Dhiego Morais 16/01/2018Lovecraft: medo clássico?Escrevo isso sob uma pressão mental considerável, já que, à noite, não mais existirei?.
Poderia dizer que esta mesma obra me foi entregue pelo mesmo carteiro responsável pelas cartas de casa e que não havia pressentimento quanto à escuridão fervilhante de terrores cósmicos escondidos entre as páginas. Seria loucura demais? Receio que a curiosidade e a leitura cautelosa não tenha me afastado de presenciar os pavores ciclópicos e inomináveis à mente humana, nem muito menos da sensação pesadelar de algo terrivelmente ancestral. Há uma sombra à espreita. Eu sei disso. Vocês devem saber disso também. Apresso-me para terminar de lhes escrever, pois antes que os tentáculos da loucura me abracem, precisarão se decidir entre fugir eternamente ou atender ao Chamado e adentrar as Montanhas da Loucura.
A primeira frase dessa resenha não é minha, evidentemente, pois pertence ao conto Dagon, presente neste primeiro volume de uma antologia desenvolvida primorosamente pela editora Darkside. No entanto, ela, a frase, é a razão de eu ter, definitivamente, me apaixonado pela genialidade da mente insana e criativa de H. P. Lovecraft. Embora eu nunca tivesse me aventurado pelos textos do autor antes, me surpreende a rapidez com que me convenci de estar curtindo a antologia.
Neste primeiro volume da coleção Medo Clássico, de Lovecraft, temos a reunião de nove contos muito interessantes: Dagon, A Cidade Sem Nome, Herbert West: Reanimator, O Depoimento de Randolph Carter, O Cão de Caça, O Chamado de Cthulhu, Nas Montanhas da Loucura, A Sombra Vinda do Tempo e A História do Necronomicon.
?Morto não está o que pode eternamente jazer, e com éons estranhos até a morte pode morrer?.
Considerado um mestre do horror cósmico, Lovecraft entrega aos seus leitores uma escrita consideravelmente mais rebuscada e recheada de adjetivações que não apenas encorpam mais os seus textos, mas também os tornam mais complicados de imergir completamente na trama sem se perder pelos caminhos obscuros de suas personagens. Justamente por isso, talvez alguns leitores considerem a sua narrativa um tanto quanto exaustiva, porém, não menos recompensadora. À medida que se acostuma com a maneira de escrever e de contar suas histórias, Lovecraft leva cada um de seus expectadores a um show fantástico de reflexão quanto à natureza humana e a sua relevância para o universo, enquanto resgata a realidade de sua época, construindo um cenário de loucura e horror tão elevados que ainda décadas após sua morte, inspira gerações.
Lovecraft, como grande admirador de Edgar Allan Poe, enxerga nos mistérios do universo a sua razão para escrever histórias carregadas de um terror que frequentemente leva suas personagens à loucura. Conhecimentos cósmicos que deveriam permanecer longe das mentes humanas; ciência alienígena; dominação e escravidão; a criação da vida, viagens no tempo e no espaço; cidades ocultas, submersas e enterradas há éons; artefatos ancestrais impregnados pelo mal; loucura e um horror inominável, cósmico; são temas recorrentes, habilidosamente escritos por Lovecraft, que também se utilizava dos conhecimentos científicos de astronomia e biologia que efervesciam na sua época, recurso este que enriquecia seus contos.
A respeito dos contos, citarei os três que mais me impressionaram durante a leitura:
? O Chamado de Cthulhu: esta nada mais é do que a história mais famosa de H. P. Lovecraft, responsável por elevar o seu nome e também a criatura a que dá nome o título a uma das principais figuras do horror. Aqui, os leitores conhecerão a história de um narrador que recebera a herança de seu tio-avô, um professor emérito da Universidade Brown. Com a herança, ele recebe também diversos objetos e papéis que reúnem anotações das pesquisas de seu tio no mínimo estranhas. Desconfiado e curioso, ele deverá seguir os últimos passos do professor, atravessando eventos incomuns que vão de rituais ancestrais ao conhecimento de algo inominável. Trata-se de um conto excelente e que dá mais informações sobre a mitologia cósmica do autor.
?Era o pesadelo encarnado; e contemplá-lo significava a morte. Mas ele fazia com que os homens sonhassem, e assim eles sabiam o suficiente para se manter afastados?.
? Nas Montanhas da Loucura: mais uma das histórias mais famosas de Lovecraft, adaptada em diversas mídias, configurou como o meu conto favorito dessa edição. Embora a escrita do autor requeira mais atenção do que o usual, a leitura dessa obra me despertou sentimentos mesclados de angústia e medo. Aqui, a trama gira em torno de relatos sobre uma expedição científica ao deserto gelado da Antártida, onde cordilheiras imensas são descobertas. Lá, após vencer ventos violentos, parte da expedição encontra vestígios de uma cidade abandonada e, na base das montanhas brancas, fósseis congelados de uma estranha e inédita espécie milenar. Os relatos que seguem são continuamente tensos e valem absurdamente a leitura.
? A Sombra Vinda do Tempo: mais um conto memorável de Lovecraft, que reúne ficção científica ao horror cósmico. Ainda que seja um pouco mais complexo, a leitura é recompensadora. Nesta história, o protagonista, também professor universitário, sofre uma amnésia que se estende por alguns anos. Quando ele começa a recuperar suas faculdades mentais, passa a sofrer sonhos assustadores que lhe sugerem ter a ver com parte do seu passado. A curiosidade e algumas descobertas vindouras o encorajam a procurar respostas no deserto australiano, terras abrasadoras que transformarão tudo o que antes ele conhecia como tempo e espaço. É um conto que aparentemente parece irracional, mas que a medida que se avançam as páginas, atribuem toda a carga de tensão que explode em um dos melhores finais de Lovecraft. É algo que reverbera na mente, mesmo após a leitura.
Além dos contos acima, devo citar também Cão de Caça, Herbert West: Reanimator e Dagon, textos que me impressionaram, seja pela habilidade do autor de escrever parágrafos iniciais fantásticos, seja pela história original ou ainda pelos finais emblemáticos. A edição da Darkside conta ainda com uma belíssima introdução de Ramon Mapa e mais alguns extras, inclusos rascunhos originais de Lovecraft.
?Incessantemente, ressoam em meus ouvidos torturados um guinchar e um farfalhar oriundos de algum pesadelo, e um ladrar débil e distante como o de um gigantesco cão de caça?.
A maneira que Lovecraft conduz o seu texto, quase sempre como um depoimento, um relato, uma confissão ou um alerta; em primeira pessoa, isento de falas, apenas uma narrativa extensa, porém sedutora, impressiona. Ainda que a vida do autor tenha sido polêmica, não há como negar que a sua escrita tem estilo próprio.
Já escuto o som agudo, praticamente inominável se elevando atrás da porta. A tinta rascunha e a caneta grava sulcos no alerta deste papel. A sombra vem do tempo; o chamado, das profundezas do oceano e o som ancestral, das fendas de basalto negro enterradas nas areias. Leia por sua conta e risco e esteja pronto para abraçar a loucura. Ph?nglui mglw?nafh Cthulhu R?lyeh wgah?nagl fhtagn.