. Achava engraçado vê-lo utilizar essa imagem para afirmar sua aptidão para a lavoura. Nunca havia pensado que tinha sido parida pela terra. A terra “paria” plantas e rochas. Paria nosso alimento e minhocas
==========
Naquela terra mesmo, entranhada da secura da falta de chuva, deixamos nossos suores para que lhe servisse de alívio. O silêncio da ausência dos pássaros, dos animais que migravam para onde havia água, foi rompido por nossos sussurros. Depois de tanto ouvirmos falar sobre as crianças mortas, a natureza, misteriosa e violenta, nos impelia para conceber a vida
==========
Diferente de Bibiana, que falava em ser professora, eu gostava mesmo era da roça, da cozinha, de fazer azeite e de despolpar o buriti. Não me atraía a matemática, muito menos as letras de dona Lourdes. Não me interessava por suas aulas em que contava a história do Brasil, em que falava da mistura entre índios, negros e brancos, de como éramos felizes, de como nosso país era abençoado. Não aprendi uma linha do Hino Nacional, não me serviria, porque eu mesma não posso cantar. Muitas crianças também não aprenderam, pude perceber, estavam com a cabeça na comida ou na diversão que estavam perdendo na beira do rio, para ouvir aquelas histórias fantasiosas e enfadonhas sobre os heróis bandeirantes depois os militares, as heranças dos portugueses e outros assuntos que não nos diziam muita coisa
==========
Com Zeca Chapéu Grande me embrenhava pela mata nos caminhos de ida e de volta, e aprendia sobre as ervas e raízes. Aprendia sobre as nuvens, quando haveria ou não chuva, sobre as mudanças secretas que o céu e a terra viviam. Aprendia que tudo estava em movimento — bem diferente das coisas sem vida que a professora mostrava em suas aulas
==========
Atento ao movimento dos animais, dos insetos, das plantas, alumbrava meu horizonte quando me fazia sentir no corpo as lições que a natureza havia lhe dado
==========
Meu pai, quando encontrava um problema na roça, se deitava sobre a terra com o ouvido voltado para seu interior, para decidir o que usar, o que fazer, onde avançar, onde recuar. Como um médico à procura do coração
==========
Quanto mais criança via nascer, mais sentia como se meu corpo vibrasse, em movimento, pedindo para parir, como a terra úmida parece pedir para ser semeada; e se não fosse semeada, a natureza faz ela mesma seu cultivo, dando a capoeira, o maracujá-da-caatinga e folhas de toda sorte para curar os males do corpo e do espírito
==========
Todas nós, mulheres do campo, éramos um tanto maltratadas pelo sol e pela seca. Pelo trabalho árduo, pelas necessidades que passávamos, pelas crianças que paríamos muito cedo, umas atrás das outras, que murchavam nossos peitos e alargavam nossas ancas. Em pé, olhando Maria sentada na cadeira, vi seus seios pequenos, subindo
==========
Mas eu já me sentia diferente, não tinha medo de homem, era neta de Donana e filha de Salu, que fizeram homens dobrar a língua para se dirigirem a elas.
==========
Antes que qualquer homem resolvesse me bater, lhe arrancaria as mãos ou cabeça, que não duvidassem de minha zanga
==========
Trabalhar a terra tinha desses sentimentos bons de amansar o peito, de serenar os pensamentos ruins que me cercavam
==========
Era um arado torto, deformado, que penetrava a terra de tal forma a deixá-la infértil, destruída, dilacerada
==========
Se esvaía toda a coragem de que tentei me investir para viver naquela terra hostil de sol perene e chuva eventual, de maus-tratos, onde gente morria sem assistência, onde vivíamos como gado, trabalhando sem ter nada em troca, nem mesmo o descanso, e as únicas coisas a que tínhamos direito era morar lá até quando os senhores quisessem e a cova que nos esperava fosse cavada na Viração, caso não deixássemos Água Negra
==========
Queria ouvir de Severo as explicações para o que vivíamos em Água Negra. Eram histórias que se comunicavam com meus rancores, com a voz deformada que me afligia e por vezes me despedaçava, com todo o sofrimento que nos unia nos lugares mais distantes. Que juntos, talvez, pudéssemos romper com o destino que nos haviam designado
==========
O sofrer vinha das coisas que nem sempre davam certo, me fazia sentir viva e unida, de alguma forma, a todos os trabalhadores que padeciam dos mesmos desfavorecimentos
==========
Via como um encanto uma casa nascer da própria terra, do mesmo barro em que, se lançássemos sementes, veríamos brotar o alimento. Quantas vezes havia visto aquele ritual de construir e desmanchar casas, e ainda me maravilhava ao ver se levantar as paredes que seriam nosso abrigo
==========
Afinal, nossos pais e esse povo de Maria Cabocla, e tantos outros, chegaram de lugares diferentes e distantes, mas, passado tanto tempo, viviam como uma parentela de filhos de pegação, de compadre, comadre, vizinho, marido e mulher, cunhados, primos e inimigos. Muitos haviam casado entre si e eram parentes de verdade, nos laços e no sangue. Os que não, eram de consideração. Então, o coração mandava dividir o que tínhamos, e por isso sobrevivíamos às piores dificuldades
==========
Tão logo chegou à região, viu que a sanha pela pedra havia transformado a terra num horizonte de lutas e de bandos armados guiados por coronéis que enriqueciam às custas do sangue e da loucura dos que se entregavam à sorte do garimpo
==========
Que chegou um branco colonizador e recebeu a dádiva do reino. Chegou outro homem branco com nome e sobrenome e foram dividindo tudo entre eles. Os índios foram sendo afastados, mortos, ou obrigados a trabalhar para esses donos da terra. Depois chegaram os negros, de muito longe, para trabalhar no lugar dos índios. Nosso povo, que não sabia o caminho de volta para sua terra, foi ficando. Quando as fazendas foram deixando de produzir porque os donos já estavam velhos e os filhos já não se interessavam pelo trabalho de roça, porque ganhavam muito mais dinheiro como doutores na cidade, e nos procuravam cercando terras pelas extremidades da fazenda, dizíamos que éramos índios. Porque sabíamos que, mesmo que não fosse respeitada, havia lei que proibia tirar terra de índio. E também porque eles se misturaram conosco, indo e voltando de seu canto, perdidos de suas aldeias
==========
O que sabemos é que essa notícia trouxe mais escravos, trabalhadores livres, consulado de país estrangeiro para o interior e companhia de mineradores, tudo para retirar o diamante das serras. Sabe-se também que muito sangue foi derramado, muitos homens sucumbiram ao chamamento, à loucura e ao feitiço da pedra. Muitos endoideceram na sanha de encontrar o brilho. Muitos pereceram encantados e outros tantos foram mortos. Esta terra viveu em guerra de coronéis por muitos e muitos anos. Para trabalhar no garimpo vieram muitos homens escravos das vizinhanças da capital, dos engenhos que já não tinham mais a importância de antes, e das minas de ouro das Gerais
==========
Era o medo de quem foi arrancado do seu chão. Medo de não resistir à travessia por mar e terra. Medo dos castigos, dos trabalhos, do sol escaldante, dos espíritos daquela gente. Medo de andar, medo de desagradar, medo de existir. Medo de que não gostassem de você, do que fazia, que não gostassem do seu cheiro, do seu cabelo, de sua cor. Que não gostassem de seus filhos, das cantigas, da nossa irmandade. Aonde quer que fôssemos, encontrávamos um parente, nunca estávamos sós. Quando não éramos parentes, nos fazíamos parentes. Foi a nossa valência poder se adaptar, poder construir essa irmandade, mesmo sendo alvos da vigilância dos que queriam nos enfraquecer. Por isso espalhavam o medo
==========
Todo esse ambiente hostil, onde faltava água, mas sobrava violência, foi se tornando a paisagem dos primeiros anos de sua vida como homem
==========
"Que os caboclos e os guias o acompanhem”, as palavras roçaram a boca de Donana. “Que o acompanhem Sete-Serra, Iansã, Mineiro, Marinheiro, Nadador, Cosme e Damião, Mãe d’Água, Tupinambá, TombaMorro, Oxóssi, Pombo Roxo, Nanã.”
==========
Um dia, meu irmão Zezé perguntou ao nosso pai o que era viver de morada. Por que não éramos também donos daquela terra, se lá havíamos nascido e trabalhado desde sempre. Por que a família Peixoto, que não morava na fazenda, era dita dona. Por que não fazíamos daquela terra nossa, já que dela vivíamos, plantávamos as sementes, colhíamos o pão. Se dali retirávamos nosso sustento
==========
Mas para gente como a gente a terra só tem valor se tem trabalho. Sem ele a terra é nada
==========
Os donos já não podiam ter mais escravos, por causa da lei, mas precisavam deles. Então, foi assim que passaram a chamar os escravos de trabalhadores e moradores. Não poderiam arriscar, fingindo que nada mudou, porque os homens da lei poderiam criar caso. Passaram a lembrar para seus trabalhadores como eram bons, porque davam abrigo aos pretos sem casa, que andavam de terra em terra procurando onde morar. Como eram bons, porque não havia mais chicote para castigar o povo. Como eram bons, por permitirem que plantassem seu próprio arroz e feijão, o quiabo e a abóbora. A batata-doce do café da manhã. “Mas vocês precisam pagar esse pedaço de chão onde plantam seu sustento, o prato que comem, porque saco vazio não fica em pé. Então, vocês trabalham nas minhas roças e, com o tempo que sobrar, cuidam do que é de vocês. Ah, mas não pode construir casa de tijolo, nem colocar telha de cerâmica. Vocês são trabalhadores, não podem ter casa igual a dono. Podem ir embora quando quiserem, mas pensem bem, está difícil morada em outro canto.
==========
Mas o diamante não nos trouxe sorte nem bambúrrio. O diamante trouxe a ilusão, porque, quando instalaram as dragas, os rios foram se enchendo da areia que jorrava das grutas. Os rios foram ficando sujos e rasos. Sem abastança de água para pescar já não tinham porque pedir nada a Santa
==========
Alguém lembrou que ainda poderia haver justiça. Que por mais doloroso que fosse o desaparecimento de um líder, a solução para os problemas permanecia no horizonte, a ser perseguida em sua homenagem
==========
Nessa jornada percebeu que a vida além da Água Negra não era muito diferente no que se referia à exploração. Mas havia Severo, e os sonhos, e tudo que construíam juntos. Havia dificuldades e desentendimentos, mas havia, antes de qualquer coisa, afetos que ela mesma não poderia definir. Afetos que envolviam suas histórias e todas as coisas que apreendiam, sobre si e sobre sua gente
==========
canto dos pássaros parecia ser o mesmo de toda uma vida. Parecia ser o mesmo de um passado tão perto e tão longe
==========
A mesma escravidão de antes fantasiada de liberdade
==========
Foi embora um fruto, mas a árvore ficou. E suas raízes são muito fundas para tentarem arrancar
==========
Pretos não eram bemvistos, tinham que deixar a terra. Então dizia que era índia. Os outros diziam que eram índios. Índio não deixava a terra. Índio era tolerado, ninguém gostava, mas as leis protegiam, era o que pensavam. Os outros torciam o bico, porque viam que eram pretos. Mas
==========
Desço lavando o sangue que derramaram sem piedade. O sangue do passado corre feito um rio. Corre nos sonhos, primeiro. Depois chega galopando, como se andasse a cavalo
==========
se os negros vieram para o Brasil para ser escravos, Lagoa Funda deve ter começado com o povo que fugiu de alguma fazenda ou ganhou liberdade de algum fazendeiro
==========
Assim como apanhei cada um com minhas mãos, eu pari esta terra. Deixa ver se a senhora entendeu: esta terra mora em mim”, bateu com força em seu peito, “brotou em mim e enraizou.” “Aqui”, bateu novamente no peito, “é a morada da terra. Mora aqui em meu peito porque dela se fez minha vida, com meu povo todinho. No meu peito mora Água Negra, não no documento da fazenda da senhora e de seu marido. Vocês podem até me arrancar dela como uma erva ruim, mas nunca irão arrancar a terra de mim
==========
Queria ensinar para que se desenvolvessem sozinhas no mundo, para que ajudassem aos que precisassem, e, mais ainda, para que procurassem pela liberdade que lhes foi negada desde os ancestrais. De fazenda em fazenda, de Caxangá a Água Negra, havia vivido uma vida cativa. Queria vê-las livres, senhoras do próprio destino
==========
Você atravessa a casa como uma assombração e por vezes não escuta quando lhe falam. Passa a madrugada acordada revirando na cama ao lado da filha Ana, trazida para preencher o vazio que o quarto tinha se tornado. Observa o sono da criança, os movimentos das pálpebras, talvez esteja sonhando, até que a mente a leva de novo para a ausência. Quando desiste de tentar dormir, abre a porta para sentir o sereno e a deixa aberta, ainda que a sombra do que lhe ocorreu persista a cada movimento da noite. Recorda a violência ao olhar para a motocicleta que está no terreiro de casa, ou a cada carro que atravessa a estrada da fazenda, porque pode carregar o perigo. O pensamento, embotado pelo desaparecimento abrupto, resiste em apagar aquelas horas de sua vida. Uma nuvem recobre o sol e a sombra que se projeta na casa é como um vulto atravessando os cômodos. O som de buzina de qualquer motocicleta, que pode atravessar a estrada, comprime como uma mão a sua garganta. Aquele aperto que você seria incapaz de
==========
Todos os lugares por onde ele se movimentava estão carregados de uma eletricidade que só você pode sentir. O cheiro das roupas intocadas no armário, o travesseiro que agora é o mesmo em que você se deita, impregnado do perfume de seu corpo. Quando consegue dormir, acorda com a sensação de que despertou de um longo sonho e hesita em estender a mão para o lado da cama onde ele deveria estar. Suas lembranças são sabotadas pelo cheiro, pelo silvo sutil da respiração que julga ouvir, pelo calor que parece emanar ao seu lado, mas sempre que o sono termina de forma abrupta, os olhos se arregalam e se entristecem só ao constatar que você continua privada de sua presença. É quando as lágrimas vêm, incontroláveis
==========
Os muitos “ses” surgem a todo momento e a enredam em lianas invisíveis das quais não se livra facilmente
==========
Para ter qualquer coisa precisava de dinheiro, qualquer coisa. Na terra tinha o que colher ao alcance das mãos
==========
cidade não havia terra para revirar, para sentir a ventura, a umidade avisando que a chuva estava por chegar
==========
Então sentiu que desde sempre o som do mundo havia sido a sua voz
==========
Cada mulher sabe a força da natureza que abriga na torrente que flui de sua vida
==========
[Sobre a terra há de viver sempre o mais forte