Diego Lunkes 17/09/2019
Via de regra, histórias são contadas do ponto de vista dos vencedores. Ninguém escreve uma biografia elencando os passos que levaram uma pessoa ao fracasso, assim como dificilmente alguém se interessa em ler sobre a história do perdedor. Isso parece demonstrar o quão frágeis e despreparados somos para lidar com a derrota. Por isso, é no mínimo curioso que a escritora Lionel Shriver tenha escolhido contar uma história de fracasso em seu livro "Dupla Falta". Curioso, mas não totalmente surpreendente, pois a autora é famosa por construir uma carreira baseada em histórias que abordam assuntos controversos, quebrar com as expectativas do leitor e expor fatos que frequentemente são propositalmente negligenciados. Seja comentando o impacto da obesidade mórbida na vida de uma pessoa e daquelas que as cercam em "Grande Irmão", ou investigando até que ponto a educação parental pode exercer um controle sobre a prole em "Precisamos Falar Sobre Kevin", os livros de Shriver funcionam como espelhos que refletem defeitos que o próprio leitor tem dificuldades de aceitar em si mesmo.
Para tecer seus comentários sobre fracasso, a escritora utiliza o tênis como pano de fundo da história e constrói um casal de tenistas bem diferentes entre si para evidenciar pelo duas maneiras possíveis de se lidar com a vitória e o fracasso. Por um lado, Willy Novinsky representa a ideia do sucesso obtido através do esforço. Sua motivação é provar para si mesma e para os demais que pode ser a melhor; sua principal arma é aceitar sua atual situação como um estado de derrota. Com isso em mente, Willy encara suas derrotas como algo aceitável, quase merecido, ao passo que cada pequena vitória toma grandes dimensões por exceder expectativas. Por outro lado, Eric Oberdorf encapsula o conceito de sucesso como um talento nato. Para ele, a vitória é tida como certa e perder não é uma opção. Esta atitude curiosamente faz com que seu prazer provenha muito mais do ato de vencer do que do esporte em si.
Ao juntar estes dois personagens tão distintos, Lionel Shriver evidencia as relações de poder que se escondem nas entrelinhas dos relacionamentos. A disputa se torna evidente através da metáfora estabelecida pelos jogos de tênis. Logo no início da narrativa, a autora nos apresenta uma cena onde Willy derrota um oponente de forma admirável, apenas para demonstrar como alguns homens reagem ao se sentirem menos poderosos do que uma mulher. Ao ser derrotado, o oponente de Willy arranja desculpas para tentar justificar sua perda: uma dor nas costas, os aros frouxos da raquete. Willy, com muita polidez, justifica sua vitória, quase como se não se sentisse no direito de ganhar e precisasse fazer seu oponente se sentir melhor: ela estava em boa forma, as jogadas foram difíceis. "Quando os homens ganham, eles se gabam; quando as mulheres ganham, elas se desculpam". Na sequência, Shriver apresenta o primeiro jogo de Willy contra Eric para oferecer um contraste de atitudes em relação à derrota. Willy vence Eric com a mesma facilidade que vencera seu oponente anterior, mas ao final do jogo surpreende-se com sua atitude receptiva. "Ela estava preparada para o habitual laconismo mal-humorado; ou para uma alegria afetada, como se a competição fosse mera bobagem, explicitada pela exagerada disposição para discutir outros assuntos. Mas sorrindo de orelha a orelha, ele falava apenas de tênis". Willy admira Eric pelo seu esforço. Eric admira Willy porque a vê como um desafio. Eis o início de um relacionamento.
É notável que Shriver construa uma trama centrada essencialmente no casal, pois a limitação de personagens, cenários e temáticas evita subtramas paralelas e mantém o foco da narrativa na dicotomia esforço versus talento. Os personagens secundários estão presentes antes como uma maneira de revelar as facetas de Willy e Eric. O senhor Novinsky se contentou com uma carreira como professor, enquanto esconde no porão pilhas de livros publicados que foram fadados ao esquecimento. "Nunca procurara um emprego que lhe desse mais prestígio. Um colosso dentre os anões não tinha motivação para buscar outros gigantes". De forma semelhante, a senhora Novinsky limitou sua vida ao trabalho doméstico por medo de arriscar uma carreira como dançarina, contentando-se em dançar secretamente quando sozinha em casa. "Isole tudo que lhe é querido das vaias de estranhos; só dance quando a casa estiver vazia". Este contentamento com a mediocridade por medo de arriscar, que rege a família Novinsky, é incutido em Willy na medida em que seus pais desestimulam seus sonhos desde pequena e a instruem a ter ambições pequenas. Curiosamente, este tipo de criação causa um sentimento contrário em Willy, criando um desejo de provar para si mesma e para os seus pais que é possível e que é admirável possuir ambições para o sucesso, e que grande parte disso depende de esforço. No extremo oposto, o casal Oberdorf não apenas estimula Eric a ser um vencedor, como também já espera que ele seja sempre o melhor. O estímulo extrapola os limites ao ponto de se tornar uma cobrança implícita, e a aprovação de seus pais torna-se o principal prazer de Eric, mais do que prêmios, vitórias ou até mesmo o tênis em si. A ideia de vitória também está expressa na carreira bem-sucedida do senhor Oberdorf como cirurgião. Mas curiosamente a senhora Oberdorf, assim como a senhora Novinsky, está presa à esfera doméstica, o que parece ser um sutil comentário de Shriver sobre uma geração de mulheres que não possuía ambições profissionais. A autora ainda acrescenta na narrativa o treinador de Willy, Max, que realça a relação do casal e as particularidades de cada um. O coach é a primeira pessoa por quem Willy demonstra sentimentos amorosos, mas estes sentimentos são antes uma admiração da dedicação de Max pelo tênis. Em outras palavras, Willy ama o amor que Max possui pelo esporte. Isso fica evidente no episódio em que Max sugere que ambos suspendam o treino devido às baixas temperaturas. A sugestão surpreende Willy e partir de então sua admiração por Max decai consideravelmente. Já para Eric, Max é alvo de ciúmes. Porém, este ciúme representa não o medo de perder o amor de Willy, e sim o medo de perder sua posição como vencedor do amor dela. E a paixão de Max por Willy, supostamente uma admiração de sua dedicação ao tênis, desmorona quando Willy deixa claro que ambos nunca poderão ter um relacionamento.
Até mesmo as moradias das duas famílias refletem as características que regem Willy e Eric. A casa dos Novinsky é descrita como sendo inteiramente marrom. Da pintura aos móveis, das roupas aos cabelos de seus moradores, tudo é monocromático e sem graça, expressando uma ideia de imutabilidade. O apartamento dos Oberdorf é moderno, exibindo móveis artisticamente modulados e decorado com os diversos prêmios conquistados por Eric. Quando Willy e Eric visitam um ao outro, eles se tornam um elemento dissonante no ambiente da família. Eric é um ponto colorido e chamativo em meio à homogeneidade dos Novinsky. Willy é um borrão fosco que passa despercebido em meio ao brilho dos Oberdorf.
O tema da competição permeia toda a narrativa. De início, a autora mostra como um pouco de disputa pode ser estimulante para a relação. Em uma cena peculiar, Shriver nos apresenta um momento íntimo onde o casal luta um contra o outro, meio de brincadeira e meio a sério, em um jogo de dominação onde peças de roupas são retiradas conforme Willy e Eric se imobilizam. Aos poucos, a competição se entende para o nível afetivo. Quando Willy briga injustamente com Eric, este quebra sua regularidade aritmética de telefonema e fica propositalmente incomunicável como forma de castigo. E este castigo implícito liberta Willy de ter de castigar a si mesma. O relacionamento funciona como uma partida aparentemente amistosa, mas motivada secretamente pelo desejo de vitória.
Num primeiro momento do livro, a narrativa pode ser representada como uma reta ascendente, onde acompanha-se o passo-a-passo do casal rumo ao sucesso, obtido seja através de esforço ou talento. A reta de Eric é veloz e avança pelo gráfico em direção a Willy, até que finalmente a busca e supera numa partida disputada na noite de casamento. A partir de então, os papéis se invertem e Willy se vê lutando para superar Eric do ranking mundial. Contudo, a reta de Willy não é veloz o suficiente para manter o ritmo da de Eric, que acelera cada vez mais. Aos poucos, Shriver inverte o cenário e introduz gradativamente cenas que marcam o declínio e a ascendência de Willy e Eric, respectivamente. É interessante observar como Willy começa a odiar Eric por não mais conseguir superá-lo. "Podia no máximo disfarçar a inveja, mas não era capaz de anulá-la. Quando Eric levava mais um troféu para casa, ela podia gritar 'Muito bem!' ou 'Eu te odeio!', mas a diferença estava somente no que dissesse". Ao passo que Eric já não respeita inteiramente Willy por ela não mais representar um desafio. "Assim como muitos homens, Eric só respeitava quem o rejeitava. Depois de lutar violentamente para obter a primazia, seu interesse minguava". Ao remover todos os disfarces que regiam as reais motivações de seus personagens, percebemos como o casal reage mediante à derrota. Assim, Shriver faz com que o leitor pondere se, em algum momento desde o início da narrativa, Willy e Eric de fato se amaram. E, caso sim, qual seria o real motivo deste amor.
Talvez Dupla Falta não irá agradar alguns leitores apegados a histórias mais convencionais. Isso porque o livro é direto demais, cru demais e honesto demais. E assim como os personagens não conseguem lidar com a derrota, talvez o leitor também não consiga. O livro de Shriver pode não ser o tipo de história que você queira ler, mas é o tipo de história que você precisa ler.
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