Mahuucp 27/05/2024
Eu ganhei esse livro de presente de natal do meu tio. Segundo ele, esse é o melhor livro do mundo. Minha prima, filha dele, disse que esse é o livro da vida dela. Ver gente falando com tanta paixão sobre um livro, certamente, desperta curiosidade. Afinal não é qualquer obra que tem o poder de deixar as pessoas completamente apaixonadas.
Com isso em mente, embarquei na jornada para ler “Um defeito de cor”. Eu não posso dizer que é o melhor livro do mundo ou que é o livro da minha vida, pois esse posto pertence a “Cem anos de solidão”, porém a obra merece ser chamada de melhor livro do mundo e merece ser o livro da vida de muitas e muitas pessoas. Aqui em casa, minha família só chama “um defeito de cor” o melhor livro do mundo por causa da paixão que o meu tio falou do livro deixou uma marca em todos nós. Virou uma espécie de brincadeira entre a gente, mas é uma brincadeira que concede para “um defeito de cor” a alcunha de melhor livro do mundo de novo e de novo, o que é bem merecido.
O livro conta a longa e bela jornada de Kehinde. Começando quando ela era uma menininha, vivendo com a família na África. Eu confesso que tive que parar a leitura por uns dias, pois a narração da travessia do atlântico me deixou mal de verdade. Foi uma tristeza profunda, um desconforto e uma incapacidade de agir diante de tanta dor e injustiça É incrível o talento e a força que a autora tem para transmitir tamanho sentimento com suas palavras. Reconheço. Não é qualquer um que tem o poder de me fazer fechar o livro e pensar “preciso dar um tempo ou vou passar mal”.
Kehinde chega no Brasil sozinha, sendo apenas uma criança, mas ela sobrevive. Ela sobreviveu aos horrores de um Brasil escravocrata, violento e colonial. Kehinde vê na educação, na alfabetização, uma chance de conseguir um mínimo de liberdade. Ela aprende a ler, aprende a falar portugês e inglês e tem um verdadeiro amor por aprendizado. Ela adora conversar e ficar perto de pessoas inteligentes, como padres portugueses e muçulmanos escravizados.
É lindo ver como a educação deu uma chance a Kehinde de conquistar a liberdade dela, e também dos amigos que ela fez e do filho que ela teve. Assim como é bonito ver a força da fé nos orixás, voduns e ancestrais. A fé foi uma grande aliada para Kehinde e eu acredito que os orixás, voduns ajudaram muito ela nessa longa jornada pela vida.
Apesar dos horrores, Kehinde é capaz de encontrar família, casa, sustento e amor. É uma comunidade forte e unida, em que todos se ajudam. É fascinante ver parte da história do Brasil pelos olhos da Kehinde. Como os africanos foram um povo de muita resistência e luta. Lutaram em rebeliões, fugas, ou mesmo se unindo e juntando dinheiro para comprar a liberdade de amigos e familiares. Toda liberdade e todos os direitos foram conquistas do povo negro. E isso jamais pode ser esquecido.
Eu não consigo culpar a Kehinde pelas escolhas dela. Seja por se apaixonar por homens que a machucaram e a traíram, ou por participar de revoltas que fracassaram. Ou por perder os filhos; um deles para a morte e outro para a escravatura. Ela fez de tudo o possível para reencontrar o filho. Gastou dinheiro, viajou (SOZINHA!) pelo Brasil de ponta a ponta, encontrou várias pessoas atrás de alguma pista. E isso foi tudo o que ela conseguiu, pistas. É triste, mas infelizmente é o que aconteceu.
Nessas viagens vimos a Bahia, o Maranhão, o Rio de Janeiro e um pouco de São Paulo. São lugares diferentes, mas que deixaram uma marca na vida da Kehinde, especialmente o Rio e Salvador. Kehinde consegue encontrar amores e amigos no Rio e na Bahia. É um retrato fiel de um Brasil complexo ainda escravocrata, mas que busca uma identidade própria em meio a injustiça e resistência. Pensar nisso, nesse livro meio biográfico e meio ficcional me desperta uma vontade de saber mais sobre a história do Brasil, sobre os quilombos e terreiros e toda a resistência contra a escravatura que houve por aqui. Também quais partes são reais, quais são ficção. É legal ficar pensando, será que ela conheceu mesmo o Joaquim Manuel de Macedo? E mais legal ainda pensar, espero que sim!
Kehinde, por fim, volta a suas origens, para a África. Lá também ela consegue encontrar amigos e família e ter uma vida confortável. Eu fiquei feliz lendo ela se dando bem e ganhando muito dinheiro, mas ao mesmo tempo tudo parece deslocado para ela. A África que ela conheceu quando criança não existe mais, os hábitos e costumes que ela adquiriu no Brasil são quase que incompatíveis com a sociedade africana. Kehinde é africana, mas também é brasileira, contudo ela (e outros retornados), não pertence a nenhum desses povos. É como se ela vivesse em um não lugar; muito brasileira para ser africana e muito africana para ser brasileira.
Esse é um livro que a gente vai se preparando para um final triste, mas ainda é doloroso pensar que ela nunca pode rever o filho, que as memórias dela não foram lidas por Luiz da Gama, que ele nunca soube de todos os esforços que a mãe fez por ele e de como ela o amou profundamente.
Apesar disso, de toda a tristeza, esse é um livro lindo. Um livro que merece ser adaptado para um samba enredo em escola de samba, ser adaptado para televisão, cinema, rádio, teatro e tudo o que for possível. Sem sombra de dúvida um dos maiores e melhores livros da literatura brasileira e mundial.