Ficando longe do fato de já estar meio que longe de tudo

Ficando longe do fato de já estar meio que longe de tudo David Foster Wallace




Resenhas - Ficando Longe do Fato de Já Estar Meio Que Longe de Tudo


37 encontrados | exibindo 1 a 16
1 | 2 | 3


Vilto 13/11/2012

Resenha: Ficando longe do fato de já estar meio que longe de tudo – David Foster Wallace
Adquiri um novo vício literário: ler livros de ensaios. Estranho? Não! Se você é um curioso daqueles que vivem querendo saber de vários assuntos ao mesmo tempo; ler ensaios se torna um hábito muito rápido.

Veio a calhar então a leitura de Ficando longe do fato de já estar meio que longe de tudo, de David Foster Wallace, publicado pela Companhia das Letras. Por que não misturar filosofia com bom humor? Wallace faz isso com maestria. O livro é composto de uma seleção de seis textos do autor; e ainda vem com o prefácio escrito por Daniel Galera (a tradução também é dele).

Entre os textos, há três reportagens, digamos, sem um compromisso jornalístico real. É na verdade um escritor colocando-se no papel de jornalista. Logo de cara, o leitor acompanha Wallace numa incursão por uma feira no interior americano; mas o que poderia parecer apenas um diário de bordo, torna-se uma experiência de questionamentos sobre a vida, a posse sobre ela, entre outros; juntamente com uma amiga a quem o autor chama de “acompanhante nativa” – este ensaio dá título ao livro. Agora imagine-se viajando num cruzeiro pelo Caribe, mas olhando tudo através da refinada lente de um observador que surpreende por sua minuciosidade; e assim você passa pelas páginas do ensaio “Uma coisa supostamente divertida que eu nunca mais vou fazer”. Nem bem saiu do cruzeiro, o leitor já acompanha Wallace noutra feira americana, mas desta vez focada na venda, produção e consumo de lagostas. O título “Pense na Lagosta” não é por acaso. Então pondo na mesa todos os argumentos, Wallace questiona até que ponto podemos acabar com uma vida, em virtude de atender o nosso paladar. E assim, depois da deliciosa reflexão, ou não, dependendo de cada estômago, surge uma palestra ministrada por Wallace sobre Kafka; onde ele analisa o porquê de a sociedade atual, pautada num humor instantâneo, não conseguir ver graça nos textos de Kafka. “Isto é água”, o texto que vem a seguir, é um discurso que o escritor proferiu como paraninfo; e que acabou se tornando um viral na internet. Fechando o livro, vem a crônica jornalística “Federer como experiência religiosa”, em que Wallace discorre sobre sua paixão pelo tênis, refletindo nos atributos esportivos do jogador suíço Roger Federer.

E finalmente, por que ler Wallace?
Se depois de tudo isso, você ainda não se convenceu; então aí vai mais um argumento. Para quem gosta de saber sobre o autor que existe por trás do texto; este livro cumpre com todas as expectativas. David Foster Wallace se suicidou em 2008, deixando um romance incompleto; porém se você conferir o livro, na minha opinião, já começa a notar alguns indícios desta possibilidade quando ele fala sobre a solidão de estar num cruzeiro. É só uma pitadinha a mais para despertar a sua curiosidade, mas acho que pode surtir efeito.

Como nada é perfeito, penso que ouve um equívoco em relação a escolha da capa do livro; pois algumas pessoas que me viram com ele na mão, chegaram a perguntar “que livro de adolescente era este que eu estava lendo”. Eu não me incomodo com isto, mas vale dizer que é um livro para quem gosta de pensar e se divertir ao mesmo tempo; e como tal, cumpre muito bem o seu papel.


Confira mais resenhas e novidades sobre literatura no Homo Literatus, acesse: www.homoliteratus.com
Geisa 09/01/2013minha estante
Olá, Vilto.

Achei bem bacana sua resenha. Comprei em ebook esta edição por estar estudando ensaios.
Nunca li nada deste autor e pelas notas e indicações vou começar a ler logo.

Já que gosta de ensaios, teria outros título a indicar? Fui no teu site, mas não encontrei uma tag ou indicações sobre ensaios.

Obrigada!


Vilto 09/01/2013minha estante
Olá, Geisa.

Não sei se é muito do teu interesse, mas há o livro "O zen e a arte da escrita - Ray Bradbury", que na verdade é de ensaios, apesar do título. Outro livro que quero ler ainda este mês é "O que eu falo quando falo sobre corrida - Haruki Murakami", que também é um ensaio.

É o que me ocorre em mente no momento.

Obrigado pelo comentário.




sobota 13/12/2012

Ficando longe do fato de já estar meio que longe de tudo, David Foster Wallace
Desvincular a experiência pós-moderna da narrativa de David Foster Wallace (em algum estágio da sua obra, pelo menos) parece impossível. Ler alguns dos contos de Brief interviews with hideous men (lançado no Brasil pela Companhia das Letras; me refiro ao original neste texto porque só tive acesso a ele) é missão de especialista: Datum centurio por exemplo, é praticamente impenetrável.

Mas, após a leitura de um artigo do professor Caetano Galindo¹ (especialista na obra de DFW), podemos dizer que Brief interviews... é um momento de transição na obra do escritor americano. Uma transição da experiência puramente pós-moderna de “narratividade” (que redundou nas suas produções iniciais) e a fase final do trabalho de Wallace, que remete, segundo Galindo, a uma negação de um sistema irônico inerente à cultura norteamericana no final do século XX.

Esse sistema é para Wallace (de acordo com Galindo) uma postura ética que limita as possibilidades da escrita de ficção assim como as suas próprias contestações. Simplificando, é uma luta contra esse conformismo, contra essa aceitação passiva de fatores culturais que vai, enfim, “mover o futuro projeto ficcional de Wallace”.

No artigo, Galindo reúne e faz uma reflexão sobre as próprias reflexões de Wallace em um ensaio entitulado E unibus pluram, que por alguma razão ficou fora de Ficando longe do fato de já estar meio que longe de tudo (Companhia das Letras, 2012, trad.: Daniel Galera e Daniel Pellizzari). Naquele ensaio, Wallace fala da influência da TV no imaginário cultural norteamericano, especialmente do fator irônico autoconsciente que a TV impõe, fator também exercitado pela ficção escrita. Segundo Galindo,

“E o que David Foster Wallace parece ter vontade de "reabilitar" é precisamente uma literatura triste, emocional, sincera em sua relação ficcional com o leitor. Evitando os cutucões do cotovelo do ironista e as artimanhas dos narradores indignos de confiança, especialmente dedicados a tentar passar a perna nesse leitor. Urn leitor que tem como principal finalidade se juntar ao sorriso acre do autor que de tudo descrê e que apenas reafirma esse fato.”

Continue lendo (copie e cole o link): http://bibliotecavertical.blogspot.com.br/2012/12/ficando-longe-do-fato-de-ja-estar-meio.html
comentários(0)comente



Angelo 05/01/2013

Excelentes ensaios de David Foster Wallace
Este livro reúne uma série de ensaios escritos pelo escritor norte-americano David Foster Wallace. O primeiro deles, que dá título ao livro, envolve a cobertura de uma feira agrícola no estado de Illinois, a qual termina por ser uma descrição crítica de parte importante da sociedade norte-americana. Já o segundo ensaio, o meu preferido do livro, aborda um cruzeiro marítimo pelo Caribe para o qual David Foster Wallace foi mandado e o qual ele define como uma atividade supostamente divertida da qual ele nunca mais participará. O terceiro ensaio é a transcrição de uma pequena palestra por ele proferida a respeito de Kafka, da qual extraí esta pequena pérola: "a jornada interminável e impossível rumo a nosso lar é, na verdade, o nosso lar". Pense na Lagosta, o quarto ensaio, contém as suas reflexões sobre a eticidade de ferver este crustáceo vivo para nosso exclusivo deleite gastronômico. O quinto texto, Isto é Água, é a reprodução de seu já famoso discurso como paraninfo, o qual pode ser encontrado em vários sítios da internet e em vídeos do youtube. Por fim, no último ensaio, o autor traça um paralelo entre a experiência de assistir a partidas de tênis de Federer e o fenômeno religioso.

Em resumo, o texto de David Foster Wallace é fluido, repleto de observações instigantes, profundas e que são, a exemplo do próprio Kafka objeto de um dos ensaios, ao mesmo tempo cômicas e trágicas. A minha impressão de que este é um grande livro que merece sinceras recomendações pode ser melhor avaliada sabendo-se não ser o ensaio um dos meus gêneros literários favoritos.

A experiência da leitura só não foi melhor em razão das notas de rodapé e do Kindle. É sabido que David Foster Wallace usa notas de rodapé em grande volume e que elas são parte importante de seus textos. Ocorre, contudo, que ler notas de rodapé não é das coisas mais fáceis quando se está com o Kindle. É necessário usar os botões direcionais até o ponto do texto em que está a nota e apertar o botão central por duas vezes para ser direcionado ao final do capítulo. Após ler a nota de rodapé, deve-se apertar o botão de retorno para voltar ao texto. Como a minha paciência rapidamente se esgotou com esse vai-vém, terminei consultando apenas as notas que, por instinto, achava que seriam mais interessantes.

Ao final, saio com vontade de ler Infinite Jest e com um grande dilema: compro um exemplar físico, com todos os problemas de ler um livro com essa extensão e esse peso, ou compro o ebook e sofro com a leitura de grande número das notas de rodapé?
comentários(0)comente



KenEdy 28/01/2013

Recomendado
Escritor ímpar, um intelectual "pop", crítico mordaz da sociedade contemporânea; sarcástico mas tolerante com os indivíduos comuns. Neste livro ele explora detalhes de eventos para os quais ele foi pago para escrever por revistas renomadas como Harper's, Gourmet e New York Times. Interessante o uso massivo das notas de rodapé. Agora vamos esperar pela tradução de Infinite Jest, sua obra prima.
comentários(0)comente



CooltureNews 03/03/2013

Publicada em www.CooltureNews.com.br
David Foster Wallace foi o “garoto prodígio” da literatura norte-americana das duas últimas décadas. Graduado em letras e filosofia, ele soube usar muito bem as palavras em qualquer texto que escrevesse. Com seu livro Infinte Jest, ele conquistou os Estados Unidos e toda a crítica. Ele faleceu em 2008, deixando poucos livros publicados, mas vários artigos de revista impressos.

No ano passado a editora Companhia das Letras lançou no Brasil mais uma obra de David Foster Wallace, Ficando Longe do Fato de já Estar meio que Longe de Tudo. É um livro de ensaios, artigos publicados na revista Harper’s, uma revista de literatura, política e cultura(não confundam com a Haarper’s Bazar, a revista de moda). No livro não encontramos os artigos publicados de David, mas todo o material escrito pelo autor para fazer cada matéria. Todas as anotações, comentários, informações interessantes (e as vezes desnecessárias) estão contidas no livro.

O resultado é um conjunto de ensaios onde podemos não só conhecer o que David Foster Wallace pensava, mas como funcionava parte do seu processo criativo. Quem é jornalista sabe que seu caderninho de notas (ou gravador, depende da matéria a ser feita) é sua vida. Tudo que vê anota e somente depois, com tempo, irá rever tudo que escreveu e falou e separar o que é importante e como escreverá sua matéria.

Em cada ensaio encontramos diversas informações sobre cada artigo, o que o autor viu, pensou e fez, mas a questão mais interessante está no texto em si. O autor usa da ironia em boa parte do texto, fazendo com que a leitura se torne bem engraçada, ao mesmo tempo que sabe ser profundo com detalhes muitas vezes ignorados pelas pessoas no cotidiano. As informações descritas por David Foster Wallace sempre vêm com comentários, pensamentos que teve no momento de cada situação que viveu.

Devo advertir que apesar do texto bem escrito e divertido em alguns momentos, acredito que nem todo leitor poderá gostar. Estamos falando aqui de ensaios, textos sobre situações ou eventos e o pensamento do autor, não uma história emocionante ou um romance onde os personagens são detalhados e passamos a amar. Mas para quem gosta de um texto bem escrito, este é uma obra a ser considerada.
comentários(0)comente



Julyana. 16/03/2013

This is water! ♥
comentários(0)comente



Marc 22/03/2013

Talvez, com sorte, o nome de David Foster Wallace ainda seja lembrado por muito tempo. Esse é meu segundo livro dele e continuo interessado em ler o lendário “Infinite Jest”, que muitos afirmam ser um dos grandes livros dos últimos anos. Essa coletânea de ensaios pode servir para uma primeira aproximação tão bem quanto Breves Entrevistas... o que quer dizer que se o critério do editor ao selecionar os textos foi apresentar um autor mais digerível, então falhou completamente.

Confesso que não consigo enxergar um motivo maior para o culto a DFW que não seja justamente essa aura pop que se formou em torno dele, justamente com seu suicídio. Porque não é um autor que tenha feito concessões. Seu humor bizarro e autocríticas soam muitas vezes como um anúncio velado de um potencial suicida, o que olhando retrospectivamente, acaba sendo um pouco Jim Morrison. Quem sabe um dia vejamos o pessoal andar por aí com camisetas com suas fotos e frases escritas em itálico, como acontece com Morrison e tantos outros ícones pop. E sei que isso parece negar o primeiro parágrafo, afinal tenho profundo interesse e boa vontade com o autor, mas eu gostaria que os mesmos divulgadores e entusiastas de seus textos não fossem o mesmo tipo de gente que anda com essas camisetas, como se vestir a palavra nos fizesse imediatamente diferentes daqueles que queremos nos destacar... Mas essas são nossas pequenas contradições cotidianas.

Enfim, o que posso dizer é que DFW tinha grandes momentos, seguidos de outros não tão brilhantes assim. A meu ver, a despeito de toda a genialidade instantaneamente atribuída a sua figura graças, novamente, a “Infinite Jest”, era um escritor em formação. E não falo isso com despeito, sendo blasé; mas pode-se notar que muitas vezes lhe faltava algo, ele não sabia se distinguir de tantos outros que não passam de escritores comuns e que encontramos dúzias e mais dúzias, com temas e tendências as mais variadas possíveis. Desse modo é um livro irregular e que cansa rapidamente, precisando de uma certa força de vontade para prosseguir. Não é possível perceber a criatividade do autor ao trabalhar formas inovadoras, nem acrescentar novos pontos de vista a temas já conhecidos da literatura; aqui a veia jornalística do autor se mostrou bastante comportada em relação ao escritor que ele podia ser em certos momentos.

Mas há grandes momentos até mesmo no jornalista DFW. E, a bem da verdade, o livro não é apenas de relatos jornalísticos (engraçado como o jornalista aqui era sempre um turista, o que pode levar a uma discussão interessante se compararmos essa visão do jornalista isento com um Hunter Thompson, por exemplo). Aliás, as melhores partes do livro não são jornalismo. O que me leva a formular a “teoria” de que o autor tinha uma enorme dificuldade em escrever textos onde poderia visualizar o leitor (no caso a empresa que o contratara para escrever a reportagem) e se sentia mais à vontade quando podia simplesmente encarar o papel sem ter que corresponder a nenhuma expectativa. Tomo essa liberdade, fazendo justamente o tipo de observação que costumo censurar na interpretação de literatura: relacionar o texto à pessoa real do escritor, mas faço isso com a desculpa de que muitas vezes nesses relatos o próprio autor reconhece a dificuldade de corresponder às expectativas. Ainda mais porque corresponder a elas seria até um contrassenso a seu modo de pensar. Como parte de seu método de trabalhar o leitor, preferia que seus textos fossem quase sempre inconclusivos, o que faz com que permaneçam na cabeça do leitor que precisa finalizar sozinho o que o autor deixa em aberto. Mas não faz isso porque não sabia o que dizer, pelo contrário.

Gosto de pensar que essa “inconclusão” é uma resposta direta ao meio de vida que todos nós conhecemos (porque praticamos irrefletidamente, ou porque conhecemos alguém que pratica) e que consiste em ter certeza sobre todas as coisas e imaginar que dois segundos de pensamento sobre um tema qualquer nos autoriza a fazer com que os outros sejam obrigados a engolir goela abaixo nosso senso comum. Provavelmente DFW nem viu o quanto esse tipo de coisa tomou força com a ascensão do facebook e aquelas pessoas que perdem boa parte de seus dias (e da vida, um dia elas vão descobrir tarde demais) procurando frases sobre os mais diversos temas, que de modo geral nunca vão mais longe do que amor, amizade, “política”, religião, etc, e que ficam postando essas frases fazendo com que seus amigos sejam alertados e tenham que apreciar mais uma pérola de sabedoria... Pois bem, essa é uma versão mais moderna de senso comum, mas ainda é o mesmo senso comum de sempre, só mudou de roupa; e era contra essas certezas absolutas que DFW escrevia quase sempre. Parece que o modo que escolheu para contestar isso acabava gerando muitos mal-entendidos e serviu, infelizmente, para que muitas das pessoas que deveriam aproveitar o aviso e rever seu modo de ser acabassem transformando o autor numa versão de si mesmas... Mas tenho certeza que DFW tinha consciência desse risco e decidiu enfrentá-lo.

Se pensarmos de um modo um pouco mais abrangente, no entanto, era contra essa adolescência infinita que ele escrevia. O discurso sobre Kafka evidencia isso muito bem. A impossibilidade de fazer com que pessoas que só querem seguir na linha do prazer e da falta de responsabilidade, enxergarem a sutileza de um autor que deveria ser essencial. Uma sociedade cada vez mais anestesiada pelo conceito de entretenimento, que odeia assuntos sérios, que procura sempre o riso fácil que lhe mais um segundo de amnésia da vida. Não à toa, quando vai falar sobre um cruzeiro tropical, se assusta com a quantidade de pessoas idosas e de meia idade, porque imaginava que a certa altura finalmente decidiriam crescer e se furtariam aos prazeres irreais e infantis mesmo que esse tipo de passeio pode proporcionar. Se espanta como todos se revigoram ao serem servidos por pessoas sem rosto, comerem a melhor comida possível e não ter que se preocupar com a limpeza (nem com o preparo, claro), não arrumar a cama nem fazer a faxina e tantos outros mimos (a palavra que usa é essa, intencionalmente, para ressaltar a qualidade infantilizante do passeio). E a sensação que tenho enquanto o leio é de que precisamos reinserir o pensamento na vida cotidiana, porque essa busca irrefletida pelo prazer sem preocupações só está nos tornando mais idiotas. Alguém, algum dia disse que pensar era chato, que o melhor é ser espontâneo e deixar as coisas acontecerem, mas essa pessoa só estava procurando uma desculpa para fugir da vida, porque estava apavorada com ela. Como esse mesmo texto menciona, isso não significa que a alegria foi excluída, mas que a própria vida tem mais significado do que esse riso programado, administrado.

E o último texto relevante nesse sentido é “Isto é água”. O qual vale pouco lembrar porque todo mundo que já conhece DFW também conhece este texto, mas devo mencionar que se conecta diretamente ao que foi dito acima. Porque se cada um de nós pode escolher viver no “automático”, sendo alimentado pelo senso comum, há pouca esperança de que as coisas possam melhorar (chama a atenção o temor com que insiste em se desvencilhar de um ensinamento moral durante o discurso, mas é isso no fim das contas, porque está em jogo a convivência entre pessoas, afinal), e todos os dias podem ser terríveis e sufocantes, sem que saibamos notar porque isso está acontecendo. Já o texto sobre tênis não é tão irritante quanto julguei que seria quando vi aquele jargão todo despejado na primeira página. Vale lembrar que mesmo em algo sem aparente conexão com seu modo de pensar a vida podemos achar alguma coisa: torna a experiência de assistir Roger Federer compreensível para quem não admira esse esporte, ou seja, não é um texto egoísta, feito para celebrar apenas as pessoas do clube de admiradores.
comentários(0)comente



Carina 13/09/2013

Ensaios sarcásticos e alguma filosofia
A coletânea começa com um ensaio longo e altamente mordaz sobre uma feira agropecuária no interior dos Estados Unidos. Por mais que o foco do escritor pareça ser atacar cada elemento que compõe o cenário, o pessimismo não impede a diversão do leitor. As ironias no texto são muito bem construídas, por meio de um discurso que sequer passa perto do politicamente correto. Para quem mora em cidades do interior, não há como não identificar alguns estereótipos delineados por Wallace - as filas enormes em busca de comida, os concursos de Miss Morango (ou coisa que o valha), as pessoas suadas e carregadas de compras, as apresentações de grupos principiantes de dança country...

No segundo ensaio, porém, começamos a perceber algo além do sarcasmo de David Foster - suas reflexões, ainda que permeadas de ironias, são profundas. Ao analisar a tripulação viajante em um cruzeiro de luxo, por exemplo, o autor questiona se a vontade de registrar cada momento com câmeras, de participar de todas as atividades oferecidas pelo navio, de comprar lembranças inúteis com os nativos não são atitudes que revelam o desespero de quem não quer passar a vida em branco, uma espécie de autoafirmação diante da morte:

"Algumas semanas antes (…), um rapaz de dezessete anos se atirou do convés superior de um meganavio (…), um suicídio. Segundo a versão noticiada, foi um caso adolescente de amor frustrado, um romance a bordo que terminou mal etc. Creio que em parte foi outra coisa (…). Existe algo de insuportavelmente triste num Cruzeiro de Luxo comercial. Como a maioria das coisas insuportavelmente tristes, parece incrivelmente esquivo e complexo em suas causas e simples em seu efeito: a bordo do Nadir – especialmente à noite, quando cessam as diversões organizadas, as gentilezas e o barulho animado no navio – eu senti desespero. Desespero é uma palavra que foi desgastada até se tornar banal, mas é uma palavra séria e estou usando-a com seriedade. Para mim, ela denota uma mistura simples – um estranho anseio pela morte combinado com um sentimento esmagador da minha pequenez e da minha futilidade, que se apresenta como um medo da morte. Talvez seja algo próximo daquilo que as pessoas chamam de pavor ou angústia. Mas é bem outra coisa. É como desejar morrer para escapar da sensação insuportável de compreender que sou pequeno e fraco e egoísta e que sem a menor dúvida vou morrer. É querer se atirar do navio (…). Eu, que antes desse cruzeiro nunca estivera no oceano, sempre associei o oceano com pavor e morte."

O discurso de paraninfo "Isto é água" é absolutamente antológico. Indo na contracorrente do clima de euforia da formatura, o escritor alerta seus alunos para as pequenas tristezas que os esperam na vida adulta. Segundo Wallace, é preciso força para aguentar as decepções do cotidiano sem dar um tiro na cabeça (um triste discurso, se lembrarmos o fato do escritor ter se suicidado alguns anos depois).

"Pense na lagosta" é um ensaio sobre nossa necessidade de não pensar na carne enquanto proveniente de um ser vivo. O discurso da falta de ética no tratamento com os animais é especialmente tocante por vir de alguém que não milita pela causa vegetariana, mas que consegue enxergar as contradições de seu próprio discurso.

Por fim, o texto sobre Federer é voltado para quem entende das técnicas do jogo de tênis, mas não deixa de ser interessante.



Isto é água


Dois peixinhos estão nadando juntos e cruzam com um peixe mais velho, nadando em sentido contrário. Ele os cumprimenta e diz:

- Bom dia, meninos. Como está a água?

Os dois peixinhos nadam mais um pouco, até que um deles olha para o outro e pergunta:

- Água? Que diabo é isso?

Não se preocupem, não pretendo me apresentar a vocês como o peixe mais velho e sábio que explica o que é água ao peixe mais novo. Não sou um peixe velho e sábio. O ponto central da história dos peixes é que a realidade mais óbvia, ubíqua e vital costuma ser a mais difícil de ser reconhecida. Enunciada dessa -forma, a frase soa como uma platitude - masé fato que, nas trincheiras do dia-a-dia da existência adulta, lugares comuns banais podem adquirir uma importância de vida ou morte.

Boa parte das certezas que carrego comigo acabam se revelando totalmente equivocadas e ilusórias. Vou dar como exemplo uma de minhas convicções automáticas: tudo à minha volta respalda a crença profunda de que eu sou o centro absoluto do universo, de que sou a pessoa mais real, mais vital e essencial a viver hoje. Raramente mencionamos esse egocentrismo natural e básico, pois parece socialmente repulsivo, mas no fundo ele é familiar a todos nós. Ele faz parte de nossa configuração padrão, vem impresso em nossos circuitos ao nascermos.

Querem ver? Todas as experiências pelas quais vocês passaram tiveram, sempre, um ponto central absoluto: vocês mesmos. O mundo que se apresenta para ser experimentado está diante de vocês, ou atrás, à esquerda ou à direita, na sua tevê, no seu monitor, ou onde for. Os pensamentos e sentimentos dos outros precisam achar um caminho para serem captados, enquanto o que vocês sentem e pensam é imediato, urgente, real. Não pensem que estou me preparando para fazer um sermão sobre compaixão, desprendimento ou outras "virtudes". Essa não é uma questão de virtude - trata-se de optar por tentar alterar minha configuração padrão original, impressa nos meus circuitos. Significa optar por me libertar desse egocentrismo profundo e literal que me faz ver e interpretar absolutamente tudo pelas lentes do meu ser.

Num ambiente de excelência acadêmica, cabe a pergunta: quanto do esforço em adequar a nossa configuração padrão exige de sabedoria ou de intelecto? A pergunta é capciosa. O risco maior de uma formação acadêmica - pelo menos no meu caso - é que ela reforça a tendência a intelectualizar demais as questões, a se perder em argumentos abstratos, em vez de simplesmente prestar atenção ao que está ocorrendo bem na minha frente.

Estou certo de que vocês já perceberam o quanto é difícil permanecer alerta e atento, em vez de hipnotizado pelo constante monólogo que travamos em nossas cabeças. Só vinte anos depois da minha formatura vim a entender que o surrado clichê de "ensinar os alunos como pensar" é, na verdade, uma simplificação de uma idéia bem mais profunda e séria. "Aprender a pensar" significa aprender como exercer algum controle sobre como e o que cada um pensa. Significa ter plena consciência do que escolher como alvo de atenção e pensamento. Se vocês não conseguirem fazer esse tipo de escolha na vida adulta, estarão totalmente à deriva.

Lembrem o velho clichê: "A mente é um excelente servo, mas um senhorio terrível." Como tantos clichês, também esse soa inconvincente e sem graça. Mas ele expressa uma grande e terrível verdade. Não é coincidência que adultos que se suicidam com armas de fogo quase sempre o façam com um tiro na cabeça. Só que, no fundo, a maioria desses suicidas já estava morta muito antes de apertar o gatilho. Acredito que a essência de uma educação na área de humanas, eliminadas todas as bobagens e patacoadas que vêm junto, deveria contemplar o seguinte ensinamento: como percorrer uma confortável, próspera e respeitável vida adulta sem já estar morto, inconsciente, escravizado pela nossa configuração padrão - a de sermos singularmente, completamente, imperialmente sós.

Isso também parece outra hipérbole, mais uma abstração oca. Sejamos concretos então. O fato cru é que vocês, graduandos, ainda não têm a mais vaga idéia do significado real do que seja viver um dia após o outro. Existem grandes nacos da vida adulta sobre os quais ninguém fala em discursos de formatura. Um desses nacos envolve tédio, rotina e frustração mesquinha.

Vou dar um exemplo prosaico imaginando um dia qualquer do futuro. Você acordou de manhã, foi para seu prestigiado emprego, suou a camisa por nove ou dez horas e, ao final do dia, está cansado, estressado, e tudo que deseja é chegar em casa, comer um bom prato de comida, talvez relaxar por umas horas, e depois ir para cama, porque terá de acordar cedo e fazer tudo de novo. Mas aí lembra que não tem comida na geladeira. Você não teve tempo de fazer compras naquela semana, e agora precisa entrar no carro e ir ao supermercado. Nesse final de dia, o trânsito está uma lástima.

Quando você finalmente chega lá, o supermercado está lotado, horrivelmente iluminado com lâmpadas fluorescentes e impregnado de uma música ambiente de matar. É o último lugar do mundo onde você gostaria de estar, mas não dá para entrar e sair rapidinho: é preciso percorrer todos aqueles corredores superiluminados para encontrar o que procura, e manobrar seu carrinho de compras de rodinhas emperradas entre todas aquelas outras pessoas cansadas e apressadas com seus próprios carrinhos de compras. E, claro, há também aqueles idosos que não saem da frente, e as pessoas desnorteadas, e os adolescentes hiperativos que bloqueiam o corredor, e você tem que ranger os dentes, tentar ser educado, e pedir licença para que o deixem passar. Por fim, com todos os suprimentos no carrinho, percebe que, como não há caixas suficientes funcionando, a fila é imensa, o que é absurdo e irritante, mas você não pode descarregar toda a fúria na pobre da caixa que está à beira de um ataque de nervos.

De qualquer modo, você acaba chegando à caixa, paga por sua comida e espera até que o cheque ou o cartão seja autenticado pela máquina, e depois ouve um "boa noite, volte sempre" numa voz que tem o som absoluto da morte. Na volta para casa, o trânsito está lento, pesado etc. e tal.

É num momento corriqueiro e desprezível como esse que emerge a questão fundamental da escolha. O engarrafamento, os corredores lotados e as longas filas no supermercado me dão tempo de pensar. Se eu não tomar uma decisão consciente sobre como pensar a situação, ficarei irritado cada vez que for comprar comida, porque minha configuração padrão me leva a pensar que situações assim dizem respeito a mim, a minha fome, minha fadiga, meu desejo de chegar logo em casa. Parecerá sempre que as outras pessoas não passam de estorvos. E quem são elas, aliás? Quão repulsiva é a maioria, quão bovinas, e inexpressivas e desumanas parecem ser as da fila da caixa, quão enervantes e rudes as que falam alto nos celulares.

Também posso passar o tempo no congestionamento zangado e indignado com todas essas vans, e utilitários e caminhões enormes e estúpidos, bloqueando as pistas, queimando seus imensos tanques de gasolina, egoístas e perdulários. Posso me aborrecer com os adesivos patrióticos ou religiosos, que sempre parecem estar nos automóveis mais potentes, dirigidos pelos motoristas mais feios, desatenciosos e agressivos, que costumam falar no celular enquanto fecham os outros, só para avançar uns 20 metros idiotas no engarrafamento. Ou posso me deter sobre como os filhos dos nossos filhos nos desprezarão por desperdiçarmos todo o combustível do futuro, e provavelmente estragarmos o clima, e quão mal-acostumados e estúpidos e repugnantes todos nós somos, e como tudo isso é simplesmente pavoroso etc. e tal.

Se opto conscientemente por seguir essa linha de pensamento, ótimo, muitos de nós somos assim - só que pensar dessa maneira tende a ser tão automático que sequer precisa ser uma opção. Ela deriva da minha configuração padrão.

Mas existem outras formas de pensar. Posso, por exemplo, me forçar a aceitar a possibilidade de que os outros na fila do supermercado estão tão entediados e frustrados quanto eu, e, no cômputo geral, algumas dessas pessoas provavelmente têm vidas bem mais difíceis, tediosas ou dolorosas do que eu.

Fazer isso é difícil, requer força de vontade e empenho mental. Se vocês forem como eu, alguns dias não conseguirão fazê-lo, ou simplesmente não estarão a fim. Mas, na maioria dos dias, se estiverem atentos o bastante para escolher, poderão preferir olhar melhor para essa mulher gorducha, inexpressiva e estressada que acabou de berrar com a filhinha na fila da caixa. Talvez ela não seja habitualmente assim. Talvez ela tenha passado as três últimas noites em claro, segurando a mão do marido que está morrendo. Ou talvez essa mulher seja a funcionária mal remunerada do Departamento de Trânsito que, ontem mesmo, por meio de um pequeno gesto de bondade burocrática, ajudou algum conhecido seu a resolver um problema insolúvel de documentação.

Claro que nada disso é provável, mas tampouco é impossível. Tudo depende do que vocês queiram levar em conta. Se estiverem automaticamente convictos de conhecerem toda a realidade, vocês, assim como eu, não levarão em conta possibilidades que não sejam inúteis e irritantes. Mas, se vocês aprenderam como pensar, saberão que têm outras opções. Está ao alcance de vocês vivenciarem uma situação "inferno do consumidor" não apenas como significativa, mas como iluminada pela mesma força que acendeu as estrelas.

Relevem o tom aparentemente místico. A única coisa verdadeira, com V maiúsculo, é que vocês precisam decidir conscientemente o que, na vida, tem significado e o que não tem.

Na trincheira do dia-a-dia, não há lugar para o ateísmo. Não existe algo como "não venerar". Todo mundo venera. A única opção que temos é decidir o que venerar. E o motivo para escolhermos algum tipo de Deus ou ente espiritual para venerar - seja Jesus Cristo, Alá ou Jeová, ou algum conjunto inviolável de princípios éticos - é que todo outro objeto de veneração te engolirá vivo. Quem venerar o dinheiro e extrair dos bens materiais o sentido de sua vida nunca achará que tem o suficiente. Aquele que venerar seu próprio corpo e beleza, e o fato de ser sexy, sempre se sentirá feio - e quando o tempo e a idade começarem a se manifestar, morrerá um milhão de mortes antes de ser efetivamente enterrado.

No fundo, sabemos de tudo isso, que está no coração de mitos, provérbios, clichês, epigramas e parábolas. Ao venerar o poder, você se sentirá fraco e amedrontado, e precisará de ainda mais poder sobre os outros para afastar o medo. Venerando o intelecto, sendo visto como inteligente, acabará se sentindo burro, um farsante na iminência de ser desmascarado. E assim por diante.

O insidioso dessas formas de veneração não está em serem pecaminosas - e sim em serem inconscientes. São o tipo de veneração em direção à qual você vai se acomodando quase que por gravidade, dia após dia. Você se torna mais seletivo em relação ao que quer ver, ao que valorizar, sem ter plena consciência de que está fazendo uma escolha.

O mundo jamais o desencorajará de operar na configuração padrão, porque o mundo dos homens, do dinheiro e do poder segue sua marcha alimentado pelo medo, pelo desprezo e pela veneração que cada um faz de si mesmo. A nossa cultura consegue canalizar essas forças de modo a produzir riqueza, conforto e liberdade pessoal. Ela nos dá a liberdade de sermos senhores de minúsculos reinados individuais, do tamanho de nossas caveiras, onde reinamos sozinhos.

Esse tipo de liberdade tem méritos. Mas existem outros tipos de liberdade. Sobre a liberdade mais preciosa, vocês pouco ouvirão no grande mundo adulto movido a sucesso e exibicionismo. A liberdade verdadeira envolve atenção, consciência, disciplina, esforço e capacidade de efetivamente se importar com os outros - no cotidiano, de forma trivial, talvez medíocre, e certamente pouco excitante. Essa é a liberdade real. A alternativa é a torturante sensação de ter tido e perdido alguma coisa infinita.

Pensem de tudo isso o que quiserem. Mas não descartem o que ouviram como um sermão cheio de certezas. Nada disso envolve moralidade, religião ou dogma. Nem questões grandiosas sobre a vida depois da morte. A verdade com V maiúsculo diz respeito à vida antes da morte. Diz respeito a chegar aos 30 anos, ou talvez aos 50, sem querer dar um tiro na própria cabeça. Diz respeito à consciência - consciência de que o real e o essencial estão escondidos na obviedade ao nosso redor - daquilo que devemos lembrar, repetindo sempre: "Isto é água, isto é água."

É extremamente difícil lembrar disso, e permanecer consciente e vivo, um dia depois do outro.
***
Agora tenho 33 anos de idade e sinto que muito tempo passou e vai passando mais rápido a cada dia. Dia após dia preciso fazer todo tipo de escolhas sobre aquilo que é bom, importante e divertido, e depois preciso conviver com o confisco de todas as outras opções que essas escolhas eliminam. E começo a perceber que à medida que o tempo ganhar ímpeto minhas escolhas vão se dar num campo mais estreito e as eliminações serão multiplicadas em ritmo exponencial até eu chegar a algum ponto de algum ramo qualquer dentre as suntuosas ramificações complexas da vida onde estarei completamente trancado e cravado num único caminho e o tempo passará voando por mim em fases de estase, atrofia e decadência até eu cair pela terceira vez, toda a luta em vão, afogado pelo tempo. É apavorante. Mas como serei trancado pelas minhas próprias escolhas, parece inevitável — se desejo ser adulto de algum jeito, preciso fazer escolhas e lamentar eliminações e tentar viver com isso.
comentários(0)comente



jota 20/09/2013

A América de DFW
Segundo Daniel Galera, que fez a tradução (juntamente com Daniel Pellizzari) também a seleção dos textos e o prefácio do livro de DFW, este é talvez o caminho mais fácil para se chegar ao complexo escritor americano.

Muita gente, como eu, começou com outro livro, considerado pelo próprio Galera como mais difícil ou complexo - Breves Entrevistas com Homens Hediondos -, cujo lançamento aqui se deu primeiro que Ficando Longe... Ele acredita que este volume (de não ficção) vai permitir ao leitor brasileiro conhecer melhor DFW e também sua ficção.

Depois do longo prefácio de Galera (muito útil para entender a escrita do autor e localizar algumas coisas), vem o ensaio que dá nome à obra, “Ficando longe do fato de já estar meio que longe de tudo”, que tem 80 páginas e é sobre a Feira Agropecuária em Illinois, descrita por ele nos, digamos, mínimos detalhes (incluindo aí os banheiros químicos que os visitantes utilizam e seu odor característico).

Alguns dados são engraçados, outros são informativos e um tanto deles são aborrecidos mesmo (semelhantes a várias passagens de Breves Entrevistas Sobre Homens Hediondos), mas esse era o estilo de Wallace fazer o quê? O texto, feito para uma revista, é de 1993, embora pareça bastante atual o quadro (muito pouco lisonjeiro) que DFW pinta sobre seu país e seus compatriotas. É quase possível sentir certos odores pouco nobres nessa Feira ou o gosto enjoativo (e engordurado) de diversas comidas e guloseimas consumidas ali...

No segundo ensaio, “Uma coisa supostamente divertida que eu nunca mais vou fazer”, de 1995, que é mais longo ainda que o primeiro - são 125 páginas; sozinho praticamente daria um livro -, pasmem, há 137 notas de rodapé e, para mim, uma invenção, a nota de rodapé da nota de rodapé, que é a 137ª.

É por isso que no prefácio Daniel Galera fala que os livros de DFW têm “notas de rodapé em cascata”, “notas de rodapé em profusão” e "notas de rodapé por vezes quilométricas”. Quem leu Breves Entrevistas com Homens Hediondos deve se lembrar das notas de rodapé monstruosas do sexto conto, "A pessoa deprimida", que às vezes eram maiores do que o texto da página em que apareciam e que, pelo tamanho exagerado, se estendiam por várias páginas. Tem gente que acha DFW um escritor genial por conta dessas coisas (e de outras).

Bem, mas nesse segundo ensaio deste livro ele está a bordo de um transatlântico de luxo, o Nadir, para um, obviamente, cruzeiro de luxo - a coisa supostamente divertida que ele nunca mais vai fazer; são 7 noites a bordo, viajando pelo Caribe - e depois de tudo o que ele conta a respeito da viagem, da tripulação, dos passageiros, da comida, das acomodações, das atividades de recreação, etc., etc., etc., nem é preciso viajar mais, apenas ficar curtindo o cruzeiro em casa mesmo, sentado, com o livro de DFW na mão: nada escapa de seus olhos e de sua mente; nesse sentido ele é um escritor genial. E também um tanto cansativo para os mortais comuns, que podem ficar enjoados com tanta informação (útil?).

“Alguns comentários sobre a graça de Kafka dos quais provavelmente não se omitiu o bastante”, de 1999, é o terceiro ensaio (com título longo mas em quantidade de páginas bastante curto comparado aos demais textos), no qual DFW afirma que seus alunos universitários infelizmente não conseguem perceber que Kafka é um autor engraçado. Ou melhor, espirituoso.

O FLM, ou Festival da Lagosta do Maine, tratado em “Pense na lagosta”, quarto ensaio, texto de tamanho razoável (mas com suas indefectíveis notas de rodapé), não apenas examina o que se passa durante o famoso festival gastronômico americano de verão propriamente dito, como coloca a questão ampla do sofrimento dos animais no processo de transformação em comida. Todos sabem que o melhor (não do ponto de vista da lagosta, é claro) meio de cozinhar esse petisco marinho é colocando os bichos vivos em água fervente por cerca de alguns minutos (conforme a quantidade a ser cozida). Comida e ética (alimentar) muito bem servidos por DFW aqui. Escrito para a revista Gourmet, em 2004.

O Discurso de Paraninfo, Kenyon College, 21 de maio de 2005, está no quinto ensaio, “Isto é água”, em que, no meio de algumas anedotas e outras tantas reflexões, DFW também diz uma porção de coisas sérias aos formandos. É um dos melhores textos da coletânea.

O sexto e último ensaio “Federer como experiência religiosa” é de 2006 (ele trata da partida entre Federer e Nadal na final de Wimbledon nesse ano) e tem a ver com a paixão de DFW pelo tênis, especialmente sua adoração pelo tenista suíço. Mas que, para quem não aprecia o esporte ou acha que ver uma partida entre grandes tenistas pela televisão já é um saco, imagine então ler sobre isso. Portanto, para mim, este é o pior artigo do livro, mas pode ser o melhor para muita gente.

Escrevendo sobre um cruzeiro marítimo, um festival de lagosta, uma feira agropecuária, uma partida de tênis ou outra coisa – imagino se, por exemplo, DFW pudesse ter escrito sobre a festa do Oscar -, não tenho dúvida de que seu texto seria sempre parecido, identificável por suas virtudes de escritor criativo e antenado e também por seus defeitos - sendo um deles, é claro, o uso exagerado de suas exageradas notas de rodapé.

Mesmo assim achei este livro mais digerível do que Breves Entrevistas Com Homens Hediondos e concordo com Galera de que funciona melhor como uma introdução aos textos e à escrita de DFW. E principalmente à América do escritor.

Lido entre 04 e 20/09/2013.
comentários(0)comente



Ronaldo 05/01/2014

Faltam tradutores
Quantos autores maravilhosos como esse não são trazidos para o Brasil? Um livro escrito em linguagem tão macia que ficasse triste quando acaba, e pior é saber que querendo ler mais do autor, tem de ler no original em inglês!
comentários(0)comente



Leonardo 22/04/2014

Bela porta de entrada para o universo de um gênio
Creio que a primeira vez que vi o nome de David Foster Wallace impresso na capa de um livro foi numa edição de The Pale King. Devo inicialmente ter me interessado pelo título por imaginar que se tratasse de um livro de fantasia medieval, ideia que logo se mostrou equivocada. Provavelmente, ao pesquisar sobre o autor, descobri que ele deixou uma obra-prima – Infinite Jest – e que era aclamado como um dos grandes romancistas americanos das últimas décadas. E que, infelizmente, cometeu suicídio em 2008, o que contribuiu sobremaneira para elevá-lo ao posto de um autor “super cult”.

Deixei-o de lado, afinal, seus livros ainda não haviam sido traduzidos para o português. Enquanto sua obra-prima trata-se de um livro imenso (1104 páginas), The Pale King, um romance inacabado, não me atraía.

Quase dois anos se passaram e vi que a Companhia das Letras lançou uma coletânea de ensaios do escritor americano, esta ora resenhada. Quando fui pesquisar sobre os ensaios, não me animei. Acabei cedendo à curiosidade e pedi o livro por conta da parceria com a editora, mas estava certo de que seria apenas “uma leitura para colocar no meu currículo”. Eu não gostaria do livro. Lembro de ter lido que David Foster Wallace era comparado a James Joyce e mesmo a Thomas Pychon, por conta de sua escrita intrincada e quase inacessível. “Deve ser um pedante, um arrogante”, pensei. O título do livro já não ajudava. Que jogo de palavras mais esnobe este “Ficando longe do fato de já estar meio que longe de tudo”!

Aí lembrei da figura do escritor – sua cara de cantor de banda de rock, seus quase dois metros de altura – e tive certeza: este é um livro que vou me arrastar muito pra ler. Vai ser difícil vencê-lo.

O primeiro ensaio é aquele que dá nome ao livro. David Foster Wallace foi convidado por “uma revista classuda da Costa Leste” a cobrir a Feira Estadual de Illinois, uma daquelas feiras tipicamente do interior americano, onde caipiras competem para ver quem tem a vaca mais enfeitada, a maior abóbora ou quem faz o mais estranho bolo de cenoura. Tudo isso em proporções épicas, claro. Wallace assume desde o início que aquele será um trabalho pobre enquanto jornalismo, mas que mesmo assim ele tentará entregar algo de interessante.

Demorei um pouco a engrenar, mas fui me acostumando ao seu humor fino e às suas frequente autocríticas. Wallace não tem mesmo pena de si, e não usa isto como recurso literário. Adianto aqui que de tudo o que me chamou a atenção nos seus ensaios, foi a sua sinceridade o que me conquistou. Nestes ensaios, você realmente consegue ouvir a voz do autor. Ele fala das suas limitações, das suas fobias (muitas, incluindo uma inédita “semiagorafobia”), das suas neuras. Tudo com muito bom humor.

Sua capacidade de descrever é notável, e muito contribui para que os ensaios sejam uma leitura deliciosa:

“Outro entupidor de artérias: Orelhas de Elefante. Uma Orelha de Elefante é uma extensão de massa frita em óleo do tamanho de uma capa de LP, besuntada com uma camada generosa de manteiga açucarada com canela, uma espécie de torrada de canela do inferno, moldada realmente de fato como uma orelha, surpreendentemente apetitosa, no fim das contas, mas enjoativamente macia, com a textura de uma carne adiposa e de inegáveis proporções elefantinas – ninguém além dos obesos mórbidos faz fila para comprar as Orelhas.”

Descrevendo algumas crianças:

“Os proprietários das vacas são crianças de fazenda, crianças profundamente rurais de municípios nos confins do mundo, tais como Piatt, Moultrie, Vermilion, todos campeões de Feiras Municipais. Estão compenetradas, nervosas, infladas de orgulho. Trajes rurais. Cabelos bem curtos, cor de palha. Elevado número de sardas per capita. São crianças notáveis por um certo tipo de mediocridade rockwelliana clássica dos Estados Unidos, produto de dietas balanceadas, trabalho árduo e sólida educação republicana.”

Claro, o principal neste ensaio e no seguinte – sobre um cruzeiro – é o que ele escolhe nos contar, os detalhes que seu olho crítico não deixa escapar. Na feira, nós o acompanhamos em visitas a porcos, cavalos, ovelhas, no grande espaço de alimentação, com filas quilométricas e, principalmente, nos brinquedos que proporcionam “Experiências de Quase-Morte”, algo completamente incompatível com a sua natureza:

“Para mim é como pagar para se envolver num acidente de carro. Não entendo qual é o sentido; nunca entendi. Não é uma coisa regional ou cultural. Acho que é uma questão de constituição neurológica básica. Acho que o mundo pode ser dividido direitinho entre quem se empolga com a indução controlada do terror e quem não se empolga. Não acho o terror empolgante. Acho aterrorizante. Um dos meus objetivos de vida básicos é submeter meu sistema nervoso à menor quantidade de terror possível.”

O segundo ensaio – Uma coisa supostamente divertida que eu nunca mais vou fazer – é semelhante ao primeiro em sua natureza: trata-se de um relato de mais de 120 páginas de um cruzeiro de luxo de sete noites pelo Caribe, também a pedido de uma revista (só para eu não esquecer, o primeiro ensaio tem 80 páginas e ao final você compreende o porquê do título). Achei o segundo ensaio ainda melhor que o primeiro. É mais divertido e você conhece Wallace bem melhor, porque, como falei anteriormente, ele é muito sincero e transparente. Tenho que comentar que foi aqui que o nó na garganta com que terminei a leitura começou a aparecer. É que fui percebendo que caramba, David Foster Wallace era um cara legal! Muito legal, um cara, como diria alguém alhures, “super do bem”. Não é um gênio metido, enfurnado em seu próprio mundo e que se julga acima dos hábitos desprezíveis do americano médio. Ele realmente critica esses hábitos, mas com muito bom humor, e não se nega até mesmo a participar de concursos ridículos a bordo do navio. Eu lia o ensaio e me perguntava, lamentando: “Por que ele se matou?”

Uma das características marcantes na literatura de Wallace são suas generosas e frequentes notas de rodapé (em alguns casos há notas de rodapé dentro das notas de rodapé), todas, entretanto, necessárias e colocadas de um modo que não amarram a leitura.

“O Capitão Nico109 não venceria nenhuma medalha de oratória com seu inglês, mas fornece um genuíno festival de dados concretos. Ele tem mais ou menos a minha idade e altura, mas é tão bonito que chega a ser ridículo, 110 uma espécie de Paul Auster extremamente malhado e bronzeado.

109 O Nadir tem um Capitão, um Segundo-Capitão e quatro Oficiais-Chefes. O Capitão Nico é um desses Oficiais-Chefes; não sei por que ele é chamado de Capitão Nico.

110 Outra coisa que aprendi neste Cruzeiro de Luxo é que nenhum homem pode ter melhor aparência do que a obtida num uniforme branco de gala de oficial naval. Mulheres de todas as idade e níveis de estrogênio desmaiavam, suspiravam, estremeciam, piscavam, grunhiam e vibravam durante a passagem de um desses oficiais gregos resplandecentes, um fenômeno que, imagino, não ajudava nem um pouco os gregos a serem humildes.”

Este ensaio está repleto de situações impagáveis, como a descrição do próprio Wallace para a sua derrota no xadrez para uma menininha prodígio (ele até que joga razoavelmente bem, no seu próprio julgamento), cuja mãe, sem dúvida, era uma daquelas tiranas do xadrez. Ou a aposta unilateral do professor de pingue-pongue do cruzeiro (de quem ele sempre ganhava), que insistia que após um certo número de vitórias ele (o professor) ganharia o cobiçado boné do Homem-Aranha, acessório sem o qual David Foster Wallace não jogava. Além, é claro, da sua já citada capacidade de descrever as coisas:

“São o tipo de homem que parece estar fumando charutos mesmo quando não está fumando charutos.”

Ou, falando do café:

“E o café do Café Windsurf – que borbulha alegre de torneiras em imensas cafeteiras de aço escovado – o café é simplesmente o tipo de café que faria você se casar com alguém capaz de prepará-lo. Em geral eu tenho um limite firme e neurologicamente imperativo de uma xícara de café, mas o café do Windsurf é tão bom e o trabalho de decifrar as imensas manchas rorschachianas das minhas anotações da Palestra Sobre Navegação é tão exaustivo que nesse dia acabo excedendo o limite, e excedendo muito, o que pode ajudar a explicar porque as horas seguintes deste registro estão meio caleidoscópicas e dispersas”.

Ou falando de mulheres que usam roupas de malhação na academia do navio:

“E nessas máquinas há pessoas usando elastano que me inspiram uma vontade enorme de levar para um cantinho e recomendar da forma mais diplomática e amorosa possível que nunca usem elastano.”

Os dois ensaios acima ocupam mais de metade do livro. Há ainda outros completamente diferentes:

Alguns comentários sobre a graça de Kafka dos quais provavelmente não se omitiu o bastante, no qual ele fala do humor em Kafka a partir de um miniconto seu (este aqui);

Pense na lagosta, no qual Wallace discute a respeito do possível dilema ético de ferver lagostas vivas para satisfazer nosso paladar;

Isto é água, um tocante discurso de paraninfo que realmente me deixou com o nó na garganta em definitivo. Wallace fala sobre tolerância, sobre ser uma pessoa melhor para si e para os outros para ser mais feliz.

“Pois aqui está uma outra verdade. Nas trincheiras cotidianas de uma vida adulta, não existe isso de ateísmo. Não existe isso de não venerar. Todo mundo venera. Nossa única escolha é o que venerar. E se existe uma ótima razão para talvez escolher venerar algum tipo de deus ou coisa espiritual – seja Jesus Cristo ou Alá, YHWH ou uma deusa-mãe wiccan, as Quatro Verdades Nobres ou algum conjunto inviolável de princípios éticos – é que praticamente todas as outras coisas vão devorar vocês vivos. Quem venerar o dinheiro e os bens materiais, quem buscar neles o sentido da vida, nunca terá o suficiente. Nunca terá a sensação de que tem o suficiente. É a verdade. Quem venerar o próprio corpo, beleza e encanto sexual sempre vai se achar feio, e quando o tempo e a idade começarem a deixar marcas morrerá um milhão de mortes antes de finalmente ser enterrado por alguém. De certo modo, todo mundo já sabe disso – está codificado em mitos, provérbios, clichês, máximas, epigramas, parábolas; no esqueleto de toda boa história. O grande truque é conseguir manter a verdade na superfície da consciência em nossas vidas cotidianas. Quem venerar o poder vai se sentir fraco e amedrontado, e precisas de cada vez mais poder para conseguir afastar o medo. Quem venerar o intelecto, ser visto como inteligente, vai acabar se sentindo burro, uma fraude na iminência de ser desmascarada. E por aí vai.”

Por que ele escreveu isso para aqueles alunos? Para que eles pudessem “chegar aos trinta, ou quem sabe aos cinquenta, sem querer dar um tiro na cabeça”.

E ele mesmo fez algo similar ao se enforcar… Não, ele não estava sendo hipócrita. David Foster Wallace viveu vinte anos, segundo seu próprio pai, lutando contra a depressão. Depois de tentar um novo método, caiu na depressão novamente e, ao retornar ao seu antigo medicamento, descobriu que ele não mais surtia efeito, o que deve ter sido desesperador.

O texto final é um brinde para quem gosta de tênis. Descobri que além de gênio e de ser um gigante de cabelos compridos com cara de roqueiro, David Foster Wallace foi jogador quase profissional de tênis. Em “Federer como experiência religiosa” ele acompanha a final de Wimbledon de 2006, um dos grandes jogos da história do tênis, entre Federer e Nadal. Ele reverencia Federer, explicando porque vê-lo jogar é quase uma experiência religiosa. Só lendo para ver.

Terminei o livro um pouco triste, mas os motivos já foram expostos. Nada a ver com o livro em si. Soube que a Companhia das Letras está traduzindo Infinite Jest. Não vejo a hora de ler, assim como, bem antes disso, conferirei seu outro trabalho já traduzido para o português, o livro de contos Breves entrevistas com homens hediondos.

Minha Avaliação:

4 estrelas em 5.

site: http://catalisecritica.wordpress.com
comentários(0)comente



Gabriel Leite 28/04/2014

Possuí e Perdi Alguma Coisa Infinita
Dois mil e catorze e eu acabo de descobrir esse gênero chamado ensaio. Claro que já tinha lido alguns ensaios na minha vida, mas nunca tinha me dado conta de que o nome daquilo era ensaio. Enfim. Acabei viciando. Gastei dinheiro no Kindle, investi tempo e saúde e conheci David Foster Wallace, o autor de Ficando Longe do Fato de Já Estar Meio que Longe de Tudo.

Quando eu digo conheci, é conheci realmente. E isso é uma das coisas legais de se ler uma coletânea de ensaios (principalmente a coletânea de ensaios de um cara que tem a cabeça como a do David Foster Wallace). O mergulho na mente, na capacidade narrativa e descritiva do autor é tão profundo que, por vezes, você se pega pensando como um D. F. Wallace em plena praça de alimentação do Conjunto Nacional, o que torna a vida inviável. Por outro lado, você, de certa forma, faz um amigo (vomitem, ridículos). Você passa horas numa conversa sem volta com esse homem que te faz rir e te faz pensar e quase te faz dormir, antes de te assaltar com uma construção genial e te fazer acordar. É um pouco estranho, mas você se acostuma (e no final, até ama).

O livro reúne alguns ensaios sobre, por exemplo, cruzeiros de luxo, a problemática de se cozinhar lagostas ainda vivas e as razões pelas quais Federer é o melhor ser humano que já pisou neste planeta. Todos muito bem escritos. Cheios de detalhes precisos, jornalísticos e, ao mesmo tempo, completamente descompromissados com as coisas "naturalmente" primordiais. Uma das coisas mais legais do D. F. Wallace é essa capacidade de enxergar aquele detalhe que, à primeira vista, não parece muito digno de nota, mas que cresce com o texto e encontra correspondentes muito íntimos na nossa própria memória. Daí talvez a certeza de ter conhecido um ensaísta que se matou há seis anos. Seu texto tem a capacidade de nos ensinar algumas coisas fantásticas e, ao mesmo tempo, deixar a sensação de que, no fundo, nós sempre soubemos essas coisas.

Fiquei um pouco angustiado do meio pro final. Não pela qualidade do texto (até porque o texto é realmente impecável), mas porque Wallace tem uma visão muito pessimista, cíclica e perdida da existência humana. No meu ensaio preferido dessa coletânea (Isto É Água, que na verdade é um discurso de formatura que Wallace teve que fazer para alguma turma) ele descreve, com precisão, esse ciclo de fracassos e fala sobre a única alternativa possível. Só por esse trecho, o livro já valeria a pena.

"A única verdade com V maiúsculo é que quem decide como vai tentar ver as coisas são vocês mesmos. Essa, a meu ver, é a liberdade de uma educação autêntica, de aprender a ser bem ajustado: poder decidir conscientemente o que tem significado e o que não tem. Poder decidir o que venerar…

Pois aqui está uma outra verdade. Nas trincheiras cotidianas de uma vida adulta, não existe isso de ateísmo. Não existe isso de não venerar. Todo mundo venera. Nossa única escolha é "o que" venerar. E se existe uma ótima razão para talvez venerar algum tipo de deus ou coisa espiritual - seja Jesus Cristo ou Alá, yhwh ou uma deusa-mãe wiccan, as Quatro Verdades Nobres ou algum conjunto inviolável de princípios éticos - é que provavelmente todas as outras coisas vão devorar vocês vivos. Quem venerar o dinheiro e os bens materiais, quem buscar neles o sentido da vida, nunca terá o suficiente. Nunca terá a sensação de que tem o suficiente. É a verdade. Quem venerar o próprio corpo, beleza e encanto sexual sempre vai se achar feio, e quando o tempo e a idade começarem a deixar marcas morrerá um milhão de mortes antes de finalmente ser enterrado por alguém. (...) Quem venerar o poder vai se sentir fraco e amedrontado, e precisará de cada vez mais poder para conseguir afastar o medo. Quem venerar o intelecto, ser visto como inteligente, vai acabar se sentindo burro, uma fraude na iminência de ser desmascarada. E por aí vai.

Essas formas de venerar são traiçoeiras não por serem malignas ou pecaminosas, mas por serem inconscientes. São configurações padrão. É o tipo de veneração pelo qual nos deixamos levar gradualmente, dia após dia, e que nos torna cada vez seletivos em relação ao que vemos e a como atribuímos valor às coisas, sem jamais termos plena consciência do que é isso que estamos fazendo. E o suposto 'mundo real' nunca desencorajará vocês de operarem nas configurações padrão, porque o suposto 'mundo real' dos homens, do dinheiro e do poder avança tranquilamente movido pelo medo, pelo desprezo, pela frustração, pela ânsia e pela veneração do ego. Nossa cultura atual canalizou essas forças de modo a produzir doses extraordinárias de riqueza, conforto e liberdade pessoal. A liberdade de sermos senhores de reinos minúsculos, do tamanho dos nossos crânios, sozinhos dentro de toda a criação. Esse tipo de liberdade tem seus méritos. Mas é óbvio que há liberdades dos mais variados tipos, e no vasto mundo lá de fora, onde o que importa é vencer, conquistar e se exibir, vocês não ouvirão falar muito do tipo mais precioso de todos. O tipo realmente importante de liberdade requer atenção, consciência, disciplina, esforço e a capacidade de se importar genuinamente com os outros e de se sacrificar por eles inúmeras vezes, todos os dias, numa miríade de formas corriqueiras e pouco excitantes. Essa é a verdadeira liberdade. Isso é ter aprendido a pensar. A alternativa é a inconsciência, a configuração padrão, a 'corrida de ratos' - a sensação permanente e corrosiva de ter possuído e perdido alguma coisa infinita."

site: http://amortemecaibem.blogspot.com.br/2014/04/possui-e-perdi-alguma-coisa-infinita.html
comentários(0)comente



Priscila.Gontijo 14/03/2015

ENSAIOS E AS MELHORES NOTAS DE RODAPÉ
O livro de ensaios de David Foster Wallace é tão intrigante quanto ácido. Uma das marcas do escritor são suas longas notas de rodapé - que devem ser lidas com atenção. O ensaio sobre Kafka é magistral e me ensinou muito sobre como dar aulas de literatura, o mundo contemporâneo e a superficialidade cotidiana que nos esmaga em hábitos aterradoramente mesquinhos e desesperadores, além de sua visão sobre o humor em Kafka. Crítico contundente da sociedade estadunidense, Wallace escreveu um ensaio chamado: "Isto é água" - discurso de paraninfo - que "viralizou" na internet. À partir desse ensaio escrevi uma peça breve intitulada: "Esse reino minúsculo" porque Wallace é um escritor inspirado e inspirador. Ler os seus textos nos faz olhar para o contemporâneo com um olhar mais arguto, sensível e crítico. Pena que a sua luta contra a depressão tenha levado esse artista genial tão cedo. Mas seu legado é grande e deve ser vivido com dedicação. Atenção para o ensaio: "Pense na lagosta".
comentários(0)comente



aarrgh 01/05/2015

Sabe quando você tá conversando com uma pessoa e no final você fala, sabe como é?, e ela responde que não, não sabe, ou porque não faz ideia do que você tá falando, ou porque não quer nem ter ideia.

Ehh, David Foster Wallace sabe.

São coisas simples da vida, que todo mundo de alguma forma sente, mas não consegue colocar em palavras.

Se me perguntassem as profissões mais importantes para a sociedade, além dos óbvios como gari, médicos etc., eu diria escritores, porque o que seria do mundo sem livros? Não só os escritores de ficção, mas principalmente os escritores de ficção. O que seria de nós sem os livros para nos mostrar que não estamos sozinhos?

Conversando com um amigo sobre “Isto é água”, ele disse Como uma pessoa que possui tamanho discernimento sobre a vida foi se matar?

Eu disse que a resposta estava na pergunta.


Mais um blog literário pra você ignorar:


site: https://treslendo.wordpress.com/
comentários(0)comente



Mari 14/05/2015

Há dois peixes jovens nadando ao longo de um rio, e eles por acaso encontram um peixe mais velho nadando na direção oposta, que pisca para eles e diz, “Bom dia, rapazes, como está a água?”. E os dois peixes jovens continuam nadando por um tempo, e então um deles olha pro outro e diz, “Que diabos é água?”.

Se você está preocupado pensando que eu estou planejando me apresentar aqui como o peixe velho e sábio explicando o que é água, por favor não fique. Eu não sou o peixe velho e sábio. O ponto imediato da história dos peixes é que as realidades mais óbvias, ubíquas e importantes são frequentemente as mais difíceis de se ver e discutir. Declarada como uma frase, é claro, isso é só um lugar-comum banal – mas o fato é que, nas trincheiras diárias da existência adulta, lugares-comuns banais podem ter importância de vida ou morte.


É claro que o principal requerimento de discursos de formatura como esse é que eu devo falar sobre o significado da sua educação de Ciências Humanas, tentar explicar por que o diploma que você acabou de receber tem algum valor humano real ao invés de apenas compensação material. Então vamos falar do maior clichê do gênero do discurso de formatura, que é que a educação de ciências humanas não tem o propósito de te encher de conhecimento, mas sim de ensiná-lo a pensar. Aqui vai outra historinha didática:

Tem dois caras sentados juntos num bar numa região remota do Alaska. Um dos caras é religioso, o outro é ateu, e os dois estão discutindo sobre a existência de Deus com a intensidade especial que vem depois da quarta cerveja. E o ateu diz: “Olha, não é como se eu não tivesse razões verdadeiras pra não acreditar em Deus. Não é como se eu nunca tivesse experimentado essa coisa toda de Deus e oração. Mês passado uma nevasca terrível me pegou longe do acampamento, eu tava completamente perdido, e não conseguia ver nada, e tava 25 graus negativos, então eu tentei: eu caí de joelhos na neve e gritei ‘Ó Deus, se existir um Deus, eu tô perdido nessa nevasca, e eu vou morrer se você não me ajudar.'” E agora, no bar, o cara religioso olha pro ateu confuso. “Bem, então você deve acreditar agora”, diz ele. “Afinal, aqui está você, vivo.” O ateu rola os olhos. “Não, cara, o que aconteceu é que dois esquimós por acaso apareceram por lá e me mostraram o caminho do acampamento.”

É fácil fazer uma análise literária dessa história: A mesma exata experiência pode significar duas coisas completamente diferentes para duas pessoas completamente diferentes, considerando os diferentes modelos de crença e as diferentes formas de construir significado de uma experiência. Porque nós valorizamos tolerância e diversidade de crença, não queremos na nossa análise literária afirmar que a interpretação de um cara é verdadeira e a interpretação do outro cara é falsa ou ruim. O que não tem problema, só que nós também acabamos nunca falando sobre de onde vêm esses modelos e crenças diferentes.

Quero dizer: de onde eles vêm dentro dos dois caras? É como se a orientação ao mundo mais básica de uma pessoa, e o significado de sua experiência, fossem de alguma forma simplesmente impressos nos genes, como altura ou tamanho do sapato – ou automaticamente absorvidos da cultura, como linguagem. Como se a forma em que construímos significado não fosse uma questão de escolha pessoal e intencional. Além disso, há toda a questão de arrogância. O cara não-religioso está completamente certo na sua rejeição da possibilidade de que os esquimós tiveram qualquer coisa a ver com sua oração e pedido de ajuda. Verdade, existem também muitas pessoas religiosas que parecem arrogantes e certas de suas próprias interpretações. Elas provavelmente são muito mais repulsivas do que os ateus, pelo menos para a maioria. Mas o problema do religioso dogmático é exatamente o mesmo do descrente da história: certeza cega, uma mente fechada que representa um aprisionamento tão completo que o prisioneiro nem sabe que está encarcerado.

O ponto aqui é que isso é uma parte do que me ensinar como pensar significa. Ser um pouco menos arrogante. Ter um pouco de consciência crítica sobre mim e minhas certezas. Porque uma grande porcentagem das coisas sobre as quais eu costumo automaticamente ter certeza é, na verdade, totalmente errada ou ilusória. Eu aprendi isso do jeito difícil, e eu aposto que vocês também vão.

Aqui vai um exemplo de algo completamente errado que eu costumo automaticamente ter certeza: tudo na minha experiência apóia minha crença profunda de que eu sou o centro absoluto do universo, a pessoa mais real, vívida e importante que existe. Nós raramente falamos sobre esse tipo de egocentrismo natural e básico, porque ele é tão socialmente repulsivo, mas é basicamente o mesmo para todos nós, no fundo. É a nossa configuração padrão, impressa nos nossos circuitos desde o nascimento. Pense nisso: você nunca teve uma experiência da qual você não foi o centro absoluto. O mundo como nós o vemos está bem na sua frente, ou atrás de você, ou à sua esquerda ou à sua direita, na sua TV, no seu monitor, ou o que for. Os pensamentos e sentimentos de outras pessoas precisam ser comunicados pra você de alguma forma, mas os seus próprios são tão imediatos, urgentes, reais… você entendeu.

Mas por favor, não se preocupe pensando que eu estou me preparando pra pregar pra você sobre compaixão ou desprendimento ou as supostas “virtudes”. Isso não é uma questão de virtude, é uma questão de eu escolher fazer o trabalho de alterar ou me livrar da minha configuração padrão natural, que é ser profundamente e literalmente egocêntrico, e ver e interpretar tudo pela lente do eu. Pessoas que conseguem ajustar sua configuração padrão natural dessa forma são geralmente descritas como “bem ajustadas”, o que eu lhe sugiro que não é um termo acidental.

Como vocês devem saber, é extremamente difícil se manter alerta e atento, ao invés de se hipnotizar pelo monólogo constante dentro da sua próprio cabeça (pode estar acontecendo agora). Vinte anos depois da minha gradução, eu cheguei à conclusão de que o clichê sobre a educação de Humanas sobre te ensinar como pensar é na verdade uma simplificação de uma idéia muito mais profunda e séria: aprender como pensar significa como exercer controle sobre como e o que você pensa. Significa estar ciente e consciente o suficiente para escolher no que você presta atenção e escolher como você constrói significado de uma experiência. Porque se você não exercitar esse tipo de escolha na vida adulta, você está lascado.

Pense no velho clichê sobre a mente ser “um ótimo servo mas um terrível mestre.” Esse, como vários outros clichês, tão bobo e broxante na superfície, na verdade expressa uma grande e terrível verdade. Não é mera coincidência que adultos que se suicidam com armas de fogo quase sempre atiram na cabeça. Eles atiram no terrível mestre. E a verdade é que a maioria desses suicídas estão mortos muito antes de puxarem o gatilho. E eu sugiro que esse é o verdadeiro valor da educação de Humanas: como evitar viver sua confortável e próspera vida adulta morto, inconsciente, um escravo da sua cabeça e da sua configuração padrão natural de ser unicamente, completamente, imperialmente sozinho, dia após dia. Isso pode soar como hipérbole ou baboseira abstrata. Vamos deixar mais concreto.

O fato é que vocês jovens graduados não fazem idéia do que realmente significa “dia após dia”. Há por acaso partes enormes da vida adulta americana sobre as quais ninguém fala nesses discursos de formatura. Uma dessas partes envolve tédio, rotina e frustrações triviais. Seus pais vão saber muito bem do que eu estou falando.

Por exemplo, digamos que é um dia comum, e você acorda de manhã, e você vai pro seu trabalho exigente, e você trabalha duro por nove ou dez horas, e no fim do dia você está cansado e estressado, e tudo que você quer fazer é ir pra casa e jantar e talvez relaxar por algumas horas e então cair na cama cedo porque você tem que acordar no dia seguinte e fazer tudo de novo. Mas aí você lembra que não tem comida em casa – você não teve tempo de fazer compras essa semana, por causa do seu trabalho exigente – e então agora, depois do trabalho, você tem que entrar no seu carro e dirigir até o supermercado. É o fim do expediente, e o tráfego está horrível, então chegar no lugar demora muito mais do que deveria, e quando você finalmente chega lá, o supermercado está muito cheio, porque, é claro, é a hora do dia que todas as outras pessoas com emprego também tentam espremer um tempo pra fazer compras, e a iluminação da loja é fluorescente e medonha, e no som toca algum pop corporativo ou Muzak que destrói a alma, e é basicamente o último lugar que você quer estar. Mas você não pode entrar e sair rapidamente: você tem que vagar pelos corredores lotados dessa loja enorme e exageradamente iluminada para achar as coisas que você quer, e você tem que manobrar o seu carrinho de compras enferrujado por todas essas outras pessoas cansadas e apressadas que também empurram carrinhos, e é claro que também estão lá as pessoas idosas se movendo num ritmo glacial e as pessoas espaçosas e as crianças que bloqueiam os corredores e com as quais você tenta ser educado quando pede para elas deixarem você passar – e finalmente, você pega tudo que precisa pro jantar, só que agora não tem caixas abertos suficientes apesar de ser a correria do fim do dia, então a fila do caixa está incrivelmente longa, o que é estúpido e irritante, mas você não pode despejar sua fúria na moça agitada trabalhando no caixa, que está sobrecarregada num emprego cujo tédio diário e insignificância ultrapassam a imaginação de qualquer um de nós nessa faculdade prestigiada.

De qualquer forma, você finalmente chega na frente do caixa, e paga pela sua comida, e espera receber seu cartão autenticado pela máquina, e então desejam-lhe “um bom dia” numa voz que é a absoluta voz da morte, e então você tem que levar seus sacos de plástico frágil no seu carrinho através do estacionamento cheio, esburacado e sujo, e você tenta colocar os sacos no seu carro de forma que tudo não caia das sacolas e role pelo seu porta-malas no caminho para casa, e então você tem que dirigir para casa no tráfego lento de hora do rush, cheio de SUVs e picapes, etc, etc.

O ponto é que merda trivial e frustrante desse tipo é exatamente onde entra o trabalho de escolher. Porque os engarrafamentos e corredores lotados e longas filas do caixa me dão tempo para pensar, e se eu não tomar uma decisão consciente sobre como pensar e no que prestar atenção, eu vou ficar enfezado e miserável toda vez que eu for comprar comida, porque minha configuração padrão natural é a certeza de que situações como essa são na verdade só sobre mim, sobre minha fome e meu cansaço e meu desejo de chegar em casa, e vai parecer que todos os outros estão no meu caminho, e quem é esse povo, mesmo? E olha o quão repulsivo é boa parte deles, e como aqui na fila do caixa eles parecem estúpidos, olhos mortos, não-humanos, como vacas, ou o quão irritante e rude são as pessoas que estão falando alto no celular no meio da fila, e olha como isso é profundamente injusto: eu trabalhei duro o dia inteiro e estou faminto e cansado e não posso nem chegar em casa para comer e relaxar por causa de todo esse maldito povo idiota.

Ou, se eu estou na forma mais socialmente consciente da minha configuração padrão, eu posso passar o tempo no engarrafamento do fim do dia ficando irritado e enojado com todos esses SUVs e picapes e caminhonetes enormes, idiotas, que bloqueiam pistas, queimando e desperdiçando seus tanques egoístas de 40 galões de gasolina, e eu posso considerar o fato de que adesivos religiosos ou patrióticos costumam estar pregados nos veículos maiores e mais egoístas, dirigidos pelos motoristas mais feios, imprudentes e agressivos, que geralmente estão falando no celular enquanto cortam os outros pra avançar 10 metros idiotas num engarrafamento, e eu posso pensar sobre como os filhos dos nossos filhos vão nos desprezar por gastar todo o combustível do futuro e provavelmente estragar o clima, e quão mimados e estúpidos e nojentos nós somos, e como a sociedade consumista moderna é um saco, e assim por diante. Você entendeu.

Se eu escolher pensar assim na loja ou na rua, tudo bem, muitos de nós pensam – só que pensar dessa forma costuma ser fácil e automático e não precisa ser uma escolha. É a minha configuração padrão natural. É a forma automática de como eu vivo as partes chatas, frustrantes e lotadas da vida adulta quando eu estou operando na crença automática, inconsciente de que eu sou o centro do mundo, e que minhas necessidades imediatas e sentimentos são o que deve determinar as prioridades do mundo.

A questão é que, é claro, há formas completamente diferentes de se pensar sobre esses tipos de situações. Nesse trafego, todos esses veículos parados no meu caminho, não é impossível que algumas dessas pessoas nas caminhonetes já estiveram em acidentes de carro horríveis no passado e agora acham dirigir tão aterrorizante que seus terapeutas praticamente ordenaram que elas comprem uma caminhonete grande e pesada para que se sintam seguras o suficiente para dirigir novamente. Ou que a picape que acabou de me cortar talvez esteja sendo dirigida por um pai cujo filho esteja ferido ou doente no banco de passageiros, e ele está tentando levar essa criança pro hospital, e ele está numa pressa maior e mais legítima que a minha – ou seja, sou eu que estou no caminho dele. Ou eu posso me forçar a considerar a possibilidade de que todo mundo na fila do supermercado está tão entediado e frustrado quanto eu, e que algumas dessas pessoas tem uma vida mais difícil, tediosa e dolorosa que a minha.

Novamente, por favor não ache que eu estou dando conselho moral, ou que estou dizendo que você deve pensar dessa forma, ou que qualquer um espere que você automaticamente faça isso. Porque é difícil. Requer determinação e esforço, e se você é como eu, alguns dias você não vai conseguir fazê-lo, ou simplesmente não vai querer.

Mas na maioria dos dias, se você está ciente o bastante para se dar uma escolha, você pode escolher outra forma de olhar para essa senhora obesa, de olhos mortos e maquiagem exagerada, que acabou de gritar com o filho na fila do supermercado. Talvez ela não seja assim, geralmente. Talvez ela esteja acordada três noites seguidas segurando a mão do seu marido que está morrendo de câncer ósseo. Ou talvez essa mesma senhora seja a atendente do departamento de veículos motorizados, que ontem mesmo ajudou a sua esposa resolver algum problema chato através de um pequeno ato de bondade burocrática.

É claro, nada disso é provável, mas também não é impossível. Só depende do que você quer considerar. Se você tem certeza automática de que sabe o que a realidade é, e você está operando na sua configuração padrão, então você, como eu, provavelmente não vai considerar possibilidades que não são irritantes ou miseráveis. Mas se você realmente aprender como prestar atenção, então você saberá que existem outras opções. Estará dentro da sua capacidade vivenciar uma situação lotada, lenta e quente como não só significante, mas sagrada, uma chama como a que criou as estrelas: amor, companheirismo, e a unidade mística de todas as coisas, no fundo.

Não que essa coisa mística seja necessariamente verdade. A única coisa que é Verdade com v maiúsculo é que você decide como vai tentar vê-la.

Essa, eu afirmo, é a verdadeira educação, a de aprender como ser bem ajustado. Você vai conscientemente decidir o que tem significado e o que não tem. Você decide o que venerar.

Porque aqui está algo que é estranho mas real: nas trincheiras diárias da vida adulta, não existe algo como o ateísmo. Não existe “não venerar”. Todo mundo venera. A única escolha que temos é o que venerar. E a razão convincente para talvez escolher venerar algum tipo de deus ou coisa espiritual – seja JC, Alá, ou a Deusa Mãe dos Wicca, ou as Quatro Nobres Verdades, ou algum conjunto de princípios éticos invioláveis – é que praticamente qualquer outra coisa que você venerar vai te comer vivo.

Se você venera dinheiro e coisas, se é aí que você encontra significado verdadeiro na vida, então você nunca terá o suficiente. É a verdade. Venere o seu corpo e beleza e atração sexual, e você sempre vai se sentir feio. E quando o tempo e idade começarem a aparecer, você vai morrer um milhão de mortes antes de finalmente te enterrarem. De certa forma, nós já sabemos dessas coisas. Elas já foram codificadas em mitos, provérbios, clichês, epigramas, parábolas – o esqueleto de toda grande história. O truque é manter a verdade evidente na consciência diária..

Venere o poder, e você vai acabar se sentindo fraco e medroso, e você vai precisar de ainda mais poder sobre os outros para entorpecer o seu próprio medo. Venere seu intelecto, ser visto como esperto, e você vai acabar se sentindo estúpido, uma fraude, sempre à beira de ser descoberto. Mas a coisa insidiosa sobre essas formas de veneração não é que elas são más ou perversas – é que elas são inconscientes. Elas são a configuração padrão. São o tipo de veneração em que você gradualmente se acomoda, dia após dia, ficando mais e mais seletivo sobre o que você vê e como você mede valor sem jamais estar totalmente ciente do que está fazendo.

E o suposto mundo real não irá te desencorajar de operar na sua configuração padrão, porque o suposto mundo real de homens e dinheiro e poder cantarola alegremente numa piscina de medo e raiva e frustração e desejo e veneração de si mesmo. Nossa própria cultura atual canalizou essas forças de formas que geraram extraordinária riqueza e conforto e liberdade pessoal. A liberdade de sermos senhores dos nossos pequenos reinados individuais, do tamanho de nossas caveiras, sozinhos no centro de toda a criação. Esse tipo de liberdade tem vários méritos. Mas é claro que há vários tipos diferentes de liberdades, e no grande mundo lá fora de querer e conseguir, você não irá ouvir muito sobre o tipo mais precioso. O tipo realmente importante de liberdade envolve atenção e consciência e disciplina, e ser capaz de realmente se importar com outras pessoas e se sacrificar por elas repetidamente numa miríade de formas triviais e pouco excitantes.

Essa é a verdadeira liberdade. Isso é ser educado, e saber como pensar. A alternativa é a inconsciência, a configuração padrão, a corrida maluca, a constante e torturante sensação de ter tido, e perdido, alguma coisa infinita.

Eu sei que essas coisas não soam divertidas ou joviais ou grandiosamente inspiradoras como um discurso de formatura deve soar. O que isso é, até onde eu sei, é a Verdade com v maiúsculo, com uma porção de sutilezas retóricas removidas. Você está, é claro, livre para pensar disso o que você quiser. Mas por favor não o rejeite como algum sermão hipócrita. Nada disso é realmente sobre moralidade ou religião ou dogma ou questões fantasiosas sobre vida após a morte. A Verdade com v maiúsculo é sobre vida antes da morte. É sobre o valor real de educação real, que não tem quase nada a ver com conhecimento, e tudo a ver com simples consciência – consciência daquilo que é real e essencial, tão escondido na obviedade ao nosso redor, o tempo todo, que nós temos que continuar relembrando repetidamente:

“Isto é água.”

“Isto é água.”

É inimaginavelmente difícil fazer isso, se manter consciente e vivo no mundo adulto dia após dia. O que significa que mais um grande clichê acaba sendo verdade: sua educação realmente é o trabalho de uma vida toda. Eu lhes desejo muito mais que sorte.
comentários(0)comente



37 encontrados | exibindo 1 a 16
1 | 2 | 3


Utilizamos cookies e tecnologia para aprimorar sua experiência de navegação de acordo com a Política de Privacidade. ACEITAR