Ficando longe do fato de já estar meio que longe de tudo

Ficando longe do fato de já estar meio que longe de tudo David Foster Wallace




Resenhas - Ficando Longe do Fato de Já Estar Meio Que Longe de Tudo


37 encontrados | exibindo 16 a 31
1 | 2 | 3


Paulo Sousa 25/03/2019

FLDFDJEMQLDT, de David Foster Wallace
Título lido: Ficando longe do fato de já estar meio que longe de tudo - Ensaios
Título original: Getting Away from Already Pretty Much Being Being Away from It All
Autor: David Foster Wallace (EUA)
Tradução: Daniel Galera e Daniel Pelizzari
Editora: Companhia das Letras
Anos de lançamento: 1993, 1996, 1999, 2004, 2005, 2006
Ano desta edição: 2012
Páginas: 312
Classificação: 3.5/5
__________________________________________
"O barato existencial, portanto, é conquistar alguma espécie de fuga do confinamento e dos estímulos -- silêncios, paisagens rústicas que não se mexem, um voltar-se para dentro: ficar longe" (Posição no Kindle 799/15%).
.
Incauto como sou, faz um bom par de meses desde que me afoguei na prosa caudalosa de "Graça Infinita", o vigoroso e sinestésico romance do escritor David Foster Wallace. Na ocasião, estava num tão grande êxtase em ler aquele gigantesco livro que sequer me preparei convenientemente para tamanha empreitada: vencer as quase 1.200 páginas em fonte pequena mais as inúmeras notas de rodapé que compõe o volume. Saí literalmente nocauteado na página 80 em busca de textos mais acessíveis para um leitor desastrado como eu sou...
.
Apesar de postergada a façanha de vencer Graça Infinita, ainda assim sempre quis ler algo do DFW (explicando, não é que Graça Infinita seja ruim, muito pelo contrário, a história, apesar de intrincada, é muito boa, todas aquelas termologias sensitivas e detalhadas em prol do combate à dispensável e insessante busca pelo entretenimento tem o seu valor, sem falar no frisson de poder sair ileso de tamanho calhamaço...).
.
Logo, busquei algo mais maleável dele, mais apropriado para leitores errantes como o eu, e acabei por topar com a coletânea de ensaios de DFW, o excelente "Ficando longe do fato de já estar meio que longe de tudo", livro que considero muito bom para iniciar-se na prosa do escritor.
.
O livro reúne seis ensaios de Foster, publicados entre 1993 e 2006 em revistas e jornais, e que são impressões bem interessantes do escritor sobre variados temas, onde pude perceber, buscam uma explicação pela gana ao exagerado anseio pelo entretenimento e a uma espécie de hedonismo. DFW, então exercendo a função de jornalista, descreve a própria experiência quando visitou uma feira agrícola no meio-oeste americano, dessas onde animais, máquinas agrícolas, exposições e simpósios são reunidos em vários dias de evento; em outro momento, num longo ensaio, faz um interessantíssimo relato de tudo que viu e viveu durante um cruzeiro de luxo pelo Caribe, onde o autor vai nos inserindo ao dia-a-dia da embarcação; já num terceiro texto, faz uma análise bem acurada sobre a polêmica envolta ao ato de escaldar lagostas para consumo, sobre como a ciência busca entender que o animal marítimo reage aos efeitos da água escaldante. Temas tão diversos, mas muito bem escritos!
.
Alguns desses ensaios, embora tragam muitas expressões e frases que me fizeram rir, compreendem, na verdade, temas complexos e sérios, disfarçados pelo mar de detalhismos que o escritor adota em seus textos. Para DFW, não há muito sentido em passar dias assistindo a mostras de animais, a embriagar-se com gordurosos sanduíches e se esgueirando por brinquedos de parques de diversões que causam verdadeiro pavor a Wallace, a participar nas reiteradas rodas de diversão num navio, na bestialidade que há no deleite de milhares de americanos que pagam caro para ter toalhas limpas a todo momento e comida desregrada. Sem falar em sua análise crítica no, ao seu ver, ato vil de jogar lagostas vivas num caldeirão de água fervente, Foster faz muito mais que trazer dados e estatísticas, quando traz à tona temáticas que, com o costume, deixaram de ser importantes.
.
Logo, em cada ensaio, é possível perceber as nuances do escritor, prematuramente morto aos 46 anos, mas que para quem os detalhes eram de extrema importância num mundo onde é tão comum perdermos a capacidade de se admirar com as coisas mais singelas. Vemos um DFW pitoresco, analítico, versado em tênis e Kafka, um ativista preocupado com a incolumidade das lagostas marinhas, fadadas a serem engolfadas por panelas com água quente. FLDFDJEMQLDT é daqueles livros incomuns na forma como foram escritos, mas que certamente conseguem levar o leitor às voltas com a singularidade dos pequenos prazeres. Vale!
comentários(0)comente



Marcelo Caniato 29/12/2018

Se esse cara escrevesse uma bula de remédio, eu tenho certeza que a bula sairia interessante. A capacidade de percepção do autor pra levantar reflexões sobre todo tipo de assunto a partir de situações banais é incrível. Você está lá, lendo ele descrever uma feira agropecuária, falando dos porcos e dos cavalos, e de repente ele levanta uma questão sobre a relação do ser humano com os animais. Dali a pouco ele está descrevendo as atrações da feira, o parque de diversões, as aglomerações e começa a refletir sobre como é viver longe dos grandes centros urbanos. Em um outro ensaio, ele detalha minuciosamente as atividades de um cruzeiro de luxo e aproveita para discutir a relação do ser humano com a morte. E tudo isso feito com um senso de humor muito apurado.

São 6 ensaios no total, todos muito bons. Os 2 primeiros (os mais longos) são os que eu citei acima. Há um ensaio sobre a graça contida (e não comumente percebida) em Kafka e o "Pense na lagosta", em que ele conta sobre a experiência de participar do Festival da Lagosta do Maine, e começa a questionar a ética de se cozinhar lagostas vivas só para satisfazer nosso paladar. Depois vem o discurso de paraninfo "Isto é água", já conhecido de muita gente por ter viralizado na internet há alguns anos, em que ele fala da busca da verdadeira liberdade, que seria o viver com a consciência das diversas possibilidades de interpretação do mundo ao nosso redor, sair do modo automático, "poder decidir conscientemente o que tem significado e o que não tem". Por fim, tem um ensaio sobre o tenista Roger Federer, ressaltando a beleza do seu jogo, que pra quem é fã de tênis como eu é uma delícia de ler.

Cada um dos textos vale muito. Mas, se tiver que escolher apenas um, leia o "Isto é água". Já vale pelo livro inteiro.
comentários(0)comente



Oz 15/05/2017

Uma conversa com seu nunca conhecido e velho amigo David F. Wallace
Antes de tudo, esqueça qualquer preconceito sobre ler ensaios. O que você terá ao ler esse livro é a experiência de escutar alguns depoimentos extremamente sinceros e cativantes de um amigo que você conhece há tempos, tamanha é a fluidez do texto de Wallace.

Sobre o livro, trata-se de uma coletânea de 6 ensaios. O primeiro é a experiência de DFW ao ir em uma feira agropecuária no interior dos EUA. Logo de cara, temos um relato honesto e bem engraçado sobre o que esse peculiar cidadão vivenciou na feira. Desde se empanturrar de doces ao se passar por um repórter de uma revista de culinária até comentar sobre seu medo de experiências quase-morte em brinquedos de parques de diversão. O segundo ensaio relata uma viagem de Wallace em um cruzeiro de luxo pelo caribe e suas descrições e comentários sobre as pessoas do cruzeiro, as coisas com que se espantava (como o funcionamento da privada de seu banheiro!), até os eventos mais atípicos, como a derrota que sofreu no xadrez para uma menina infeliz de 9 anos.

Esses dois primeiros ensaios são no mínimo geniais, engraçados e, como disse no início da resenha, cativantes. A minha expectativa ao ler o terceiro ensaio, que versa sobre a comédia nos textos de Kafka, era um pouco mais baixa, pois talvez se tratasse de um texto mais acadêmico. E pimba, eu estava errado. Esse é um texto bem mais curto, mas tão bom quanto os outros, com uma levantamento de questões sobre diversão e entretenimento que ele abordaria depois em Graça Infinita.

O quarto ensaio relata uma visita que DFW fez a uma feira de Lagostas no Maine. O centro do artigo é levantar o questionamento sobre o quão moral é esquentar e matar uma lagosta para se alimentar dela. Mas não se iluda achando que se trata de um texto enfadonho e meramente filosófico. Novamente, temos um ensaio no qual Wallace parece conversar com a gente, mesmo abordando um tema mais denso.

O quinto texto é um belo discurso de paraninfo de Wallace. Por fim, o último ensaio nos traz toda a paixão de Wallace por tênis (tema também central em Graça Infinita), particularmente por Roger Federer. Embora esse ensaio seja um pouco mais específico que os demais, ainda assim eu acredito que mesmo um leigo em tênis vá gostar de ler.

No geral, o que se pode dizer sobre essa coletânea é que ela mostra a genialidade de um escritor que consegue abordar uma miríade de temas e assuntos de uma forma suave, cativante, sincera e com seu humor peculiar. É como conversar com um velho amigo. Leia esse livro.

site: www.26letrasresenhas.wordpress.com
comentários(0)comente



Our Brave New Blog 02/05/2017

RESENHA FICANDO LONGE DO FATO DE JÁ ESTAR MEIO QUE LONGE DE TUDO - OUR BRAVE NEW BLOG
Daniel Galera, tradutor da obra junto com Daniel Pellizzari, fez o prefácio do livro de hoje. E, lendo, eu percebi que ele me botou numa pindaíba. O homem fez praticamente uma resenha de cada texto no começo do livro. Isso me deixou pensando sobre a validade de uma resenha minha, já que, primeiro: Galera é o tradutor da obra e conhecedor profundo do trabalho de Foster Wallace; segundo: a resenha dos textinhos está ótima; terceiro: Galera escreve muito melhor que eu. Então eu tive que adaptar as coisas, que surpreendentemente fez a resenha ficar ainda maior do que o normal, e talvez seja o jeito que eu siga fazendo daqui para a frente.

A obra em questão foi apresentada pelos tradutores como a forma de adentrar o mundo literário de um dos últimos grandes autores do mundo, David Foster Wallace. O critério foi pegar os textos mais fáceis de sua não ficção, sem perder o charme característico do estilo Wallaciano, e dar chance ao povo que ficou intimidado com o primeiro livro dele lançado aqui, “Breves entrevistas com homens hediondos”, ou para quem está interessado em comprar “Graça Infinita” mas quer ter um gostinho antes para ver se realmente vale dar 100 reais naquele calhamaço (lindo), ou até mesmo para você, pacato cidadão, que nunca nem ouviu falar de Foster Wallace e agora está aí na sua cadeira doido para saber o que tem nesse livro.

Vou separar a obra em três categorias: a primeira parte será referente às experiências antropológicas, compostas pelos textos “Ficando longe do fato de já estar meio que longe de tudo”, “Uma coisa supostamente divertida que eu nunca mais vou fazer” (também chamado de “Texto do navio”), e “Pense na lagosta”. A segunda parte serão os discursos, composta por “Alguns comentários sobre a graça de Kafka dos quais não se omitiu o bastante” e “Isto é água”. A terceira parte fecha com a crônica esportiva “Federer como experiência religiosa”.

Os textos antropológicos são o que estão mais ligados ao lado jornalístico do livro em si, e revelam o charme do autor nessa coletânea de não ficção: o fato de Wallace não ser jornalista. O sentimento é que ele não está te enganando (além do fato dele descer a lenha naquilo que acha errado) e sim se sentindo muito mais livre para escrever o texto da forma mais heterodoxa possível. “Ficando longe...” abre o livro e conta sobre a semana em que Wallace foi a uma feira em Illinois. Aqui surgem várias reflexões e a estrutura em diário, com data e hora, traz muitos detalhes ao texto. a estrutura em diário (com data e hora) fez o trabalho detalhadamente botando muita reflexão dentro do texto.

Wallace já havia morado em Illinois, mas nunca tinha ido à tal feira. Seu sarcasmo já ataca analisando os detalhes na primeira ida, como, por exemplo, quando vê que a grama do espaço não é natural e diz: “Sólido jornalismo investigativo de cócoras revela se tratar na verdade de grama sintética”. Antes disso, as descrições sobre o trajeto de carro trazem reflexões importantes sobre o sentimento que o lugar passa para Foster, que vai ser cada vez mais importante para entender os interioranos ao longo do texto.

Não satisfeito com esse forte contraste entre os gostos e características interioranos com os dele, um rapaz da costa leste (leia-se Nova York), Wallace ainda traz uma garota para andar com ele pela feira, chamada apenas de Acompanhante Nativa, que também tem gostos interioranos e mostra de forma mais íntima a diferença entre Wallace e essa esfera. O nosso intrépido escritor passa por todas as atrações, falando de brinquedos de quase-morte, comidas extremamente gordurosas a ponto de dar nojo, eventos patrocinados por grandes empresas (o Mc Donalds aparece em todo o lugar), uma bizarra competição de boxe entre garotos de 10 anos, reflexões engraçadíssimas sobre todos os tipos de frequentadores (com uma posição claramente pedante), e o conflito individual de estar levando a julgamento pessoas que, mesmo morando perto, tem costumes extremamente diferentes.

O próximo texto é uma versão com esteróides do primeiro “estudo antropológico” de Wallace. O “Texto do navio” já começa nervoso com um resumo da loucura que foi o passeio de cruzeiro luxuoso. Aqui ele segue o mesmo esquema de antes: vai lá, fica uns dias de bobeira e depois conta para gente como foi. Se Foster já pega pesado com uma feirinha de Illinois, no texto do navio parece que o seu objetivo é demolir a vontade de qualquer um de fazer um cruzeiro algum dia.

RESENHA COMPLETA NO BLOG: http://ourbravenewblog.weebly.com/home/resenha-ficando-longe-do-fato-de-estar-meio-que-longe-de-tudo-david-foster-wallace


site: http://ourbravenewblog.weebly.com/home/resenha-ficando-longe-do-fato-de-estar-meio-que-longe-de-tudo-david-foster-wallace
comentários(0)comente



Felipe Novaes 23/01/2017

David Foster Wallace consegue tornar informativo até a chatice de um artigo sobre tênis (com direito a descrições de jogadas e da indumentária dos jogadores).

Um dos méritos do último capítulo em particular, sobre esse tema, é que ele fala de maneira muito fluida sobre o que diabos faz um jogador afinal ser bom em remexer o corpo como se estivesse dançando tchatchatchá ao mesmo tempo em que golpeia bolas que chegam ao outro lado da quadra em menos de um segundo.

Tem algo a ver com uma habilidade cinestésica incomum, tanto fruto de alguma propensão já que se revela no início da vida quanto de treinamento intenso.

E isso me lembra meus tempos de futebol quase diários no colégio.

É engraçado descrever o que ocorre com jogadores que dependem de altos graus de reflexo. Eu era goleiro, jogava futsal, então reflexo era como a vassoura de um jogador de quadribol. Sem isso não dá nem pra entrar em quadra.

Do lado de fora as pessoas só vêem um goleiro defendendo o gol de bolas bem colocadas e chutes fortes, mas elas não sabem exatamente como isso se dá para a própria pessoa envolvida.

Um goleiro não vê a bola vindo super rápido e então pensa em se mover pro lado certo de maneira tão rápida quanto a bola. Da perspectiva de primeira pessoa é mais ou menos como se a bola parecesse ser mais lenta do que pareceria para os observadores.

Você não pensa, seu corpo simplesmente começa a se ajustar. Se houvesse tempo suficiente você apenas perceberia que seu corpo está fazendo algo sozinho que você não tem ideia do que é. Mas aí você começa a perceber que na verdade tudo isso é o início do movimento que vai te levar até a bola vindo a toda velocidade.

É um exemplo visceral e quase cotidiano de que a nossa racionalidade não importa muito nos momentos realmente rápidos da vida. Você simplesmente faz o que está treinado para fazer, mesmo que nunca tenha percebido que o modo como você conduz sua vida cotidiana, sua atitude mental em relação às coisas que acontecem ou como você leva os esportes, são sim um treinamento -- embora possa não envolver clubes, muito dinheiro e empresários.

E isso me leva diretamente ao conteúdo da maioria dos outros artigos de Wallace, principalmente o sobre água.

Wallace tem uma habilidade impressionante para mostrar percepções que talvez todos tenham, mas que estão tão debaixo dos nossos olhos que às vezes fica difícil ver:

(i) Vivemos num sistema engraçado ao ponto de cultivarmos hábitos degenerativos -- como o entretenimento que nos leva à desatenção permanente, entretenimento e humor como fuga do que realmente interessa --, mas esses hábitos são o combustível para o consumo, que sustenta o conforto superficial (mais entretenimento) e profundo (mais conforto, mais saúde etc).

É como uma máquina que produz jardins às custas de muita sujeira -- sujeira não criada naturalmente, mas em parte produzida justamente pra alimentar esse Uroboros, até que você não tem mais condições de saber como parar a máquina, de saber o que veio primeiro.

(ii) Estamos usando o humor para ficarmos mais burros e distraídos. É como ratos alimentados experimentalmente com cocaína, para correrem cada vez mais na rodinha da gaiola e esquecer do fato de que estão ali presos numa gaiola.

(iv) Cultivamos hábitos mentais (falando num sentido amplo aqui). Desconstruir esses hábitos é tão difícil quanto ser obeso e se engajar numa dieta. Mas é necessário. MUITO.

(v) LEIAM ESSE LIVRO
comentários(0)comente



Coruja 02/04/2016

Fui atrás desse livro por indicação de um leitor do blog, que me fez a propaganda comparando-o ao Terry Pratchett. Não tinha como eu resistir a uma analogia como essa, não é verdade? Fora que o título estava sob medida para meu tema de abril no Desafio Corujesco.

Comecei a lê-lo de noite, num dia em que estourou o gerador do meu prédio e ficamos sem energia por quase o dia todo. Só não o terminei no ato porque, para meu azar, tinha esquecido de carregar a bateria do tablet e de repente, não mais que de repente tudo se desligou e eu fiquei no escuro.

A energia voltou pouco antes das onze, deixei tudo que tinha de carregar carregando e fui dormir. No dia seguinte, acordei antes das seis porque precisava continuar a ler esse livro.

Ficando Longe do Fato de Já Estar Meio que Longe de Tudo apresenta uma série de ensaios do David Wallace com temas dos mais variados - de viagens que ele cobriu como jornalista, a partidas de tênis, há um pouco de tudo. Alguns são extraordinariamente bem humorados, mesmo quando o autor se encontra em grandes apuros, outros chegam a ser poéticos em suas reflexões.

Foi muito fácil me identificar com o autor e me colocar nas situações pelas quais ele passa - Wallace não hesita em tirar sarro de si mesmo quando a ocasião é propícia, e tampouco se esquiva de temas espinhos ou de análise crítica. Talvez exatamente por isso eu tenha sentido tão compulsivamente a necessidade de continuar lendo a despeito das dificuldades que foram ocorrendo por causa da falta de energia: esse não é um livro que você possa deixar inacabado.

Eu agradeço muito a recomendação que recebi para buscar esse título. Agora, o que posso fazer é passar a febre adiante. Leiam também e venham depois me dizer o que acharam, ok?

site: http://owlsroof.blogspot.com.br/2016/04/desafio-corujesco-2016-um-livro-com.html
comentários(0)comente



Raony 21/07/2015

Não sei se foi o Daniel Galera no prefácio, ou sei lá quem em alguma resenha, mas seja quem for que tenha dito que parece que os editores de revistas norte-americanas se divertiam mandando o David Foster Wallace com um bloco de notas por aí estava correto em sua impressão, quer dizer, não que eu tenha comprovado que eles se divertiam, mas diversão é a palavra. E se eu fosse pagar um cruzeiro de luxo para alguém, com o intuito de obter um texto, com certeza seria para esse autor (embora, convenhamos, esse seja um modo bem caro de obter um texto). Enfim, meus preferidos, na ordem:

1) “Uma coisa supostamente divertida que eu nunca mais vou fazer”: o famoso "texto do navio". Realmente hilário e tirando as piras com o banheiro e com tubarões eu realmente me vi lá. Essa sensação de ser intensamente paparicado me deu calafrios de longe.

2)“Federer como experiência religiosa”. Não manjo de tênis, nunca assisti um jogo do Federer, mas que texto, que texto.

3) "Pense na lagosta". Sempre penso na lagosta, e nas vacas, frangos e etc, mas no fim como mesmo assim (digo, nunca comi lagosta, mas comeria)

4) “Ficando longe do fato de já estar meio que longe de tudo”. O melhor ponto do texto é quando o título faz sentido. Uma reflexão bem interessante mesmo, tem várias outras partes dignas de nota, mas intercaladas com descrições nem tanto. Um pouco mais irregular que os de cima esse, mais ainda muito bom.

5) Prefácio. Não que o Galera tenha roubado espaço do autor, pelo contrário, a forma com que ele apresenta é um Prefácio com P maiúsculo, discreto, instigante e com direito a "spoiler alert"

6) “Alguns comentários sobre a graça de Kafka dos quais provavelmente não se omitiu o bastante”. Bom discurso, curto, leve e educativo, digamos assim.

7) "Isto é água". Se eu fosse formando logicamente iria adorar ouvir esse discurso, mas no livro achei deslocado, além do que tem cópia a rodo na internet. Legal, mas desnecessário.
comentários(0)comente



Mari 14/05/2015

Há dois peixes jovens nadando ao longo de um rio, e eles por acaso encontram um peixe mais velho nadando na direção oposta, que pisca para eles e diz, “Bom dia, rapazes, como está a água?”. E os dois peixes jovens continuam nadando por um tempo, e então um deles olha pro outro e diz, “Que diabos é água?”.

Se você está preocupado pensando que eu estou planejando me apresentar aqui como o peixe velho e sábio explicando o que é água, por favor não fique. Eu não sou o peixe velho e sábio. O ponto imediato da história dos peixes é que as realidades mais óbvias, ubíquas e importantes são frequentemente as mais difíceis de se ver e discutir. Declarada como uma frase, é claro, isso é só um lugar-comum banal – mas o fato é que, nas trincheiras diárias da existência adulta, lugares-comuns banais podem ter importância de vida ou morte.


É claro que o principal requerimento de discursos de formatura como esse é que eu devo falar sobre o significado da sua educação de Ciências Humanas, tentar explicar por que o diploma que você acabou de receber tem algum valor humano real ao invés de apenas compensação material. Então vamos falar do maior clichê do gênero do discurso de formatura, que é que a educação de ciências humanas não tem o propósito de te encher de conhecimento, mas sim de ensiná-lo a pensar. Aqui vai outra historinha didática:

Tem dois caras sentados juntos num bar numa região remota do Alaska. Um dos caras é religioso, o outro é ateu, e os dois estão discutindo sobre a existência de Deus com a intensidade especial que vem depois da quarta cerveja. E o ateu diz: “Olha, não é como se eu não tivesse razões verdadeiras pra não acreditar em Deus. Não é como se eu nunca tivesse experimentado essa coisa toda de Deus e oração. Mês passado uma nevasca terrível me pegou longe do acampamento, eu tava completamente perdido, e não conseguia ver nada, e tava 25 graus negativos, então eu tentei: eu caí de joelhos na neve e gritei ‘Ó Deus, se existir um Deus, eu tô perdido nessa nevasca, e eu vou morrer se você não me ajudar.'” E agora, no bar, o cara religioso olha pro ateu confuso. “Bem, então você deve acreditar agora”, diz ele. “Afinal, aqui está você, vivo.” O ateu rola os olhos. “Não, cara, o que aconteceu é que dois esquimós por acaso apareceram por lá e me mostraram o caminho do acampamento.”

É fácil fazer uma análise literária dessa história: A mesma exata experiência pode significar duas coisas completamente diferentes para duas pessoas completamente diferentes, considerando os diferentes modelos de crença e as diferentes formas de construir significado de uma experiência. Porque nós valorizamos tolerância e diversidade de crença, não queremos na nossa análise literária afirmar que a interpretação de um cara é verdadeira e a interpretação do outro cara é falsa ou ruim. O que não tem problema, só que nós também acabamos nunca falando sobre de onde vêm esses modelos e crenças diferentes.

Quero dizer: de onde eles vêm dentro dos dois caras? É como se a orientação ao mundo mais básica de uma pessoa, e o significado de sua experiência, fossem de alguma forma simplesmente impressos nos genes, como altura ou tamanho do sapato – ou automaticamente absorvidos da cultura, como linguagem. Como se a forma em que construímos significado não fosse uma questão de escolha pessoal e intencional. Além disso, há toda a questão de arrogância. O cara não-religioso está completamente certo na sua rejeição da possibilidade de que os esquimós tiveram qualquer coisa a ver com sua oração e pedido de ajuda. Verdade, existem também muitas pessoas religiosas que parecem arrogantes e certas de suas próprias interpretações. Elas provavelmente são muito mais repulsivas do que os ateus, pelo menos para a maioria. Mas o problema do religioso dogmático é exatamente o mesmo do descrente da história: certeza cega, uma mente fechada que representa um aprisionamento tão completo que o prisioneiro nem sabe que está encarcerado.

O ponto aqui é que isso é uma parte do que me ensinar como pensar significa. Ser um pouco menos arrogante. Ter um pouco de consciência crítica sobre mim e minhas certezas. Porque uma grande porcentagem das coisas sobre as quais eu costumo automaticamente ter certeza é, na verdade, totalmente errada ou ilusória. Eu aprendi isso do jeito difícil, e eu aposto que vocês também vão.

Aqui vai um exemplo de algo completamente errado que eu costumo automaticamente ter certeza: tudo na minha experiência apóia minha crença profunda de que eu sou o centro absoluto do universo, a pessoa mais real, vívida e importante que existe. Nós raramente falamos sobre esse tipo de egocentrismo natural e básico, porque ele é tão socialmente repulsivo, mas é basicamente o mesmo para todos nós, no fundo. É a nossa configuração padrão, impressa nos nossos circuitos desde o nascimento. Pense nisso: você nunca teve uma experiência da qual você não foi o centro absoluto. O mundo como nós o vemos está bem na sua frente, ou atrás de você, ou à sua esquerda ou à sua direita, na sua TV, no seu monitor, ou o que for. Os pensamentos e sentimentos de outras pessoas precisam ser comunicados pra você de alguma forma, mas os seus próprios são tão imediatos, urgentes, reais… você entendeu.

Mas por favor, não se preocupe pensando que eu estou me preparando pra pregar pra você sobre compaixão ou desprendimento ou as supostas “virtudes”. Isso não é uma questão de virtude, é uma questão de eu escolher fazer o trabalho de alterar ou me livrar da minha configuração padrão natural, que é ser profundamente e literalmente egocêntrico, e ver e interpretar tudo pela lente do eu. Pessoas que conseguem ajustar sua configuração padrão natural dessa forma são geralmente descritas como “bem ajustadas”, o que eu lhe sugiro que não é um termo acidental.

Como vocês devem saber, é extremamente difícil se manter alerta e atento, ao invés de se hipnotizar pelo monólogo constante dentro da sua próprio cabeça (pode estar acontecendo agora). Vinte anos depois da minha gradução, eu cheguei à conclusão de que o clichê sobre a educação de Humanas sobre te ensinar como pensar é na verdade uma simplificação de uma idéia muito mais profunda e séria: aprender como pensar significa como exercer controle sobre como e o que você pensa. Significa estar ciente e consciente o suficiente para escolher no que você presta atenção e escolher como você constrói significado de uma experiência. Porque se você não exercitar esse tipo de escolha na vida adulta, você está lascado.

Pense no velho clichê sobre a mente ser “um ótimo servo mas um terrível mestre.” Esse, como vários outros clichês, tão bobo e broxante na superfície, na verdade expressa uma grande e terrível verdade. Não é mera coincidência que adultos que se suicidam com armas de fogo quase sempre atiram na cabeça. Eles atiram no terrível mestre. E a verdade é que a maioria desses suicídas estão mortos muito antes de puxarem o gatilho. E eu sugiro que esse é o verdadeiro valor da educação de Humanas: como evitar viver sua confortável e próspera vida adulta morto, inconsciente, um escravo da sua cabeça e da sua configuração padrão natural de ser unicamente, completamente, imperialmente sozinho, dia após dia. Isso pode soar como hipérbole ou baboseira abstrata. Vamos deixar mais concreto.

O fato é que vocês jovens graduados não fazem idéia do que realmente significa “dia após dia”. Há por acaso partes enormes da vida adulta americana sobre as quais ninguém fala nesses discursos de formatura. Uma dessas partes envolve tédio, rotina e frustrações triviais. Seus pais vão saber muito bem do que eu estou falando.

Por exemplo, digamos que é um dia comum, e você acorda de manhã, e você vai pro seu trabalho exigente, e você trabalha duro por nove ou dez horas, e no fim do dia você está cansado e estressado, e tudo que você quer fazer é ir pra casa e jantar e talvez relaxar por algumas horas e então cair na cama cedo porque você tem que acordar no dia seguinte e fazer tudo de novo. Mas aí você lembra que não tem comida em casa – você não teve tempo de fazer compras essa semana, por causa do seu trabalho exigente – e então agora, depois do trabalho, você tem que entrar no seu carro e dirigir até o supermercado. É o fim do expediente, e o tráfego está horrível, então chegar no lugar demora muito mais do que deveria, e quando você finalmente chega lá, o supermercado está muito cheio, porque, é claro, é a hora do dia que todas as outras pessoas com emprego também tentam espremer um tempo pra fazer compras, e a iluminação da loja é fluorescente e medonha, e no som toca algum pop corporativo ou Muzak que destrói a alma, e é basicamente o último lugar que você quer estar. Mas você não pode entrar e sair rapidamente: você tem que vagar pelos corredores lotados dessa loja enorme e exageradamente iluminada para achar as coisas que você quer, e você tem que manobrar o seu carrinho de compras enferrujado por todas essas outras pessoas cansadas e apressadas que também empurram carrinhos, e é claro que também estão lá as pessoas idosas se movendo num ritmo glacial e as pessoas espaçosas e as crianças que bloqueiam os corredores e com as quais você tenta ser educado quando pede para elas deixarem você passar – e finalmente, você pega tudo que precisa pro jantar, só que agora não tem caixas abertos suficientes apesar de ser a correria do fim do dia, então a fila do caixa está incrivelmente longa, o que é estúpido e irritante, mas você não pode despejar sua fúria na moça agitada trabalhando no caixa, que está sobrecarregada num emprego cujo tédio diário e insignificância ultrapassam a imaginação de qualquer um de nós nessa faculdade prestigiada.

De qualquer forma, você finalmente chega na frente do caixa, e paga pela sua comida, e espera receber seu cartão autenticado pela máquina, e então desejam-lhe “um bom dia” numa voz que é a absoluta voz da morte, e então você tem que levar seus sacos de plástico frágil no seu carrinho através do estacionamento cheio, esburacado e sujo, e você tenta colocar os sacos no seu carro de forma que tudo não caia das sacolas e role pelo seu porta-malas no caminho para casa, e então você tem que dirigir para casa no tráfego lento de hora do rush, cheio de SUVs e picapes, etc, etc.

O ponto é que merda trivial e frustrante desse tipo é exatamente onde entra o trabalho de escolher. Porque os engarrafamentos e corredores lotados e longas filas do caixa me dão tempo para pensar, e se eu não tomar uma decisão consciente sobre como pensar e no que prestar atenção, eu vou ficar enfezado e miserável toda vez que eu for comprar comida, porque minha configuração padrão natural é a certeza de que situações como essa são na verdade só sobre mim, sobre minha fome e meu cansaço e meu desejo de chegar em casa, e vai parecer que todos os outros estão no meu caminho, e quem é esse povo, mesmo? E olha o quão repulsivo é boa parte deles, e como aqui na fila do caixa eles parecem estúpidos, olhos mortos, não-humanos, como vacas, ou o quão irritante e rude são as pessoas que estão falando alto no celular no meio da fila, e olha como isso é profundamente injusto: eu trabalhei duro o dia inteiro e estou faminto e cansado e não posso nem chegar em casa para comer e relaxar por causa de todo esse maldito povo idiota.

Ou, se eu estou na forma mais socialmente consciente da minha configuração padrão, eu posso passar o tempo no engarrafamento do fim do dia ficando irritado e enojado com todos esses SUVs e picapes e caminhonetes enormes, idiotas, que bloqueiam pistas, queimando e desperdiçando seus tanques egoístas de 40 galões de gasolina, e eu posso considerar o fato de que adesivos religiosos ou patrióticos costumam estar pregados nos veículos maiores e mais egoístas, dirigidos pelos motoristas mais feios, imprudentes e agressivos, que geralmente estão falando no celular enquanto cortam os outros pra avançar 10 metros idiotas num engarrafamento, e eu posso pensar sobre como os filhos dos nossos filhos vão nos desprezar por gastar todo o combustível do futuro e provavelmente estragar o clima, e quão mimados e estúpidos e nojentos nós somos, e como a sociedade consumista moderna é um saco, e assim por diante. Você entendeu.

Se eu escolher pensar assim na loja ou na rua, tudo bem, muitos de nós pensam – só que pensar dessa forma costuma ser fácil e automático e não precisa ser uma escolha. É a minha configuração padrão natural. É a forma automática de como eu vivo as partes chatas, frustrantes e lotadas da vida adulta quando eu estou operando na crença automática, inconsciente de que eu sou o centro do mundo, e que minhas necessidades imediatas e sentimentos são o que deve determinar as prioridades do mundo.

A questão é que, é claro, há formas completamente diferentes de se pensar sobre esses tipos de situações. Nesse trafego, todos esses veículos parados no meu caminho, não é impossível que algumas dessas pessoas nas caminhonetes já estiveram em acidentes de carro horríveis no passado e agora acham dirigir tão aterrorizante que seus terapeutas praticamente ordenaram que elas comprem uma caminhonete grande e pesada para que se sintam seguras o suficiente para dirigir novamente. Ou que a picape que acabou de me cortar talvez esteja sendo dirigida por um pai cujo filho esteja ferido ou doente no banco de passageiros, e ele está tentando levar essa criança pro hospital, e ele está numa pressa maior e mais legítima que a minha – ou seja, sou eu que estou no caminho dele. Ou eu posso me forçar a considerar a possibilidade de que todo mundo na fila do supermercado está tão entediado e frustrado quanto eu, e que algumas dessas pessoas tem uma vida mais difícil, tediosa e dolorosa que a minha.

Novamente, por favor não ache que eu estou dando conselho moral, ou que estou dizendo que você deve pensar dessa forma, ou que qualquer um espere que você automaticamente faça isso. Porque é difícil. Requer determinação e esforço, e se você é como eu, alguns dias você não vai conseguir fazê-lo, ou simplesmente não vai querer.

Mas na maioria dos dias, se você está ciente o bastante para se dar uma escolha, você pode escolher outra forma de olhar para essa senhora obesa, de olhos mortos e maquiagem exagerada, que acabou de gritar com o filho na fila do supermercado. Talvez ela não seja assim, geralmente. Talvez ela esteja acordada três noites seguidas segurando a mão do seu marido que está morrendo de câncer ósseo. Ou talvez essa mesma senhora seja a atendente do departamento de veículos motorizados, que ontem mesmo ajudou a sua esposa resolver algum problema chato através de um pequeno ato de bondade burocrática.

É claro, nada disso é provável, mas também não é impossível. Só depende do que você quer considerar. Se você tem certeza automática de que sabe o que a realidade é, e você está operando na sua configuração padrão, então você, como eu, provavelmente não vai considerar possibilidades que não são irritantes ou miseráveis. Mas se você realmente aprender como prestar atenção, então você saberá que existem outras opções. Estará dentro da sua capacidade vivenciar uma situação lotada, lenta e quente como não só significante, mas sagrada, uma chama como a que criou as estrelas: amor, companheirismo, e a unidade mística de todas as coisas, no fundo.

Não que essa coisa mística seja necessariamente verdade. A única coisa que é Verdade com v maiúsculo é que você decide como vai tentar vê-la.

Essa, eu afirmo, é a verdadeira educação, a de aprender como ser bem ajustado. Você vai conscientemente decidir o que tem significado e o que não tem. Você decide o que venerar.

Porque aqui está algo que é estranho mas real: nas trincheiras diárias da vida adulta, não existe algo como o ateísmo. Não existe “não venerar”. Todo mundo venera. A única escolha que temos é o que venerar. E a razão convincente para talvez escolher venerar algum tipo de deus ou coisa espiritual – seja JC, Alá, ou a Deusa Mãe dos Wicca, ou as Quatro Nobres Verdades, ou algum conjunto de princípios éticos invioláveis – é que praticamente qualquer outra coisa que você venerar vai te comer vivo.

Se você venera dinheiro e coisas, se é aí que você encontra significado verdadeiro na vida, então você nunca terá o suficiente. É a verdade. Venere o seu corpo e beleza e atração sexual, e você sempre vai se sentir feio. E quando o tempo e idade começarem a aparecer, você vai morrer um milhão de mortes antes de finalmente te enterrarem. De certa forma, nós já sabemos dessas coisas. Elas já foram codificadas em mitos, provérbios, clichês, epigramas, parábolas – o esqueleto de toda grande história. O truque é manter a verdade evidente na consciência diária..

Venere o poder, e você vai acabar se sentindo fraco e medroso, e você vai precisar de ainda mais poder sobre os outros para entorpecer o seu próprio medo. Venere seu intelecto, ser visto como esperto, e você vai acabar se sentindo estúpido, uma fraude, sempre à beira de ser descoberto. Mas a coisa insidiosa sobre essas formas de veneração não é que elas são más ou perversas – é que elas são inconscientes. Elas são a configuração padrão. São o tipo de veneração em que você gradualmente se acomoda, dia após dia, ficando mais e mais seletivo sobre o que você vê e como você mede valor sem jamais estar totalmente ciente do que está fazendo.

E o suposto mundo real não irá te desencorajar de operar na sua configuração padrão, porque o suposto mundo real de homens e dinheiro e poder cantarola alegremente numa piscina de medo e raiva e frustração e desejo e veneração de si mesmo. Nossa própria cultura atual canalizou essas forças de formas que geraram extraordinária riqueza e conforto e liberdade pessoal. A liberdade de sermos senhores dos nossos pequenos reinados individuais, do tamanho de nossas caveiras, sozinhos no centro de toda a criação. Esse tipo de liberdade tem vários méritos. Mas é claro que há vários tipos diferentes de liberdades, e no grande mundo lá fora de querer e conseguir, você não irá ouvir muito sobre o tipo mais precioso. O tipo realmente importante de liberdade envolve atenção e consciência e disciplina, e ser capaz de realmente se importar com outras pessoas e se sacrificar por elas repetidamente numa miríade de formas triviais e pouco excitantes.

Essa é a verdadeira liberdade. Isso é ser educado, e saber como pensar. A alternativa é a inconsciência, a configuração padrão, a corrida maluca, a constante e torturante sensação de ter tido, e perdido, alguma coisa infinita.

Eu sei que essas coisas não soam divertidas ou joviais ou grandiosamente inspiradoras como um discurso de formatura deve soar. O que isso é, até onde eu sei, é a Verdade com v maiúsculo, com uma porção de sutilezas retóricas removidas. Você está, é claro, livre para pensar disso o que você quiser. Mas por favor não o rejeite como algum sermão hipócrita. Nada disso é realmente sobre moralidade ou religião ou dogma ou questões fantasiosas sobre vida após a morte. A Verdade com v maiúsculo é sobre vida antes da morte. É sobre o valor real de educação real, que não tem quase nada a ver com conhecimento, e tudo a ver com simples consciência – consciência daquilo que é real e essencial, tão escondido na obviedade ao nosso redor, o tempo todo, que nós temos que continuar relembrando repetidamente:

“Isto é água.”

“Isto é água.”

É inimaginavelmente difícil fazer isso, se manter consciente e vivo no mundo adulto dia após dia. O que significa que mais um grande clichê acaba sendo verdade: sua educação realmente é o trabalho de uma vida toda. Eu lhes desejo muito mais que sorte.
comentários(0)comente



aarrgh 01/05/2015

Sabe quando você tá conversando com uma pessoa e no final você fala, sabe como é?, e ela responde que não, não sabe, ou porque não faz ideia do que você tá falando, ou porque não quer nem ter ideia.

Ehh, David Foster Wallace sabe.

São coisas simples da vida, que todo mundo de alguma forma sente, mas não consegue colocar em palavras.

Se me perguntassem as profissões mais importantes para a sociedade, além dos óbvios como gari, médicos etc., eu diria escritores, porque o que seria do mundo sem livros? Não só os escritores de ficção, mas principalmente os escritores de ficção. O que seria de nós sem os livros para nos mostrar que não estamos sozinhos?

Conversando com um amigo sobre “Isto é água”, ele disse Como uma pessoa que possui tamanho discernimento sobre a vida foi se matar?

Eu disse que a resposta estava na pergunta.


Mais um blog literário pra você ignorar:


site: https://treslendo.wordpress.com/
comentários(0)comente



Priscila.Gontijo 14/03/2015

ENSAIOS E AS MELHORES NOTAS DE RODAPÉ
O livro de ensaios de David Foster Wallace é tão intrigante quanto ácido. Uma das marcas do escritor são suas longas notas de rodapé - que devem ser lidas com atenção. O ensaio sobre Kafka é magistral e me ensinou muito sobre como dar aulas de literatura, o mundo contemporâneo e a superficialidade cotidiana que nos esmaga em hábitos aterradoramente mesquinhos e desesperadores, além de sua visão sobre o humor em Kafka. Crítico contundente da sociedade estadunidense, Wallace escreveu um ensaio chamado: "Isto é água" - discurso de paraninfo - que "viralizou" na internet. À partir desse ensaio escrevi uma peça breve intitulada: "Esse reino minúsculo" porque Wallace é um escritor inspirado e inspirador. Ler os seus textos nos faz olhar para o contemporâneo com um olhar mais arguto, sensível e crítico. Pena que a sua luta contra a depressão tenha levado esse artista genial tão cedo. Mas seu legado é grande e deve ser vivido com dedicação. Atenção para o ensaio: "Pense na lagosta".
comentários(0)comente



Gabriel Leite 28/04/2014

Possuí e Perdi Alguma Coisa Infinita
Dois mil e catorze e eu acabo de descobrir esse gênero chamado ensaio. Claro que já tinha lido alguns ensaios na minha vida, mas nunca tinha me dado conta de que o nome daquilo era ensaio. Enfim. Acabei viciando. Gastei dinheiro no Kindle, investi tempo e saúde e conheci David Foster Wallace, o autor de Ficando Longe do Fato de Já Estar Meio que Longe de Tudo.

Quando eu digo conheci, é conheci realmente. E isso é uma das coisas legais de se ler uma coletânea de ensaios (principalmente a coletânea de ensaios de um cara que tem a cabeça como a do David Foster Wallace). O mergulho na mente, na capacidade narrativa e descritiva do autor é tão profundo que, por vezes, você se pega pensando como um D. F. Wallace em plena praça de alimentação do Conjunto Nacional, o que torna a vida inviável. Por outro lado, você, de certa forma, faz um amigo (vomitem, ridículos). Você passa horas numa conversa sem volta com esse homem que te faz rir e te faz pensar e quase te faz dormir, antes de te assaltar com uma construção genial e te fazer acordar. É um pouco estranho, mas você se acostuma (e no final, até ama).

O livro reúne alguns ensaios sobre, por exemplo, cruzeiros de luxo, a problemática de se cozinhar lagostas ainda vivas e as razões pelas quais Federer é o melhor ser humano que já pisou neste planeta. Todos muito bem escritos. Cheios de detalhes precisos, jornalísticos e, ao mesmo tempo, completamente descompromissados com as coisas "naturalmente" primordiais. Uma das coisas mais legais do D. F. Wallace é essa capacidade de enxergar aquele detalhe que, à primeira vista, não parece muito digno de nota, mas que cresce com o texto e encontra correspondentes muito íntimos na nossa própria memória. Daí talvez a certeza de ter conhecido um ensaísta que se matou há seis anos. Seu texto tem a capacidade de nos ensinar algumas coisas fantásticas e, ao mesmo tempo, deixar a sensação de que, no fundo, nós sempre soubemos essas coisas.

Fiquei um pouco angustiado do meio pro final. Não pela qualidade do texto (até porque o texto é realmente impecável), mas porque Wallace tem uma visão muito pessimista, cíclica e perdida da existência humana. No meu ensaio preferido dessa coletânea (Isto É Água, que na verdade é um discurso de formatura que Wallace teve que fazer para alguma turma) ele descreve, com precisão, esse ciclo de fracassos e fala sobre a única alternativa possível. Só por esse trecho, o livro já valeria a pena.

"A única verdade com V maiúsculo é que quem decide como vai tentar ver as coisas são vocês mesmos. Essa, a meu ver, é a liberdade de uma educação autêntica, de aprender a ser bem ajustado: poder decidir conscientemente o que tem significado e o que não tem. Poder decidir o que venerar…

Pois aqui está uma outra verdade. Nas trincheiras cotidianas de uma vida adulta, não existe isso de ateísmo. Não existe isso de não venerar. Todo mundo venera. Nossa única escolha é "o que" venerar. E se existe uma ótima razão para talvez venerar algum tipo de deus ou coisa espiritual - seja Jesus Cristo ou Alá, yhwh ou uma deusa-mãe wiccan, as Quatro Verdades Nobres ou algum conjunto inviolável de princípios éticos - é que provavelmente todas as outras coisas vão devorar vocês vivos. Quem venerar o dinheiro e os bens materiais, quem buscar neles o sentido da vida, nunca terá o suficiente. Nunca terá a sensação de que tem o suficiente. É a verdade. Quem venerar o próprio corpo, beleza e encanto sexual sempre vai se achar feio, e quando o tempo e a idade começarem a deixar marcas morrerá um milhão de mortes antes de finalmente ser enterrado por alguém. (...) Quem venerar o poder vai se sentir fraco e amedrontado, e precisará de cada vez mais poder para conseguir afastar o medo. Quem venerar o intelecto, ser visto como inteligente, vai acabar se sentindo burro, uma fraude na iminência de ser desmascarada. E por aí vai.

Essas formas de venerar são traiçoeiras não por serem malignas ou pecaminosas, mas por serem inconscientes. São configurações padrão. É o tipo de veneração pelo qual nos deixamos levar gradualmente, dia após dia, e que nos torna cada vez seletivos em relação ao que vemos e a como atribuímos valor às coisas, sem jamais termos plena consciência do que é isso que estamos fazendo. E o suposto 'mundo real' nunca desencorajará vocês de operarem nas configurações padrão, porque o suposto 'mundo real' dos homens, do dinheiro e do poder avança tranquilamente movido pelo medo, pelo desprezo, pela frustração, pela ânsia e pela veneração do ego. Nossa cultura atual canalizou essas forças de modo a produzir doses extraordinárias de riqueza, conforto e liberdade pessoal. A liberdade de sermos senhores de reinos minúsculos, do tamanho dos nossos crânios, sozinhos dentro de toda a criação. Esse tipo de liberdade tem seus méritos. Mas é óbvio que há liberdades dos mais variados tipos, e no vasto mundo lá de fora, onde o que importa é vencer, conquistar e se exibir, vocês não ouvirão falar muito do tipo mais precioso de todos. O tipo realmente importante de liberdade requer atenção, consciência, disciplina, esforço e a capacidade de se importar genuinamente com os outros e de se sacrificar por eles inúmeras vezes, todos os dias, numa miríade de formas corriqueiras e pouco excitantes. Essa é a verdadeira liberdade. Isso é ter aprendido a pensar. A alternativa é a inconsciência, a configuração padrão, a 'corrida de ratos' - a sensação permanente e corrosiva de ter possuído e perdido alguma coisa infinita."

site: http://amortemecaibem.blogspot.com.br/2014/04/possui-e-perdi-alguma-coisa-infinita.html
comentários(0)comente



Leonardo 22/04/2014

Bela porta de entrada para o universo de um gênio
Creio que a primeira vez que vi o nome de David Foster Wallace impresso na capa de um livro foi numa edição de The Pale King. Devo inicialmente ter me interessado pelo título por imaginar que se tratasse de um livro de fantasia medieval, ideia que logo se mostrou equivocada. Provavelmente, ao pesquisar sobre o autor, descobri que ele deixou uma obra-prima – Infinite Jest – e que era aclamado como um dos grandes romancistas americanos das últimas décadas. E que, infelizmente, cometeu suicídio em 2008, o que contribuiu sobremaneira para elevá-lo ao posto de um autor “super cult”.

Deixei-o de lado, afinal, seus livros ainda não haviam sido traduzidos para o português. Enquanto sua obra-prima trata-se de um livro imenso (1104 páginas), The Pale King, um romance inacabado, não me atraía.

Quase dois anos se passaram e vi que a Companhia das Letras lançou uma coletânea de ensaios do escritor americano, esta ora resenhada. Quando fui pesquisar sobre os ensaios, não me animei. Acabei cedendo à curiosidade e pedi o livro por conta da parceria com a editora, mas estava certo de que seria apenas “uma leitura para colocar no meu currículo”. Eu não gostaria do livro. Lembro de ter lido que David Foster Wallace era comparado a James Joyce e mesmo a Thomas Pychon, por conta de sua escrita intrincada e quase inacessível. “Deve ser um pedante, um arrogante”, pensei. O título do livro já não ajudava. Que jogo de palavras mais esnobe este “Ficando longe do fato de já estar meio que longe de tudo”!

Aí lembrei da figura do escritor – sua cara de cantor de banda de rock, seus quase dois metros de altura – e tive certeza: este é um livro que vou me arrastar muito pra ler. Vai ser difícil vencê-lo.

O primeiro ensaio é aquele que dá nome ao livro. David Foster Wallace foi convidado por “uma revista classuda da Costa Leste” a cobrir a Feira Estadual de Illinois, uma daquelas feiras tipicamente do interior americano, onde caipiras competem para ver quem tem a vaca mais enfeitada, a maior abóbora ou quem faz o mais estranho bolo de cenoura. Tudo isso em proporções épicas, claro. Wallace assume desde o início que aquele será um trabalho pobre enquanto jornalismo, mas que mesmo assim ele tentará entregar algo de interessante.

Demorei um pouco a engrenar, mas fui me acostumando ao seu humor fino e às suas frequente autocríticas. Wallace não tem mesmo pena de si, e não usa isto como recurso literário. Adianto aqui que de tudo o que me chamou a atenção nos seus ensaios, foi a sua sinceridade o que me conquistou. Nestes ensaios, você realmente consegue ouvir a voz do autor. Ele fala das suas limitações, das suas fobias (muitas, incluindo uma inédita “semiagorafobia”), das suas neuras. Tudo com muito bom humor.

Sua capacidade de descrever é notável, e muito contribui para que os ensaios sejam uma leitura deliciosa:

“Outro entupidor de artérias: Orelhas de Elefante. Uma Orelha de Elefante é uma extensão de massa frita em óleo do tamanho de uma capa de LP, besuntada com uma camada generosa de manteiga açucarada com canela, uma espécie de torrada de canela do inferno, moldada realmente de fato como uma orelha, surpreendentemente apetitosa, no fim das contas, mas enjoativamente macia, com a textura de uma carne adiposa e de inegáveis proporções elefantinas – ninguém além dos obesos mórbidos faz fila para comprar as Orelhas.”

Descrevendo algumas crianças:

“Os proprietários das vacas são crianças de fazenda, crianças profundamente rurais de municípios nos confins do mundo, tais como Piatt, Moultrie, Vermilion, todos campeões de Feiras Municipais. Estão compenetradas, nervosas, infladas de orgulho. Trajes rurais. Cabelos bem curtos, cor de palha. Elevado número de sardas per capita. São crianças notáveis por um certo tipo de mediocridade rockwelliana clássica dos Estados Unidos, produto de dietas balanceadas, trabalho árduo e sólida educação republicana.”

Claro, o principal neste ensaio e no seguinte – sobre um cruzeiro – é o que ele escolhe nos contar, os detalhes que seu olho crítico não deixa escapar. Na feira, nós o acompanhamos em visitas a porcos, cavalos, ovelhas, no grande espaço de alimentação, com filas quilométricas e, principalmente, nos brinquedos que proporcionam “Experiências de Quase-Morte”, algo completamente incompatível com a sua natureza:

“Para mim é como pagar para se envolver num acidente de carro. Não entendo qual é o sentido; nunca entendi. Não é uma coisa regional ou cultural. Acho que é uma questão de constituição neurológica básica. Acho que o mundo pode ser dividido direitinho entre quem se empolga com a indução controlada do terror e quem não se empolga. Não acho o terror empolgante. Acho aterrorizante. Um dos meus objetivos de vida básicos é submeter meu sistema nervoso à menor quantidade de terror possível.”

O segundo ensaio – Uma coisa supostamente divertida que eu nunca mais vou fazer – é semelhante ao primeiro em sua natureza: trata-se de um relato de mais de 120 páginas de um cruzeiro de luxo de sete noites pelo Caribe, também a pedido de uma revista (só para eu não esquecer, o primeiro ensaio tem 80 páginas e ao final você compreende o porquê do título). Achei o segundo ensaio ainda melhor que o primeiro. É mais divertido e você conhece Wallace bem melhor, porque, como falei anteriormente, ele é muito sincero e transparente. Tenho que comentar que foi aqui que o nó na garganta com que terminei a leitura começou a aparecer. É que fui percebendo que caramba, David Foster Wallace era um cara legal! Muito legal, um cara, como diria alguém alhures, “super do bem”. Não é um gênio metido, enfurnado em seu próprio mundo e que se julga acima dos hábitos desprezíveis do americano médio. Ele realmente critica esses hábitos, mas com muito bom humor, e não se nega até mesmo a participar de concursos ridículos a bordo do navio. Eu lia o ensaio e me perguntava, lamentando: “Por que ele se matou?”

Uma das características marcantes na literatura de Wallace são suas generosas e frequentes notas de rodapé (em alguns casos há notas de rodapé dentro das notas de rodapé), todas, entretanto, necessárias e colocadas de um modo que não amarram a leitura.

“O Capitão Nico109 não venceria nenhuma medalha de oratória com seu inglês, mas fornece um genuíno festival de dados concretos. Ele tem mais ou menos a minha idade e altura, mas é tão bonito que chega a ser ridículo, 110 uma espécie de Paul Auster extremamente malhado e bronzeado.

109 O Nadir tem um Capitão, um Segundo-Capitão e quatro Oficiais-Chefes. O Capitão Nico é um desses Oficiais-Chefes; não sei por que ele é chamado de Capitão Nico.

110 Outra coisa que aprendi neste Cruzeiro de Luxo é que nenhum homem pode ter melhor aparência do que a obtida num uniforme branco de gala de oficial naval. Mulheres de todas as idade e níveis de estrogênio desmaiavam, suspiravam, estremeciam, piscavam, grunhiam e vibravam durante a passagem de um desses oficiais gregos resplandecentes, um fenômeno que, imagino, não ajudava nem um pouco os gregos a serem humildes.”

Este ensaio está repleto de situações impagáveis, como a descrição do próprio Wallace para a sua derrota no xadrez para uma menininha prodígio (ele até que joga razoavelmente bem, no seu próprio julgamento), cuja mãe, sem dúvida, era uma daquelas tiranas do xadrez. Ou a aposta unilateral do professor de pingue-pongue do cruzeiro (de quem ele sempre ganhava), que insistia que após um certo número de vitórias ele (o professor) ganharia o cobiçado boné do Homem-Aranha, acessório sem o qual David Foster Wallace não jogava. Além, é claro, da sua já citada capacidade de descrever as coisas:

“São o tipo de homem que parece estar fumando charutos mesmo quando não está fumando charutos.”

Ou, falando do café:

“E o café do Café Windsurf – que borbulha alegre de torneiras em imensas cafeteiras de aço escovado – o café é simplesmente o tipo de café que faria você se casar com alguém capaz de prepará-lo. Em geral eu tenho um limite firme e neurologicamente imperativo de uma xícara de café, mas o café do Windsurf é tão bom e o trabalho de decifrar as imensas manchas rorschachianas das minhas anotações da Palestra Sobre Navegação é tão exaustivo que nesse dia acabo excedendo o limite, e excedendo muito, o que pode ajudar a explicar porque as horas seguintes deste registro estão meio caleidoscópicas e dispersas”.

Ou falando de mulheres que usam roupas de malhação na academia do navio:

“E nessas máquinas há pessoas usando elastano que me inspiram uma vontade enorme de levar para um cantinho e recomendar da forma mais diplomática e amorosa possível que nunca usem elastano.”

Os dois ensaios acima ocupam mais de metade do livro. Há ainda outros completamente diferentes:

Alguns comentários sobre a graça de Kafka dos quais provavelmente não se omitiu o bastante, no qual ele fala do humor em Kafka a partir de um miniconto seu (este aqui);

Pense na lagosta, no qual Wallace discute a respeito do possível dilema ético de ferver lagostas vivas para satisfazer nosso paladar;

Isto é água, um tocante discurso de paraninfo que realmente me deixou com o nó na garganta em definitivo. Wallace fala sobre tolerância, sobre ser uma pessoa melhor para si e para os outros para ser mais feliz.

“Pois aqui está uma outra verdade. Nas trincheiras cotidianas de uma vida adulta, não existe isso de ateísmo. Não existe isso de não venerar. Todo mundo venera. Nossa única escolha é o que venerar. E se existe uma ótima razão para talvez escolher venerar algum tipo de deus ou coisa espiritual – seja Jesus Cristo ou Alá, YHWH ou uma deusa-mãe wiccan, as Quatro Verdades Nobres ou algum conjunto inviolável de princípios éticos – é que praticamente todas as outras coisas vão devorar vocês vivos. Quem venerar o dinheiro e os bens materiais, quem buscar neles o sentido da vida, nunca terá o suficiente. Nunca terá a sensação de que tem o suficiente. É a verdade. Quem venerar o próprio corpo, beleza e encanto sexual sempre vai se achar feio, e quando o tempo e a idade começarem a deixar marcas morrerá um milhão de mortes antes de finalmente ser enterrado por alguém. De certo modo, todo mundo já sabe disso – está codificado em mitos, provérbios, clichês, máximas, epigramas, parábolas; no esqueleto de toda boa história. O grande truque é conseguir manter a verdade na superfície da consciência em nossas vidas cotidianas. Quem venerar o poder vai se sentir fraco e amedrontado, e precisas de cada vez mais poder para conseguir afastar o medo. Quem venerar o intelecto, ser visto como inteligente, vai acabar se sentindo burro, uma fraude na iminência de ser desmascarada. E por aí vai.”

Por que ele escreveu isso para aqueles alunos? Para que eles pudessem “chegar aos trinta, ou quem sabe aos cinquenta, sem querer dar um tiro na cabeça”.

E ele mesmo fez algo similar ao se enforcar… Não, ele não estava sendo hipócrita. David Foster Wallace viveu vinte anos, segundo seu próprio pai, lutando contra a depressão. Depois de tentar um novo método, caiu na depressão novamente e, ao retornar ao seu antigo medicamento, descobriu que ele não mais surtia efeito, o que deve ter sido desesperador.

O texto final é um brinde para quem gosta de tênis. Descobri que além de gênio e de ser um gigante de cabelos compridos com cara de roqueiro, David Foster Wallace foi jogador quase profissional de tênis. Em “Federer como experiência religiosa” ele acompanha a final de Wimbledon de 2006, um dos grandes jogos da história do tênis, entre Federer e Nadal. Ele reverencia Federer, explicando porque vê-lo jogar é quase uma experiência religiosa. Só lendo para ver.

Terminei o livro um pouco triste, mas os motivos já foram expostos. Nada a ver com o livro em si. Soube que a Companhia das Letras está traduzindo Infinite Jest. Não vejo a hora de ler, assim como, bem antes disso, conferirei seu outro trabalho já traduzido para o português, o livro de contos Breves entrevistas com homens hediondos.

Minha Avaliação:

4 estrelas em 5.

site: http://catalisecritica.wordpress.com
comentários(0)comente



Ronaldo 05/01/2014

Faltam tradutores
Quantos autores maravilhosos como esse não são trazidos para o Brasil? Um livro escrito em linguagem tão macia que ficasse triste quando acaba, e pior é saber que querendo ler mais do autor, tem de ler no original em inglês!
comentários(0)comente



jota 20/09/2013

A América de DFW
Segundo Daniel Galera, que fez a tradução (juntamente com Daniel Pellizzari) também a seleção dos textos e o prefácio do livro de DFW, este é talvez o caminho mais fácil para se chegar ao complexo escritor americano.

Muita gente, como eu, começou com outro livro, considerado pelo próprio Galera como mais difícil ou complexo - Breves Entrevistas com Homens Hediondos -, cujo lançamento aqui se deu primeiro que Ficando Longe... Ele acredita que este volume (de não ficção) vai permitir ao leitor brasileiro conhecer melhor DFW e também sua ficção.

Depois do longo prefácio de Galera (muito útil para entender a escrita do autor e localizar algumas coisas), vem o ensaio que dá nome à obra, “Ficando longe do fato de já estar meio que longe de tudo”, que tem 80 páginas e é sobre a Feira Agropecuária em Illinois, descrita por ele nos, digamos, mínimos detalhes (incluindo aí os banheiros químicos que os visitantes utilizam e seu odor característico).

Alguns dados são engraçados, outros são informativos e um tanto deles são aborrecidos mesmo (semelhantes a várias passagens de Breves Entrevistas Sobre Homens Hediondos), mas esse era o estilo de Wallace fazer o quê? O texto, feito para uma revista, é de 1993, embora pareça bastante atual o quadro (muito pouco lisonjeiro) que DFW pinta sobre seu país e seus compatriotas. É quase possível sentir certos odores pouco nobres nessa Feira ou o gosto enjoativo (e engordurado) de diversas comidas e guloseimas consumidas ali...

No segundo ensaio, “Uma coisa supostamente divertida que eu nunca mais vou fazer”, de 1995, que é mais longo ainda que o primeiro - são 125 páginas; sozinho praticamente daria um livro -, pasmem, há 137 notas de rodapé e, para mim, uma invenção, a nota de rodapé da nota de rodapé, que é a 137ª.

É por isso que no prefácio Daniel Galera fala que os livros de DFW têm “notas de rodapé em cascata”, “notas de rodapé em profusão” e "notas de rodapé por vezes quilométricas”. Quem leu Breves Entrevistas com Homens Hediondos deve se lembrar das notas de rodapé monstruosas do sexto conto, "A pessoa deprimida", que às vezes eram maiores do que o texto da página em que apareciam e que, pelo tamanho exagerado, se estendiam por várias páginas. Tem gente que acha DFW um escritor genial por conta dessas coisas (e de outras).

Bem, mas nesse segundo ensaio deste livro ele está a bordo de um transatlântico de luxo, o Nadir, para um, obviamente, cruzeiro de luxo - a coisa supostamente divertida que ele nunca mais vai fazer; são 7 noites a bordo, viajando pelo Caribe - e depois de tudo o que ele conta a respeito da viagem, da tripulação, dos passageiros, da comida, das acomodações, das atividades de recreação, etc., etc., etc., nem é preciso viajar mais, apenas ficar curtindo o cruzeiro em casa mesmo, sentado, com o livro de DFW na mão: nada escapa de seus olhos e de sua mente; nesse sentido ele é um escritor genial. E também um tanto cansativo para os mortais comuns, que podem ficar enjoados com tanta informação (útil?).

“Alguns comentários sobre a graça de Kafka dos quais provavelmente não se omitiu o bastante”, de 1999, é o terceiro ensaio (com título longo mas em quantidade de páginas bastante curto comparado aos demais textos), no qual DFW afirma que seus alunos universitários infelizmente não conseguem perceber que Kafka é um autor engraçado. Ou melhor, espirituoso.

O FLM, ou Festival da Lagosta do Maine, tratado em “Pense na lagosta”, quarto ensaio, texto de tamanho razoável (mas com suas indefectíveis notas de rodapé), não apenas examina o que se passa durante o famoso festival gastronômico americano de verão propriamente dito, como coloca a questão ampla do sofrimento dos animais no processo de transformação em comida. Todos sabem que o melhor (não do ponto de vista da lagosta, é claro) meio de cozinhar esse petisco marinho é colocando os bichos vivos em água fervente por cerca de alguns minutos (conforme a quantidade a ser cozida). Comida e ética (alimentar) muito bem servidos por DFW aqui. Escrito para a revista Gourmet, em 2004.

O Discurso de Paraninfo, Kenyon College, 21 de maio de 2005, está no quinto ensaio, “Isto é água”, em que, no meio de algumas anedotas e outras tantas reflexões, DFW também diz uma porção de coisas sérias aos formandos. É um dos melhores textos da coletânea.

O sexto e último ensaio “Federer como experiência religiosa” é de 2006 (ele trata da partida entre Federer e Nadal na final de Wimbledon nesse ano) e tem a ver com a paixão de DFW pelo tênis, especialmente sua adoração pelo tenista suíço. Mas que, para quem não aprecia o esporte ou acha que ver uma partida entre grandes tenistas pela televisão já é um saco, imagine então ler sobre isso. Portanto, para mim, este é o pior artigo do livro, mas pode ser o melhor para muita gente.

Escrevendo sobre um cruzeiro marítimo, um festival de lagosta, uma feira agropecuária, uma partida de tênis ou outra coisa – imagino se, por exemplo, DFW pudesse ter escrito sobre a festa do Oscar -, não tenho dúvida de que seu texto seria sempre parecido, identificável por suas virtudes de escritor criativo e antenado e também por seus defeitos - sendo um deles, é claro, o uso exagerado de suas exageradas notas de rodapé.

Mesmo assim achei este livro mais digerível do que Breves Entrevistas Com Homens Hediondos e concordo com Galera de que funciona melhor como uma introdução aos textos e à escrita de DFW. E principalmente à América do escritor.

Lido entre 04 e 20/09/2013.
comentários(0)comente



Carina 13/09/2013

Ensaios sarcásticos e alguma filosofia
A coletânea começa com um ensaio longo e altamente mordaz sobre uma feira agropecuária no interior dos Estados Unidos. Por mais que o foco do escritor pareça ser atacar cada elemento que compõe o cenário, o pessimismo não impede a diversão do leitor. As ironias no texto são muito bem construídas, por meio de um discurso que sequer passa perto do politicamente correto. Para quem mora em cidades do interior, não há como não identificar alguns estereótipos delineados por Wallace - as filas enormes em busca de comida, os concursos de Miss Morango (ou coisa que o valha), as pessoas suadas e carregadas de compras, as apresentações de grupos principiantes de dança country...

No segundo ensaio, porém, começamos a perceber algo além do sarcasmo de David Foster - suas reflexões, ainda que permeadas de ironias, são profundas. Ao analisar a tripulação viajante em um cruzeiro de luxo, por exemplo, o autor questiona se a vontade de registrar cada momento com câmeras, de participar de todas as atividades oferecidas pelo navio, de comprar lembranças inúteis com os nativos não são atitudes que revelam o desespero de quem não quer passar a vida em branco, uma espécie de autoafirmação diante da morte:

"Algumas semanas antes (…), um rapaz de dezessete anos se atirou do convés superior de um meganavio (…), um suicídio. Segundo a versão noticiada, foi um caso adolescente de amor frustrado, um romance a bordo que terminou mal etc. Creio que em parte foi outra coisa (…). Existe algo de insuportavelmente triste num Cruzeiro de Luxo comercial. Como a maioria das coisas insuportavelmente tristes, parece incrivelmente esquivo e complexo em suas causas e simples em seu efeito: a bordo do Nadir – especialmente à noite, quando cessam as diversões organizadas, as gentilezas e o barulho animado no navio – eu senti desespero. Desespero é uma palavra que foi desgastada até se tornar banal, mas é uma palavra séria e estou usando-a com seriedade. Para mim, ela denota uma mistura simples – um estranho anseio pela morte combinado com um sentimento esmagador da minha pequenez e da minha futilidade, que se apresenta como um medo da morte. Talvez seja algo próximo daquilo que as pessoas chamam de pavor ou angústia. Mas é bem outra coisa. É como desejar morrer para escapar da sensação insuportável de compreender que sou pequeno e fraco e egoísta e que sem a menor dúvida vou morrer. É querer se atirar do navio (…). Eu, que antes desse cruzeiro nunca estivera no oceano, sempre associei o oceano com pavor e morte."

O discurso de paraninfo "Isto é água" é absolutamente antológico. Indo na contracorrente do clima de euforia da formatura, o escritor alerta seus alunos para as pequenas tristezas que os esperam na vida adulta. Segundo Wallace, é preciso força para aguentar as decepções do cotidiano sem dar um tiro na cabeça (um triste discurso, se lembrarmos o fato do escritor ter se suicidado alguns anos depois).

"Pense na lagosta" é um ensaio sobre nossa necessidade de não pensar na carne enquanto proveniente de um ser vivo. O discurso da falta de ética no tratamento com os animais é especialmente tocante por vir de alguém que não milita pela causa vegetariana, mas que consegue enxergar as contradições de seu próprio discurso.

Por fim, o texto sobre Federer é voltado para quem entende das técnicas do jogo de tênis, mas não deixa de ser interessante.



Isto é água


Dois peixinhos estão nadando juntos e cruzam com um peixe mais velho, nadando em sentido contrário. Ele os cumprimenta e diz:

- Bom dia, meninos. Como está a água?

Os dois peixinhos nadam mais um pouco, até que um deles olha para o outro e pergunta:

- Água? Que diabo é isso?

Não se preocupem, não pretendo me apresentar a vocês como o peixe mais velho e sábio que explica o que é água ao peixe mais novo. Não sou um peixe velho e sábio. O ponto central da história dos peixes é que a realidade mais óbvia, ubíqua e vital costuma ser a mais difícil de ser reconhecida. Enunciada dessa -forma, a frase soa como uma platitude - masé fato que, nas trincheiras do dia-a-dia da existência adulta, lugares comuns banais podem adquirir uma importância de vida ou morte.

Boa parte das certezas que carrego comigo acabam se revelando totalmente equivocadas e ilusórias. Vou dar como exemplo uma de minhas convicções automáticas: tudo à minha volta respalda a crença profunda de que eu sou o centro absoluto do universo, de que sou a pessoa mais real, mais vital e essencial a viver hoje. Raramente mencionamos esse egocentrismo natural e básico, pois parece socialmente repulsivo, mas no fundo ele é familiar a todos nós. Ele faz parte de nossa configuração padrão, vem impresso em nossos circuitos ao nascermos.

Querem ver? Todas as experiências pelas quais vocês passaram tiveram, sempre, um ponto central absoluto: vocês mesmos. O mundo que se apresenta para ser experimentado está diante de vocês, ou atrás, à esquerda ou à direita, na sua tevê, no seu monitor, ou onde for. Os pensamentos e sentimentos dos outros precisam achar um caminho para serem captados, enquanto o que vocês sentem e pensam é imediato, urgente, real. Não pensem que estou me preparando para fazer um sermão sobre compaixão, desprendimento ou outras "virtudes". Essa não é uma questão de virtude - trata-se de optar por tentar alterar minha configuração padrão original, impressa nos meus circuitos. Significa optar por me libertar desse egocentrismo profundo e literal que me faz ver e interpretar absolutamente tudo pelas lentes do meu ser.

Num ambiente de excelência acadêmica, cabe a pergunta: quanto do esforço em adequar a nossa configuração padrão exige de sabedoria ou de intelecto? A pergunta é capciosa. O risco maior de uma formação acadêmica - pelo menos no meu caso - é que ela reforça a tendência a intelectualizar demais as questões, a se perder em argumentos abstratos, em vez de simplesmente prestar atenção ao que está ocorrendo bem na minha frente.

Estou certo de que vocês já perceberam o quanto é difícil permanecer alerta e atento, em vez de hipnotizado pelo constante monólogo que travamos em nossas cabeças. Só vinte anos depois da minha formatura vim a entender que o surrado clichê de "ensinar os alunos como pensar" é, na verdade, uma simplificação de uma idéia bem mais profunda e séria. "Aprender a pensar" significa aprender como exercer algum controle sobre como e o que cada um pensa. Significa ter plena consciência do que escolher como alvo de atenção e pensamento. Se vocês não conseguirem fazer esse tipo de escolha na vida adulta, estarão totalmente à deriva.

Lembrem o velho clichê: "A mente é um excelente servo, mas um senhorio terrível." Como tantos clichês, também esse soa inconvincente e sem graça. Mas ele expressa uma grande e terrível verdade. Não é coincidência que adultos que se suicidam com armas de fogo quase sempre o façam com um tiro na cabeça. Só que, no fundo, a maioria desses suicidas já estava morta muito antes de apertar o gatilho. Acredito que a essência de uma educação na área de humanas, eliminadas todas as bobagens e patacoadas que vêm junto, deveria contemplar o seguinte ensinamento: como percorrer uma confortável, próspera e respeitável vida adulta sem já estar morto, inconsciente, escravizado pela nossa configuração padrão - a de sermos singularmente, completamente, imperialmente sós.

Isso também parece outra hipérbole, mais uma abstração oca. Sejamos concretos então. O fato cru é que vocês, graduandos, ainda não têm a mais vaga idéia do significado real do que seja viver um dia após o outro. Existem grandes nacos da vida adulta sobre os quais ninguém fala em discursos de formatura. Um desses nacos envolve tédio, rotina e frustração mesquinha.

Vou dar um exemplo prosaico imaginando um dia qualquer do futuro. Você acordou de manhã, foi para seu prestigiado emprego, suou a camisa por nove ou dez horas e, ao final do dia, está cansado, estressado, e tudo que deseja é chegar em casa, comer um bom prato de comida, talvez relaxar por umas horas, e depois ir para cama, porque terá de acordar cedo e fazer tudo de novo. Mas aí lembra que não tem comida na geladeira. Você não teve tempo de fazer compras naquela semana, e agora precisa entrar no carro e ir ao supermercado. Nesse final de dia, o trânsito está uma lástima.

Quando você finalmente chega lá, o supermercado está lotado, horrivelmente iluminado com lâmpadas fluorescentes e impregnado de uma música ambiente de matar. É o último lugar do mundo onde você gostaria de estar, mas não dá para entrar e sair rapidinho: é preciso percorrer todos aqueles corredores superiluminados para encontrar o que procura, e manobrar seu carrinho de compras de rodinhas emperradas entre todas aquelas outras pessoas cansadas e apressadas com seus próprios carrinhos de compras. E, claro, há também aqueles idosos que não saem da frente, e as pessoas desnorteadas, e os adolescentes hiperativos que bloqueiam o corredor, e você tem que ranger os dentes, tentar ser educado, e pedir licença para que o deixem passar. Por fim, com todos os suprimentos no carrinho, percebe que, como não há caixas suficientes funcionando, a fila é imensa, o que é absurdo e irritante, mas você não pode descarregar toda a fúria na pobre da caixa que está à beira de um ataque de nervos.

De qualquer modo, você acaba chegando à caixa, paga por sua comida e espera até que o cheque ou o cartão seja autenticado pela máquina, e depois ouve um "boa noite, volte sempre" numa voz que tem o som absoluto da morte. Na volta para casa, o trânsito está lento, pesado etc. e tal.

É num momento corriqueiro e desprezível como esse que emerge a questão fundamental da escolha. O engarrafamento, os corredores lotados e as longas filas no supermercado me dão tempo de pensar. Se eu não tomar uma decisão consciente sobre como pensar a situação, ficarei irritado cada vez que for comprar comida, porque minha configuração padrão me leva a pensar que situações assim dizem respeito a mim, a minha fome, minha fadiga, meu desejo de chegar logo em casa. Parecerá sempre que as outras pessoas não passam de estorvos. E quem são elas, aliás? Quão repulsiva é a maioria, quão bovinas, e inexpressivas e desumanas parecem ser as da fila da caixa, quão enervantes e rudes as que falam alto nos celulares.

Também posso passar o tempo no congestionamento zangado e indignado com todas essas vans, e utilitários e caminhões enormes e estúpidos, bloqueando as pistas, queimando seus imensos tanques de gasolina, egoístas e perdulários. Posso me aborrecer com os adesivos patrióticos ou religiosos, que sempre parecem estar nos automóveis mais potentes, dirigidos pelos motoristas mais feios, desatenciosos e agressivos, que costumam falar no celular enquanto fecham os outros, só para avançar uns 20 metros idiotas no engarrafamento. Ou posso me deter sobre como os filhos dos nossos filhos nos desprezarão por desperdiçarmos todo o combustível do futuro, e provavelmente estragarmos o clima, e quão mal-acostumados e estúpidos e repugnantes todos nós somos, e como tudo isso é simplesmente pavoroso etc. e tal.

Se opto conscientemente por seguir essa linha de pensamento, ótimo, muitos de nós somos assim - só que pensar dessa maneira tende a ser tão automático que sequer precisa ser uma opção. Ela deriva da minha configuração padrão.

Mas existem outras formas de pensar. Posso, por exemplo, me forçar a aceitar a possibilidade de que os outros na fila do supermercado estão tão entediados e frustrados quanto eu, e, no cômputo geral, algumas dessas pessoas provavelmente têm vidas bem mais difíceis, tediosas ou dolorosas do que eu.

Fazer isso é difícil, requer força de vontade e empenho mental. Se vocês forem como eu, alguns dias não conseguirão fazê-lo, ou simplesmente não estarão a fim. Mas, na maioria dos dias, se estiverem atentos o bastante para escolher, poderão preferir olhar melhor para essa mulher gorducha, inexpressiva e estressada que acabou de berrar com a filhinha na fila da caixa. Talvez ela não seja habitualmente assim. Talvez ela tenha passado as três últimas noites em claro, segurando a mão do marido que está morrendo. Ou talvez essa mulher seja a funcionária mal remunerada do Departamento de Trânsito que, ontem mesmo, por meio de um pequeno gesto de bondade burocrática, ajudou algum conhecido seu a resolver um problema insolúvel de documentação.

Claro que nada disso é provável, mas tampouco é impossível. Tudo depende do que vocês queiram levar em conta. Se estiverem automaticamente convictos de conhecerem toda a realidade, vocês, assim como eu, não levarão em conta possibilidades que não sejam inúteis e irritantes. Mas, se vocês aprenderam como pensar, saberão que têm outras opções. Está ao alcance de vocês vivenciarem uma situação "inferno do consumidor" não apenas como significativa, mas como iluminada pela mesma força que acendeu as estrelas.

Relevem o tom aparentemente místico. A única coisa verdadeira, com V maiúsculo, é que vocês precisam decidir conscientemente o que, na vida, tem significado e o que não tem.

Na trincheira do dia-a-dia, não há lugar para o ateísmo. Não existe algo como "não venerar". Todo mundo venera. A única opção que temos é decidir o que venerar. E o motivo para escolhermos algum tipo de Deus ou ente espiritual para venerar - seja Jesus Cristo, Alá ou Jeová, ou algum conjunto inviolável de princípios éticos - é que todo outro objeto de veneração te engolirá vivo. Quem venerar o dinheiro e extrair dos bens materiais o sentido de sua vida nunca achará que tem o suficiente. Aquele que venerar seu próprio corpo e beleza, e o fato de ser sexy, sempre se sentirá feio - e quando o tempo e a idade começarem a se manifestar, morrerá um milhão de mortes antes de ser efetivamente enterrado.

No fundo, sabemos de tudo isso, que está no coração de mitos, provérbios, clichês, epigramas e parábolas. Ao venerar o poder, você se sentirá fraco e amedrontado, e precisará de ainda mais poder sobre os outros para afastar o medo. Venerando o intelecto, sendo visto como inteligente, acabará se sentindo burro, um farsante na iminência de ser desmascarado. E assim por diante.

O insidioso dessas formas de veneração não está em serem pecaminosas - e sim em serem inconscientes. São o tipo de veneração em direção à qual você vai se acomodando quase que por gravidade, dia após dia. Você se torna mais seletivo em relação ao que quer ver, ao que valorizar, sem ter plena consciência de que está fazendo uma escolha.

O mundo jamais o desencorajará de operar na configuração padrão, porque o mundo dos homens, do dinheiro e do poder segue sua marcha alimentado pelo medo, pelo desprezo e pela veneração que cada um faz de si mesmo. A nossa cultura consegue canalizar essas forças de modo a produzir riqueza, conforto e liberdade pessoal. Ela nos dá a liberdade de sermos senhores de minúsculos reinados individuais, do tamanho de nossas caveiras, onde reinamos sozinhos.

Esse tipo de liberdade tem méritos. Mas existem outros tipos de liberdade. Sobre a liberdade mais preciosa, vocês pouco ouvirão no grande mundo adulto movido a sucesso e exibicionismo. A liberdade verdadeira envolve atenção, consciência, disciplina, esforço e capacidade de efetivamente se importar com os outros - no cotidiano, de forma trivial, talvez medíocre, e certamente pouco excitante. Essa é a liberdade real. A alternativa é a torturante sensação de ter tido e perdido alguma coisa infinita.

Pensem de tudo isso o que quiserem. Mas não descartem o que ouviram como um sermão cheio de certezas. Nada disso envolve moralidade, religião ou dogma. Nem questões grandiosas sobre a vida depois da morte. A verdade com V maiúsculo diz respeito à vida antes da morte. Diz respeito a chegar aos 30 anos, ou talvez aos 50, sem querer dar um tiro na própria cabeça. Diz respeito à consciência - consciência de que o real e o essencial estão escondidos na obviedade ao nosso redor - daquilo que devemos lembrar, repetindo sempre: "Isto é água, isto é água."

É extremamente difícil lembrar disso, e permanecer consciente e vivo, um dia depois do outro.
***
Agora tenho 33 anos de idade e sinto que muito tempo passou e vai passando mais rápido a cada dia. Dia após dia preciso fazer todo tipo de escolhas sobre aquilo que é bom, importante e divertido, e depois preciso conviver com o confisco de todas as outras opções que essas escolhas eliminam. E começo a perceber que à medida que o tempo ganhar ímpeto minhas escolhas vão se dar num campo mais estreito e as eliminações serão multiplicadas em ritmo exponencial até eu chegar a algum ponto de algum ramo qualquer dentre as suntuosas ramificações complexas da vida onde estarei completamente trancado e cravado num único caminho e o tempo passará voando por mim em fases de estase, atrofia e decadência até eu cair pela terceira vez, toda a luta em vão, afogado pelo tempo. É apavorante. Mas como serei trancado pelas minhas próprias escolhas, parece inevitável — se desejo ser adulto de algum jeito, preciso fazer escolhas e lamentar eliminações e tentar viver com isso.
comentários(0)comente



37 encontrados | exibindo 16 a 31
1 | 2 | 3


Utilizamos cookies e tecnologia para aprimorar sua experiência de navegação de acordo com a Política de Privacidade. ACEITAR