Ivan 16/12/2021
Distopia!
O Conto da Aia é um romance distópico escrito em 1985 por Margaret Atwood. Ele se passa num futuro muito próximo e tem como cenário uma sociedade anulada por uma revolução teocrática e totalitária. Aos poucos as liberdades foram sendo minadas até se transformar no quadro que encontramos nas páginas do livro. É uma ditadura, onde as leis são baseadas no antigo testamento, todos os indivíduos vivem sob repressão e perderam direitos fundamentais. Os cidadãos considerados criminosos são fuzilados e pendurados mortos no Muro, em praça pública, para servir de exemplo enquanto seus corpos apodrecem à vista de todos. As mulheres são vítimas de opressão, tornando-se propriedade do governo.
O nome deste lugar é Gilead, mas já foi Estados Unidos da América. Os governantes excluem as mulheres da vida em sociedade e elas são divididas em castas, cada qual com uma função muito específica no Estado: as Esposas (incumbidas de gerenciar a casa, cuidar dos filhos e do marido: vestem azul), as econoesposas (esposas de homens pobres, que precisam fazer todos os papéis: vestem listrado com todas as cores), as Marthas (servem como criadas e cozinheiras: vestem verde), as Aias (são as "reprodutoras": vestem vermelho), as Tias (senhoras que educam as mulheres para submissão) e até mesmo as "não-mulheres", condenadas a trabalhos forçados nas colônias, lugares onde o nível de radiação é mortífero. Sem direito a opinarem, se expressarem ou mesmo serem alfabetizadas, as mulheres estão no nível mais baixo da sociedade.
A história é narrada em primeira pessoa pela Offred, através de sua perspectiva pessoal. Coube a ela a categoria de Aia, o que significa existir unicamente para procriar, depois que uma catástrofe nuclear tornou estéril um grande número de pessoas. Ela mora na casa de um Comandante do regime, sendo vigiada dia e noite. As aias vão morando de casa em casa, permanecendo nelas até conceber um filho ao casal, sendo depois reenviadas a outro "lar necessitado". Offred foi treinada para não questionar o sistema, para achar seu corpo impróprio e estranho, para frear seus pensamentos e desejos e, principalmente, para viver com o propósito exclusivo de procriar. Apesar deste seu comportamento aparentemente conformado, ela não esqueceu o que é ser uma mulher livre.
Toda a ambientação e as informações fornecidas são passadas ao leitor de forma lenta, picotada e um pouco desconexa, sob o olhar bastante restrito da Offred. Ela vai nos contando sua rotina na casa do Comandante. Entre lembranças do seu passado com seu marido e filha e sua realidade no presente, cheia de horrores, ela vai tecendo sua narrativa. É uma personagem muito marcante e, através de suas memórias, descobrimos um pouco sobre quem ela foi antes do golpe, sobre os Estados Unidos e a crise que levou à ascensão de um governo militarizado e autoritário, e passamos a enxergar Gilead da mesma forma como ela.
A leitura é desafiadora, pesada, vagarosa e um tanto "indigesta", pois o livro apresenta muitas questões impactantes e proporciona diversas sensações, emoções e repulsa. Um livro que precisa ser lido com atenção, pois mescla coisas do presente junto com as memórias do passado e dos treinamentos para se tornar uma Aia, o que pode deixar a trama um pouco confusa em alguns momentos. Mas aos poucos nos acostumamos com a forma de escrever da autora e com os pensamentos da personagem, e a leitura flui tranquilamente. Mas é agonizante acompanhar a jornada da protagonista e entender os absurdos dessa nova sociedade, através dos seus pensamentos irônicos e sinceros, e suas lembranças da alegria por trás da simplicidade da vida de antes.
Seguindo a tradição do gênero distópico o livro busca criar um cenário impactante ao leitor, apresentando uma perspectiva de futuro assombrosa. Mas o objetivo da ficção cientifica não é retratar a realidade do mundo, mas sim nos alertar dos perigos de nossas próprias intolerâncias e preconceitos. O propósito da obra é propor uma reflexão profunda do que nos levaria até tal ponto como sociedade e possibilitar que tomemos um outro rumo. Ao apresentar uma realidade onde o patriarcado e o radicalismo triunfam em pleno ocidente, Atwood nos direciona para o extremo oposto – nos deixando receosos e desejosos pela liberdade.
O Conto da Aia é um livro repleto de significados: quanto ao novo nome da protagonista, a posição social das pessoas que convivem com ela, as roupas usadas pelas aias, do sistema e de suas imposições religiosas, e da rotina social detalhada ao longo das páginas. De fato, tudo por trás dessa história dá abertura para inúmeras reflexões e aprendizados. Cheio de detalhes, sentimentos e diálogos que causam uma dor e tristeza ao imaginar o mundo naquela situação, recomendo a leitura a todos aqueles que gostam de uma boa distopia, bem fundamentada e, que gostam de se emocionar com personagens ricas em descrição, cenários e diálogos muito bem construídos. As discussões propostas por Atwood alertam sobre os caminhos tortuosos que a humanidade pode tomar frente ao poder. O mais importante é a mensagem de que precisamos dar valor ao simples fato de poder ir e vir, de comprar uma roupa que desejamos ou comer algo que temos vontade. Coisas simples, mas que nos ajudam a lembrar de que somos livres. Sua mensagem poderosa deve ser absorvida e refletida, para que possamos cada vez mais nos distanciar da sociedades como a de Gilead.