Helder 12/04/2020Danos irreparáveisÀs vezes nos deparamos com livros que nos desafiam. Às vezes a linguagem é muito clássica. Às vezes o mundo criado é muito difícil de ser enxergado. Mas às vezes, o que o livro nos mostra nos machuca como uma faca, pois não queremos acreditar que aquilo seja possível . Infância Interrompida de Cathy Glass foi lançado no Brasil pela Editora Fundamento e se encaixa nesta terceira opção.
Infância Interrompida é um livro que pede que o leitor esteja preparado.
Preparado para ser ofendido, machucado e seguir em frente sem fazer julgamentos, pois o livro mostra que na bolha que vivemos, não temos a mínima noção de até onde vai a maldade humana.
O livro é narrado em primeira pessoa por Cathy Glass, pseudônimo encontrado pela autora para contar a estória de uma das meninas acolhidas por ela em sua casa.
Cathy Glass é separada e vive com seus dois filhos, Adrian de 17 anos e Paula de 13 e Lucy, uma menina de 15 anos que foi acolhida e seguiu com a família.
Ela é uma acolhedora.
O trabalho dos acolhedores consiste em cuidar das crianças enquanto os assistentes sociais procuram melhorar a família da mesma, ou conseguir outra família para elas.
É um trabalho de transição.
Há 20 anos Cathy acolhe crianças em sua casa, de bebês a adolescentes. E é a ela que é passada uma nova e difícil incumbência: Acolher a pequena Jodie, que está prestes a completar 8 anos.
Contando com sua experiência, Cathy rapidamente aceita receber a menina, pois acredita que será somente mais um trabalho.
Cathy confia muito em sua experiência e até hoje só teve casos de sucesso, cuidando temporariamente de crianças que sempre conseguiram se reintegrar à sociedade.
Acontece que Jódie é diferente da outras crianças que Cathy já recebeu. Em 4 meses, Cathy é a 6ª acolhedora a receber a menina problema.
E haja problema.
Com o tempo Cathy vai perceber que Jodie é diferente de todas as crianças que ela já recebeu em casa.
A menina não aceita não, só se comunica através de violência, está acima do peso,[defeca quando se sente contrariada, maltrata animais, tem pesadelos nas madrugadas, não consegue se socializar e o pior de tudo: É altamente sexualizada em seus 8 anos de vida.
A chegada desta menina aquela casa é infernal. Como Adrian e Lucy falam: “ela parece o Chucky. Não precisa de uma acolhedora, mas sim de um padre.”
Ao ler as descrições daqueles primeiros dias eu só pensava: Já teria desistido.
Mas Cathy tem uma alma diferenciada. Ela segue em frente e aos poucos Jodie passa a respeita-la. Mas não pense que isso aqui é ficção. A vida é real, e assim como está tudo bem, logo Jodie tem sua recaída. Mas mesmo com seus chiliques diários, aos poucos Jodie vai se abrindo com Cathy e contando o seu passado e ai é como se um buraco fosse se abrindo naquela casa e em nossa mente de leitor.
É difícil acreditar aonde chega a maldade humana e dói demais vermos o quanto aquela menina foi destruída, sim, pois esta é a única palavra que descreve aquela garota:
Ela foi destruída.
Cathy como acolhedora, é uma funcionária de um sistema publico de acolhimento social, e que logo percebemos, extremamente falho., mesmo em um país tão evoluído como a Inglaterra.
Jodie foi monitorada por anos por assistentes sociais, passou por 5 lares de acolhimento e ninguém conseguiu perceber o que estava acontecendo com aquela garota.
E ouvir aquilo da boca de uma garota de 8 anos é terrível.
Impossível não querer que exista pena de morte.
“Jodie é uma criança machucada. Ela foi vandalizada. Suas emoções e seus progressos mentais foram destruídos. Duvido que algum dia se recupere o suficiente para levar uma vida normal; ela jamais obterá da vida o prazer que deveria sentir. Jodie foi condenada a uma punição sem fim pelas mesmas pessoas que mais deveriam tê-la protegido. Para mim, esse é o pior crime imaginável.”
Para mim que tenho filhos pequenos foi uma leitura dolorida. Muitas vezes quis bater naqueles pais e até na assistente social, que para mim é tão incompetente que beira a psicopatia.
E que pena de Cathy, que luta para ajudar aquela garota e ainda busca conseguir justiça, mesmo tendo que vencer toda a burocracia do sistema social inglês.
E por fim, o livro me fez pensar que se aquilo acontece num país tão desenvolvido e correto como a Inglaterra, qual não será a nossa realidade aqui pelos trópicos?
No mínimo o livro serve de um sinal para que fiquemos atentos.
Muitas vezes achamos que não devemos nos meter na vida dos outros. Na realidade mostrada por Infância Interrompida, se muitos não tivessem pensado assim de maneira tão “prática e educada”, vidas teriam sido salvas.
O nome deste livro em inglês é “Damaged” , cuja tradução literal seria Danificado, e nos mostra que diferente de máquinas, seres humanos, principalmente crianças, não podem ser simplesmente “concertadas”.
Se você tem estomago forte, fica a dica.
Mas esteja preparado para chegar ao mais baixo do ser humano.
Se é que podemos dizer que o sofrimento impingido a Jodie foi algo humano.