Marc 22/03/2013
Talvez, com sorte, o nome de David Foster Wallace ainda seja lembrado por muito tempo. Esse é meu segundo livro dele e continuo interessado em ler o lendário “Infinite Jest”, que muitos afirmam ser um dos grandes livros dos últimos anos. Essa coletânea de ensaios pode servir para uma primeira aproximação tão bem quanto Breves Entrevistas... o que quer dizer que se o critério do editor ao selecionar os textos foi apresentar um autor mais digerível, então falhou completamente.
Confesso que não consigo enxergar um motivo maior para o culto a DFW que não seja justamente essa aura pop que se formou em torno dele, justamente com seu suicídio. Porque não é um autor que tenha feito concessões. Seu humor bizarro e autocríticas soam muitas vezes como um anúncio velado de um potencial suicida, o que olhando retrospectivamente, acaba sendo um pouco Jim Morrison. Quem sabe um dia vejamos o pessoal andar por aí com camisetas com suas fotos e frases escritas em itálico, como acontece com Morrison e tantos outros ícones pop. E sei que isso parece negar o primeiro parágrafo, afinal tenho profundo interesse e boa vontade com o autor, mas eu gostaria que os mesmos divulgadores e entusiastas de seus textos não fossem o mesmo tipo de gente que anda com essas camisetas, como se vestir a palavra nos fizesse imediatamente diferentes daqueles que queremos nos destacar... Mas essas são nossas pequenas contradições cotidianas.
Enfim, o que posso dizer é que DFW tinha grandes momentos, seguidos de outros não tão brilhantes assim. A meu ver, a despeito de toda a genialidade instantaneamente atribuída a sua figura graças, novamente, a “Infinite Jest”, era um escritor em formação. E não falo isso com despeito, sendo blasé; mas pode-se notar que muitas vezes lhe faltava algo, ele não sabia se distinguir de tantos outros que não passam de escritores comuns e que encontramos dúzias e mais dúzias, com temas e tendências as mais variadas possíveis. Desse modo é um livro irregular e que cansa rapidamente, precisando de uma certa força de vontade para prosseguir. Não é possível perceber a criatividade do autor ao trabalhar formas inovadoras, nem acrescentar novos pontos de vista a temas já conhecidos da literatura; aqui a veia jornalística do autor se mostrou bastante comportada em relação ao escritor que ele podia ser em certos momentos.
Mas há grandes momentos até mesmo no jornalista DFW. E, a bem da verdade, o livro não é apenas de relatos jornalísticos (engraçado como o jornalista aqui era sempre um turista, o que pode levar a uma discussão interessante se compararmos essa visão do jornalista isento com um Hunter Thompson, por exemplo). Aliás, as melhores partes do livro não são jornalismo. O que me leva a formular a “teoria” de que o autor tinha uma enorme dificuldade em escrever textos onde poderia visualizar o leitor (no caso a empresa que o contratara para escrever a reportagem) e se sentia mais à vontade quando podia simplesmente encarar o papel sem ter que corresponder a nenhuma expectativa. Tomo essa liberdade, fazendo justamente o tipo de observação que costumo censurar na interpretação de literatura: relacionar o texto à pessoa real do escritor, mas faço isso com a desculpa de que muitas vezes nesses relatos o próprio autor reconhece a dificuldade de corresponder às expectativas. Ainda mais porque corresponder a elas seria até um contrassenso a seu modo de pensar. Como parte de seu método de trabalhar o leitor, preferia que seus textos fossem quase sempre inconclusivos, o que faz com que permaneçam na cabeça do leitor que precisa finalizar sozinho o que o autor deixa em aberto. Mas não faz isso porque não sabia o que dizer, pelo contrário.
Gosto de pensar que essa “inconclusão” é uma resposta direta ao meio de vida que todos nós conhecemos (porque praticamos irrefletidamente, ou porque conhecemos alguém que pratica) e que consiste em ter certeza sobre todas as coisas e imaginar que dois segundos de pensamento sobre um tema qualquer nos autoriza a fazer com que os outros sejam obrigados a engolir goela abaixo nosso senso comum. Provavelmente DFW nem viu o quanto esse tipo de coisa tomou força com a ascensão do facebook e aquelas pessoas que perdem boa parte de seus dias (e da vida, um dia elas vão descobrir tarde demais) procurando frases sobre os mais diversos temas, que de modo geral nunca vão mais longe do que amor, amizade, “política”, religião, etc, e que ficam postando essas frases fazendo com que seus amigos sejam alertados e tenham que apreciar mais uma pérola de sabedoria... Pois bem, essa é uma versão mais moderna de senso comum, mas ainda é o mesmo senso comum de sempre, só mudou de roupa; e era contra essas certezas absolutas que DFW escrevia quase sempre. Parece que o modo que escolheu para contestar isso acabava gerando muitos mal-entendidos e serviu, infelizmente, para que muitas das pessoas que deveriam aproveitar o aviso e rever seu modo de ser acabassem transformando o autor numa versão de si mesmas... Mas tenho certeza que DFW tinha consciência desse risco e decidiu enfrentá-lo.
Se pensarmos de um modo um pouco mais abrangente, no entanto, era contra essa adolescência infinita que ele escrevia. O discurso sobre Kafka evidencia isso muito bem. A impossibilidade de fazer com que pessoas que só querem seguir na linha do prazer e da falta de responsabilidade, enxergarem a sutileza de um autor que deveria ser essencial. Uma sociedade cada vez mais anestesiada pelo conceito de entretenimento, que odeia assuntos sérios, que procura sempre o riso fácil que lhe mais um segundo de amnésia da vida. Não à toa, quando vai falar sobre um cruzeiro tropical, se assusta com a quantidade de pessoas idosas e de meia idade, porque imaginava que a certa altura finalmente decidiriam crescer e se furtariam aos prazeres irreais e infantis mesmo que esse tipo de passeio pode proporcionar. Se espanta como todos se revigoram ao serem servidos por pessoas sem rosto, comerem a melhor comida possível e não ter que se preocupar com a limpeza (nem com o preparo, claro), não arrumar a cama nem fazer a faxina e tantos outros mimos (a palavra que usa é essa, intencionalmente, para ressaltar a qualidade infantilizante do passeio). E a sensação que tenho enquanto o leio é de que precisamos reinserir o pensamento na vida cotidiana, porque essa busca irrefletida pelo prazer sem preocupações só está nos tornando mais idiotas. Alguém, algum dia disse que pensar era chato, que o melhor é ser espontâneo e deixar as coisas acontecerem, mas essa pessoa só estava procurando uma desculpa para fugir da vida, porque estava apavorada com ela. Como esse mesmo texto menciona, isso não significa que a alegria foi excluída, mas que a própria vida tem mais significado do que esse riso programado, administrado.
E o último texto relevante nesse sentido é “Isto é água”. O qual vale pouco lembrar porque todo mundo que já conhece DFW também conhece este texto, mas devo mencionar que se conecta diretamente ao que foi dito acima. Porque se cada um de nós pode escolher viver no “automático”, sendo alimentado pelo senso comum, há pouca esperança de que as coisas possam melhorar (chama a atenção o temor com que insiste em se desvencilhar de um ensinamento moral durante o discurso, mas é isso no fim das contas, porque está em jogo a convivência entre pessoas, afinal), e todos os dias podem ser terríveis e sufocantes, sem que saibamos notar porque isso está acontecendo. Já o texto sobre tênis não é tão irritante quanto julguei que seria quando vi aquele jargão todo despejado na primeira página. Vale lembrar que mesmo em algo sem aparente conexão com seu modo de pensar a vida podemos achar alguma coisa: torna a experiência de assistir Roger Federer compreensível para quem não admira esse esporte, ou seja, não é um texto egoísta, feito para celebrar apenas as pessoas do clube de admiradores.