spoiler visualizarSaulo.Fragoso 26/05/2024
O que você não tem mais que te entristece tanto?
A natureza da mordida (Carla Madeira) causou-me tanto impacto e estimulou-me a tantas (auto)reflexões ? daquelas que determinam incontáveis interrupções da leitura para absorção e recomposição ?, que, penso, qualquer resenha estaria aquém. Simples assim.
Por dever moral e de consciência ? grato, sobretudo, pela oportunidade de vivenciar experiência tão profunda, visceral, rica e íntima proporcionada pela autora ao longo dessas páginas ?, creio pertinentes e oportunas algumas considerações.
Compartilho, assim, algumas impressões pessoais.
Arrisco-me, porém, à insuficiência, ciente de que não há o que seja dito ou escrito que equivalha ou substitua a leitura em si, tampouco as reflexões ? tantas e tamanhas ? subjacentes ao enredo. Subjacentes, aliás, entre muitas aspas?
A literatura nacional contemporânea é, em quantidade e qualidade, pródiga. As autoras mulheres ? sobretudo elas ? estão galgando, já tardiamente (infelizmente), merecidíssimo espaço. Nesse rol, Carla Madeira ocupa especial posição, num âmbito puramente pessoal de dileção, entre minhas escritoras favoritas (ao lado de nomes como Aline Bei e Giovana Madalosso).
De Carla Madeira, já havia lido Tudo é rio e Véspera, nessa sequência. Faltava-me, então, degustar apenas A natureza da mordida, que me foi regalado, há pouco tempo, como presente de aniversário.
Eis, então, as minhas considerações, antecedidas por uma breve síntese do enredo.
A narrativa é deflagrada a partir do seguinte ponto de partida: duas personagens ? Biá, uma psicanalista aposentada, e Olívia, uma jornalista ?, por circunstâncias meramente casuais, quase fortuitas, da vida, se encontram num sebo a céu aberto (que também funciona como banca de jornal e revista), num domingo, à beira de uma movimentada avenida de Belo Horizonte.
Biá, assídua frequentadora daquele sebo/banca, de propriedade de Rodolfo, comparece ao local, rigorosa e religiosamente, aos domingos. Então, ali pratica o seu tradicional ritual dominical: folheia alguns livros e, após selecionar algum, ao seu gosto e predileção, senta-se, invariavelmente, à mesma mesa, compenetrando-se em sua dedicada e demorada leitura.
Em determinado domingo, porém, Biá é surpreendida ? para o seu incômodo e a contragosto ? com a presença de uma jovem mulher sentada à sua mesa dileta. Aproximando-se para, educadamente, solicitar assento ? esperançosa de que aquela mulher não apenas cederá o espaço, como também se retirará ?, Biá percebe, ao se achegar, que aquela pessoa ? posteriormente identificada como Olívia ? está completamente absorta enquanto escreve um manuscrito. E aos prantos.
Sensibilizada com a situação, e lançando mão de suas cativantes habilidades de interação ? que fisgam Olívia a partir de um vocabulário rico e poeticamente estruturado com diversas figuras de linguagem e com tom altamente lírico ?, Biá aborda Olívia e com ela inicia uma despretensiosa conversa.
A partir desse improvável primeiro diálogo (esfaceladas pelas respectivas histórias pessoais, nenhuma delas está, até então, muito predisposta a conversar), ambas estabelecem laços de terna amizade a partir de uma origem comum que orbita o passado de ambas: o abandono (experimentado, por parte de cada uma delas, à sua maneira, à sua particularidade e a partir de suas respectivas histórias pessoais/de vida).
Nessa esfera do impreenchível, fruto do abandono, ambas afeiçoam-se. Afinal, ?se há algum proveito em nossas pequenas tragédias é o de nos repertoriar com um cardápio de empatias? (páginas 180/181).
Ambas compartilham, então, entre si, as respectivas tragédias pessoais (até então, insondáveis) a partir de encontros sistemáticos aos domingos naquele aprazível sebo belo-horizontino.
Partindo de uma profunda e contundente reflexão, sequencialmente repetida ao longo das primeiras páginas (?O que você não tem mais que te entristece tanto??), e que serve à autoanálise do próprio leitor, a narrativa ? centrada no tema do abandono ? é deflagrada, desenvolvendo-se numa atmosfera magnética que mantém o suspense e que mescla, com maestria, diálogos, fluxos de pensamentos e, inclusive, uma ficcional minibiografia de Olívia.
As personagens irmanam-se numa sólida relação de amizade, respeito e solidariedade. À medida que a narrativa progride, a história toma contornos sólidos ? com o paulatino detalhamento da vida pessoal e do passado das personagens ?, até alcançar rumos imprevisíveis, inesperados e surpreendentes.
Pode-se antecipar, sem comprometer a leitura com spoilers, que Olívia experimenta, no seu íntimo, a amargura pela ruptura de uma relação pessoal com Rita, causa, inclusive, de seu pranto (testemunhado por Biá no sebo). Outros detalhes, omitirei. Basta, para os propósitos dessa resenha, registrar isso. As causas, deixo à investigação do leitor.
Biá, da mesma forma, enfrenta profunda amargura ? já mais longínqua e antiga ?, decorrente da partida do seu marido, Teodoro, que lhe abandonou (e, também, à filha do casal, Teresa).
A narrativa parece seguir, até determinado ponto, uma linha amena e leve. Ao início, o enredo é basicamente construído, apenas, com as descrições dos encontros e dos diálogos entre Biá e Olívia aos domingos e, ainda, com os fluxos de consciência/pensamento de Biá, em capítulos que contêm suas ?anotações? pessoais (justamente por isso, intitulados de ?Anotações de Biá?).
O colorido da narrativa transmuda, porém, drasticamente, assumindo tons dramáticos a partir do momento em que Olívia, em razão de circunstâncias inesperadas e repentinas, resolve confidenciar a Biá, integralmente e numa sequência longa e ininterrupta, a sua história de vida (de Olívia) até o ponto em que ambas se conheceram à mesa do sebo.
O final desse relato rememorou-me a reflexão, que sempre revisito intimamente, sobre a importância da restauração e da reconciliação ? quando, é claro, a ruptura não é/foi causada por um mal irremediável ?, sob pena de nos arriscarmos a tornar, porque tarde demais, imodificáveis algumas ausências ou pendências não resolvidas. Esse é, aliás, o pilar e a premissa da obra ?A morte é um dia que vale a pena viver? (Ana Claudia Quintana Arantes), cuja leitura, sem antever data, ainda pretendo realizar.
Sequenciando em seu tom impetuoso e dramático ? e adotando, nesse ponto, traços até mesmo sombrios ?, a obra, ao seu avanço, descortina, paulatinamente e por camadas, os mistérios que sondam também o abandono experimentado por Biá.
Por que, num dia aparentemente normal, Teodoro simplesmente desapareceu? Biá sabe o motivo? Se sim, por que o esconde de sua filha Teresa, prologando nela angústia e dor provocadas pelo silêncio, esse núcleo impreenchível de sofrimento e aflição?
A natureza da mordida proporciona uma viagem literária intensa, profunda e imersiva, ao longo de um enredo desenvolvido em tom poético e lírico, marca registrada da autora.