Junyander 16/01/2018
Mostre-me, Collins!
Há uma máxima da narrativa de ficção que diz o seguinte: "Mostre, não conte". Ignorando quase que completamente a premissa, Suzanne Collins consegue fazer com que o último livro da sua trilogia Jogos Vorazes seja, de longe, o pior. Superada a novidade e o subtexto político-social propostos pelo primeiro volume (“Jogos Vorazes”) e as inteligentes intrigas de uma ótima e superior sequência (“Em chamas”), resta muito pouco da criatividade da autora para preencher as páginas desse “A Esperança”. A leitura é maçante e apenas o leitor persistente se dará ao trabalho de arrastá-la até o final.
Dando prosseguimento à rebelião dos distritos de Panem contra a Capital, iniciada no volume anterior, o enredo basicamente gira em torno dos planos para tomar o controle do país. O lendário Distrito 13, que todos imaginavam inabitado e inóspito, surge como quartel-general da resistência, onde agora estão abrigados os sobreviventes do extinto 12 e cujo comando está nas mãos da presidente-rebelde Alma Coin. Enquanto o alto escalão administra à distância os movimentos de guerra, a protagonista Katniss Everdeen passa a maior parte do tempo confinada nas instalações subterrâneas do 13 sofrendo com os horrores da arena e suas consequências, como a prisão de seu companheiro nos jogos Peeta Mellark pela Capital.
Apesar da relutância inicial, Katniss aceita assumir o papel de garota-propaganda da rebelião, o seu papel de “Tordo” (na tradução preguiçosa de Alexandre D’Elia)*, a pedido da Presidente Coin. Paralelamente, do outro lado do tabuleiro, o presidente-tirano Coriolanus Snow tenta dissuadir os rebeldes em campo da continuidade da guerra, fazendo uso de seu refém Peeta para, ao mesmo tempo, desestabilizar Katniss emocionalmente, tarefa a qual desempenha com sucesso. Nesse aspecto, é preciso dar os devidos créditos à habilidade da autora em fazer com que o leitor sinta o impacto emocional que atinge a protagonista. Em determinado ponto da narrativa, é difícil avançar na leitura diante das terríveis possibilidades do destino incerto de Peeta, quem se tornou a personagem favorita de muitos ao longo dos dois livros passados. Sentimo-nos tão impotentes quanto Katniss e quase atingimos o seu estado de melancolia. Mas, infelizmente, essa habilidade de Collins não se mantém por toda a trama e logo o leitor está apenas preocupado com o momento em que o Tordo se dará conta, finalmente, de que há uma guerra lá fora e abandonará sua apatia quanto a ela. A história promete ficar interessante quando lança-se a dúvida sobre a confiabilidade dos rebeldes: será que há realmente um lado certo nessa guerra? Será que as intenções da liderança rebelde são realmente as mais justas para o bem comum de Panem? Será que os distritos estarão livres ao final? No entanto, o que poderia ser um ponto bastante instigante para a narrativa não é explorado e o enredo cai definitivamente em um marasmo com todo o drama adolescente sem-fim da protagonista, que impede o desenvolvimento da ação propriamente dita e da guerra em si.
Sim, Katniss tinha todo o direito de sofrer suas dores. Estamos em uma distopia e a Capital, muito antes da guerra, destroçara a todos. Contudo, era preciso pôr limites no tema do sofrimento (já suficientemente explorado nos livros anteriores) ou equilibrá-lo com aquilo que se passava, de fato, no campo de batalha. E aí é que está o ponto mais frágil de “A Esperança”, responsável por coroá-lo como um livro ruim: toda vez que algo importante está prestes a acontecer, Suzanne Collins tira a protagonista de cena e impede que o leitor veja, através dos olhos dela, o desenrolar da trama. Considerando a narrativa ser toda em 1ª pessoa, com uma narradora-protagonista, isso se torna um grande problema, pois tudo o que ficamos sabendo nos chega pelos olhos de terceiros, ou melhor, pela boca, já que nada é "mostrado", apenas "contado" para Katniss. É como se a autora tivesse apenas traçado o argumento geral da obra e morrido antes de ter tido a chance de narrá-lo.
Há bons pontos de ação, é verdade. Especialmente mais para o final das Partes I e III. Porém, quando essa ação, enfim, entra em cena não há tempo para que ela seja desenvolvida de modo eficiente ou para que o leitor a absorva de maneira adequada, dada a velocidade com que tudo acontece, e o livro acaba retornando a um problema que a trilogia parecia já ter superado: em vários pontos, a narração não é convincente, lembrando mais uma lista de fatos isolados do que uma progressão aceitável dos acontecimentos. A banalidade com que as necessárias baixas são apresentadas, por exemplo, é desestimulante: uma a uma, as personagens são simplesmente descartadas e suas mortes não chegam a causar o devido impacto (se nem mesmo a autora se importou com elas, por que o leitor se importaria?).
Soma-se a isso um aspecto incontornável, que ajuda a entender a dificuldade em se avançar na leitura. À medida que vamos nos aproximando da Capital para findar a guerra, as personagens mais interessantes vão sendo deixadas para trás, tornando o texto mais monótono: Johanna Mason, Haymitch, Boggs... nenhum deles têm um grande papel na trama. Também não temos o ar da graça de Effie Trinket, que faz apenas uma aparição especial. O núcleo principal de combatentes é raso e pouco cativante. Ademais, tirando a menção à figura inalcançável de Snow, os rebeldes estão lutando contra uma massa amorfa e, durante a maior parte da guerra, é difícil acreditar no desejo da Capital em manter o controle sobre Panem, dado seu esforço mínimo em combate.
Com tudo isso, era de se esperar uma heroína capaz de segurar a história e justificá-la. Lamentavelmente, somos obrigados a constatar (e aceitar), porém, que Katniss Everdeen continua sendo a mesma de sempre: sem sal. Ela se pretende (ou, antes, a autora a pretende) esperta, mas não o é. Demora para perceber as intrigas a sua volta e a reagir a elas. Tem uma visão limitada para o sofrimento alheio, embora se importe demasiadamente com o seu próprio. Se no início podemos sentir suas dores e o quão voraz foram os jogos (o que seria um feito e tanto se ela se levantasse do fundo do poço no mesmo ritmo do leitor, que percebe a necessidade da ação), chegamos ao final com a certeza de seu egoísmo – principalmente ao analisarmos suas atitudes em relação aos problemas enfrentados por Peeta. Aliás, a resolução do triangulo amoroso entre este último, a garota em chamas mais fria de toda a Física e Gale é insólita – embora minimamente agradável se você estivesse torcendo pelo casal certo. Mas a verdade é que teria sido mais convincente e melhor para todos se Peeta e Gale tivessem abandonado Katniss e acabado juntos.
Por fim, ao contrário do que ocorre com “Jogos Vorazes” e “Em chamas”, cujas adaptações cinematográficas são altamente dispensáveis, mas a leitura recomendada, no caso de “A Esperança” é possível garantir que, para os leitores menos fanáticos, assistir ao filme será mais do que suficiente, apenas para se inteirar da conclusão da trilogia, uma vez que Suzanne Collins não entrega um grande resultado na escrita e a transposição para a tela prezou pela fidelidade. O livro reserva boas reviravoltas. É amargo – a cena da cozinha na Mansão dos Vitoriosos traduz bem isso e pode até provocar lágrimas. Novamente, há um debate ético (sobre a questão do poder, da vingança) muito pertinente para o universo distópico construído até ali. Uma ou outra sequência de ação pode empolgar ou convencer. Mas, de modo geral, Collins peca por nos contar o que se passou, ao invés de nos mostrar o que se passa por meio da participação ativa da protagonista. Faltou vontade para narrar. A sensação é de estar lendo um resumo.
[COLLINS, Suzanne. A esperança. Tradução Alexandre D'Elia. 1. ed. Rio de Janeiro: Rocco Jovens Leitores, 2011.]
*No original, o pássaro-símbolo da rebelião chama-se "mockingjay", nome cunhado pela autora a partir da aglutinação de dois termos: "mockingbird" (Mimus polyglottos), pássaro comum da América do Norte famoso por imitar o canto de quase todas as aves, cujo nome em português é imitador-poliglota, e "jabberjay" (pássaro fictício), um bestante com capacidade de memorizar e reproduzir conversas humanas, criado pela Capital para fins de espionagem. Na versão brasileira, o tradutor se limitou a batizar a invenção da autora com o nome de um pássaro real, o tordo. "Mockingjay" é também o título original de "A Esperança".