Ana Luiza 17/08/2014
Perturbador, cruel e estranhamente divertido
Victoria McQueen era apenas uma criança quando descobriu que, ao montar em sua bicicleta e atravessar uma ponte no bosque perto de sua casa, ela era capaz de encontrar qualquer coisa que estivesse perdida, em qualquer lugar. Vic sempre manteve sua habilidade em segredo, afinal, sua própria mente distorcia a verdade e para ela as aventuras do outro lado da ponte eram apenas sonhos e ela encontrava as coisas por acaso ou em lugares óbvios e de fácil acesso.
“Era sempre assim. Ela já tinha atravessado a ponte uma dezena de vezes em cinco anos, cada vez menos uma experiência e mais uma sensação. Não era algo que ela fazia, mas que sentia: a consciência de estar deslizando como em um sonho, a distante sensação de um zumbido de estática.” Pág. 82
Entretanto, mais velha, Vic atravessa sua ponte em busca de alguém que entenda o que ela pode fazer e, assim, ela acaba conhecendo Maggie Leigh, uma bibliotecária gaga que consegue fazer suas próprias mágicas. Através de Palavras Cruzadas Maggie consegue a resposta para qualquer pergunta que faça, entretanto, de vez enquanto as palavras simplesmente falam e elas avisaram sobre Vic e Charles Manx.
Charles Talent Manx também tem uma habilidade. Na verdade, ele tem um carro, um Rolls-Royce antigo, o Espectro, com o qual ele leva criancinhas para a Terra do Natal, um lugar dentro da sua mente onde sempre é véspera do feriado e há apenas felicidade, presentes e chocolate quente. Com ajuda de Bing Partridge, um homem louco e fiel, Manx “salva” criancinhas de seus horrendos pais, que nunca mais veem seus filhos.
“O menino observava os fundos da casa. Ela agora sabia que ele estava morto, ou pior ainda do que morto. Que ele era uma das crianças do homem chamado Charlie Manx.” Pág. 148
As Palavras Cruzadas avisam a Maggie sobre Manx, e ela faz Vic prometer jamais procurá-lo. A garota assim promete e, na volta para casa, acaba perdendo sua bicicleta e ficando muito doente. Depois disso, a garota ou mesmo sua família jamais serão os mesmos. Seu pai sai de casa e sua mãe se transforma em uma mulher ainda mais dura e amargurada. Já Vic torna-se distraída, rebelde e infeliz.
“Quando alguém dizia que podia afastar as coisas ruins, uma criança acreditava. Vic queria acreditar nele, mas não conseguia” Pág. 166
Já adolescente, depois de uma brigar com a mãe, Vic encontra sua antiga bicicleta e a raiva dos pais a fazem procurar por problema. E a ponte do Atalho sempre leva a garota até aquilo que ela está procurando. Vic encontra a casa de Manx e sua vítima mais recente. Mas, o garoto que Manx sequestrara já não é mais um garoto e sim qualquer outra coisa perversa na qual o Espectro o tenham transformado. E mesmo que saia desse encontro viva, pode ser que Vic não saia sã. Anos se passam até que o Espectro esteja de volta às estradas, mas, dessa vez seu objetivo não será tão fácil de alcançar. A jornada de Manx e Vic não estará terminada até que um dos dois esteja morto e ambos estão dispostos a ir até o fim dessa história.
“Em algum nível, tinha passado a considerar aquela situação quase natural. Mais cedo ou mais tarde, um carro preto ia buscar todo mundo. Aparecia e arrancava a pessoa dos seus entes queridos para nunca mais voltar.” Pág. 219
Peguei Nosferatu sem ao menos passar o olho na sinopse do livro. Desde que li Estrada da Noite a alguns anos, sou apaixonada com Joe Hill e desde O Pacto (resenha aqui) que venho esperando, ansiosamente, pelo lançamento de mais obras dele aqui no Brasil. Portanto, quando soube que Nosferatu finalmente havia chegado em nossas terras, solicitei o livro e, assim que ele chegou, comecei a lê-lo.
Por ser de Joe Hill, tinha enormes expectativas para Nosferatu, cujo início pouco me conquistou. Logo nas primeiras páginas o autor joga a estranha habilidade de Vic sobre o leitor e simplesmente espera que ele lide com isso. Nas primeiras “viagens” da garota através da ponte do Atalho a única reação que tive foi de perguntar-me se Hill tinha ficado louco. Somando isso aos vislumbres da Terra do Natal que tivemos ao lado de Manx e Bing, toda a trama me pareceu muito sem noção e eu simplesmente não conseguia ver aonde aquilo tudo ia levar. Confesso que nas cem, cento e trinta, primeiras páginas fiquei bastante decepcionada por não ter encontrado o tipo de história de Joe Hill que eu esperava e considerei seriamente abandonar a leitura. Felizmente, não desisti e acabei por encontrar nas páginas seguintes o melhor livro de Hill e, pelo menos até agora, a melhor obra de horror que já tive o prazer de conhecer. O livro me surpreendeu profundamente, entrou para a lista de favoritos dos favoritos e apenas reforçou o amor que tenho pelo autor.
Nosferatu é uma genuína obra de horror, com seus personagens questionáveis, cenários sombrios e muito mais que deixam o leitor realmente horrorizado. Acredito que essa é, talvez, uma das grandes diferenças do terror e do horror. Enquanto o primeiro quer provocar o medo, o segundo quer provocar a repulsa, quer chocar o leitor. O que mais me agrada nas obras de horror são sua qualidade duvidosa. Em um diversos momentos a sensação que temos é de estar apenas lendo/vendo ficção barata, que usa de todo e qualquer recurso para alcançar seu único objetivo: escandalizar, provocar apatia e estranhamento. E, contanto que o objetivo seja alcançado, tudo vale. As obras de horror não se preocupam em ser plausíveis ou ter tramas e personagens muito refinados e é aí que reside a magia do gênero.
Como um genuíno livro de horror, Nosferatu, como já comentei, simplesmente joga sua história na cara do leitor e não faz o mínimo de esforço em convencê-lo de que aquilo poderia ser real. No início, esse caráter despretensioso me incomodou, mas, após a leitura do livro, ele apenas me fez gostar ainda mais da obra. A sensação de estranhamento percorre Nosferatu do início ao fim e todas as situações improváveis, personagens e cenários excêntricos tornam esse livro uma verdadeira obra-prima.
Hill reconstrói, de forma quase imperceptível e a sua maneira, o clássico Drácula (resenha aqui). Entretanto, apesar de serem bem parecidas, as duas obras também são, ao mesmo tempo, completamente diferentes. Nosferatu tem a sua personalidade, uma maneira própria e única de construir um suspense bem elaborado que praticamente obriga o leitor a devorar o livro – o que não é tarefa para qualquer um. Um dos poucos, se não talvez o único, ponto negativo da sua obra é sua extensão. É quase impossível não desanimar ao começar a leitura de um livro de mais de 600 páginas, tanto que demorei exatas duas semanas para terminar Nosferatu. A leitura do livro é fluída, mas seu volume é mesmo muito extenso, o que acaba por deixar a obra exaustiva. Mas não se enganem, a exaustação após o término de Nosferatu é uma sensação boa, de dever cumprido e de prazer por ter “perdido” tanto tempo em um só livro.
Apesar de ter achado o livro muito extenso, acredito que qualquer palavra retirada do texto seria uma perda. A obra está perfeita como está. O desenvolvimento da trama foi muito surpreendente e não houve um único momento em que parei e disse: “Ah, eu já sabia que isso iria acontecer”. Hill mantêm a tensão viva do início ao fim e mesmo que já esteja cansado e com os braços doendo de segurar o livro, é impossível não ficar louco para saber o que vem a seguir. O final é de tirar o fôlego e eu não conseguia acreditar que o livro tinha acabado. Além das tramas surpreendentes e sinistras, dos personagens detestáveis e apáticos, o que mais gosto no autor é sua escrita. A narrativa em terceira pessoa de Hill é objetiva, mas descritiva na medida certa, e também carregada de muita ironia e humor negro. O autor passa longe de eufemismos, fala o que tem que ser dito de forma curta e direta, algo que adoro.
Os personagens são os típicos heróis ao contrário, todas as suas características peculiares e detestáveis são o que nos fazem amá-los! Até mesmo os personagens mais bonzinhos, como o Lou, tem lá no fundo desejos egoístas e um lado egocêntrico. Hill consegue criar personagens como ninguém, todos muito reais e com algo que os destaque, além de papel na trama. Vic foi, sem sombra de dúvida, minha favorita. Seu lado determinado e forte é inspirador. A garota sem muita feminilidade, com sede de aventura e perigo me conquistou bastante. Mas, como acontece com os melhores personagens, meus sentimentos por ela oscilaram bastante. Ora odiei a personagem por sua teimosia e talento em arruinar tudo, mas amei-a por sua coragem e lealdade com aqueles que amava. O mesmo aconteceu com Manx. O nosso sequestrador de criancinhas é um típico vilão de filmes antigos: um velho insano de aparência assustadora e sede em fazer o mal. Entretanto, o mais incrível de Manx é que sua loucura é tanta que ele acredita no que fala e consegue, nem que por alguns poucos segundos, convencer também o leitor. Em determinados momentos o discurso de Manx é tão persuasivo que realmente me perguntei se a Terra do Natal não era mesmo um lugar feliz e se Manx realmente não estava salvando crianças e as levando para um lugar melhor. Em termos de loucura, Bing é talvez o que mais maluco e doente deles. O ajudante de Manx é tão profundamente insano que chega a ser um dos personagens mais assustadores que já vi e um dos que mais gosto!
“E era a isso que tudo se resumia, no final das contas: pegar algo terrível e transformá-lo em algo bom. O Sr. Manx salvava as crianças e Bing salvava as mamãezinhas. Agora, porém, as mamãezinhas haviam acabado.” Pág. 189
Nosferatu é uma genuína obra de horror, um livro perturbador, cruel e estranhamente divertido, recheado de violência, insanidade e muitas surpresas. Para os que, como eu, são apaixonados pelo gênero, apesar de longa, essa é uma leitura deliciosa e que recomendo muito. Amei Nosferatu e até agora estou com gostinho de quero mais.
Só há elogios quanto a edição. A tradução estava perfeita e a diagramação divina, o livro é recheado de algumas ilustrações bem legais (abaixo). O tamanho e tipo da fonte estava bom e as páginas amareladas ajudaram a leitura a fluir um pouco mais rápido. Eu simplesmente adoro essa capa aparentemente simples, mas muito bonita e que combina perfeitamente com a trama. Também gostei da adaptação do título. O original NOS4A2, faz um pouco mais de sentido, já que essa é a placa do carro de Manx. Entretanto, como é explicado na trama, quando pronunciado em inglês, NOS4A2 tem o mesmo som da palavra Nosferatu, palavra de origem alemã (de acordo com o livro, para mim era de origem romena) que é sinônimo de vampiro.
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