Adamastor Portucaldo 25/04/2023
O povo brasileiro em visão confessadamente não isenta
?O Povo Brasileiro? é escrito por Darcy Ribeiro, que nos alerta logo de cara: ?... não se iluda comigo, leitor (...) sou homem de fé e de partido. Faço política (...) movido por razões éticas e por um fundo patriotismo. Não procure, aqui, análises isentas.? pg.17
Como o tema é vastíssimo e a doença lhe dava um certo senso de urgência, ao perpetrar finalmente o livro, adiado por décadas, possível e compreensivelmente ele teve que passar por alto em partes que deveriam ser melhor pesquisadas, fundamentadas: ?Bem sabemos o quanto estão pouco documentadas as hipóteses aqui levantadas. Todavia, elas parecem válidas (...)? pg.418
Por todo o texto, além do seu ranço, respingam dados, opiniões, teorias e assertivas sem existência de documentação confiável ou mesmo de quaisquer registros. Fatos da história (mineração de ouro e diamantes, Cabanagem, Mucker, Missões, Contestado e outros) sobejamente conhecidos do autor, são apenas citados no contexto sem grandes digressões, talvez de modo sucinto demais.
Darcy insiste em pautas tipo reforma agrária, direito de associação e greve como panaceia. Quando teve poder político, é inegável que atuou forte em educação, o que o cobre de glória. No entanto, uma palavra percorre todo o livro: GENOCÍDIO. Do índio, do negro, do pobre. Thomas Hobbes foi quem disse que ?o Homem é o Lobo do Homem?? Não é o que os europeus encontraram na América toda? Sacrifícios humanos, guerras tribais, antropofagia ? além de riquezas e deficiências imunológicas (as doenças trazidas teriam resultado em reduções da população da ordem de 25:1).
No litoral da Terra de Santa Cruz viveriam um milhão de Tupis e os demais (Tapuias - que significa inimigos e não outras tribos ou etnias) seriam outros quatro milhões ? números altamente especulativos. Incontáveis aldeias com 300 a 3000 índios, que não deixaram qualquer sinal, excetuando-se pedaços de potes. Aqui viviam numa inocência adâmica e solidarismo edênico (pg.61). As tribos eram autônomas, autárquicas e não estratificadas em classes: já viviam o ideal socialista. No entanto, caíram de amores pelas quinquilharias que os fétidos navegadores lhes ofertaram. Para estes, nada que os índios tinham ou faziam foi visto com apreço, senão os próprios índios (para fornicar ou escravizar) pg.48.
Importante notar que os invasores eram homens. E estes encontraram ventres acostumados à luxúria, posto que ?se amavam com a naturalidade dos bichos, tendo uma vida preguiçosa, farta e inútil? (pg. 57). Começa a formação de um povo, com filhos de brancos com índias, que não eram brancos, nem índios. Daí a miscigenação (branco, índio, preto), o extermínio da população local (aldeias incendiadas, homens, mulheres e crianças escravizados aos milhões ? fatos cantados como façanhas pelo primeiro santo brasileiro) e a empresa do europeu que vinha aqui para obter lucro: primeiro o pau-tinta, depois o ouro, o diamante, o açúcar...
Conceito do cunhadismo é importante: quando o branco possuía uma índia, automaticamente ele ganhava mil laços na aldeia, que o aparentavam com todos os membros do grupo. A moça passava a ser sua temericó (amante). E havia brancos com dezenas delas, o que certamente dava a eles poderes para juntar grandes grupos nas batalhas contra outras tribos ou incursões de conquista. As bandeiras, chefiadas por brancos (ou seriam filhos de brancos com índias?) tinham até oito vezes mais índios em sua composição do que brancos. Interessante que a língua franca por alguns séculos foi o nheengatu, versão do tupi-guarani dicionarizada pelos jesuítas, até ser proibida pela Corôa no século XVIII.
Os vieses e atropelos talvez possam ser encontrados quando o autor diz que os índios remanescentes (1995) seriam 100 mil e ?tão imponderáveis que sua existência não afeta o destino nacional? pg.22 ? ele não sabia de nada! Ele clama como parasitários (na colônia) os setores portuário, bancário, comércio e burocracia. O negociador de açúcar seria um parasita, seu Darcy? Taxa, em uma frase, curas e militares como subversivos. Diz que a solução colonial daqui era o mais bem sucedido implante europeu de além-mar, mas teria sido o stalinismo jesuítico o fracasso maior ao tentar um socialismo precoce e inviável. Ele não cansa de espinafrar o processo de formação do país, mas elogia os antepassados (pg.204) por propiciar aos brasileiros um território prodigiosamente rico. Também parece advogar, sem apontar solução, que o país crescesse olhando para o próprio umbigo (e não sempre voltado para exportações). Sem dúvida ele acerta nisso, ao menos na parte da espoliação, que não precisava ter sido tão grande. Explica a indolência do negro, pois acostumados a se poupar quanto pudessem no trabalho, sob o chicote do feitor, quando libertos, não sabiam como competir (e ganhar) com o europeu, que vinha trabalhar com objetivo de progresso pessoal e não evitar ser moído / consumido. Livro datado, meio velho, mas: ?A eleição é uma grande farsa em que as massas de eleitores vendem seus votos àqueles que seriam seus adversários?.